O começo.

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Patrícia:

O Vale do Norte não era diferente de outros lugares; era uma cidadezinha pequena e formosa, no estilo semelhante as casinhas de época, da cidade de Minas gerais. Mas ela era diferente por algo, ela era governada por um homem frio e calculista, pai de duas meninas. Todos ali dançavam ao som que o senhor Constantino Rufino tocava.

Maria Estefânia, minha mãe, era a filha mais velha da família Rufino. A irmã dela, minha tia, eu não cheguei a conhecer, apenas soube que se chamava Marina Elisabeta, em homenagem às bisavós.

- Já chega, Patrícia. Ninguém aguenta mais essa sua história familiar - esbravejou Fernando.

- Deixa de ser chato, Fernando! - Antonella defendeu-me.

Enquanto discutiam, avistei um menino escondido atrás do pé de jaca. Quando nossos olhares se encontraram, ele correu em direção à porteira da fazenda, e eu, tomada pela adrenalina, o segui. O vento acariciava meu rosto, e pela primeira vez percebi os pássaros no pé de graviola, a água clara que passava pelo quintal e Manoela dançando enquanto preparava o almoço. Tudo parecia fluir em câmera lenta até que, num descuido, esbarrei em minha mãe e caí no chão.

- OLHA POR ONDE ANDA, MONSTRENGO! - gritou meu avô. - Se a sua mãe perder esse bebê, eu acabo com você.

Aquelas palavras eram comuns na nossa relação.

- Papai, ela é só uma criança - minha mãe defendeu-me.

- Pro inferno que ela é uma criança! Ela é um monstro, filha daquele infeliz. Sorte a dela que o Apollo te quis mesmo grávida de outro, se não...

Ele se calou abruptamente, ao receber um tapa.

- Nunca mais ouse levantar a voz para minha neta - Marieta ordenou, firme.

Naquele instante, tudo destoou da realidade. Flashes de memória surgiram: a sala cheia de sangue, o corpo da vovó Tieta no chão, mamãe gritando, uma sala de hospital, uma dor terrível na cabeça, e, bum, dez anos se passaram. Eu, a neta rejeitada, tornara-me a única que restava. Meu irmão, nascido no dia em que vovó morreu, falecera dois dias depois, e minha irmã do meio desaparecera.

Meu cérebro sempre tentou me proteger de lembranças dolorosas, mas agora insistia em lembrar do dia em que mamãe e meus irmãos voltavam para casa, deles sendo surpreendidos por um caminhão cinza. E principalmente do carro em que estavam voando sobre o parapeito da estrada, lembro-me vagamente do rosto zombeteiro do motorista do caminhão, que partiu sem prestar socorro, Juro que sou capaz de reconhece-lo em qualquer lugar do mundo. Eu estava no carro a frente ao de mamãe, então pude assistir meus irmãos partirem, não sei em qual momento minha irmã desapareceu do carro, mas sei que alguma coisa estava muito errada nessa história.

[..]

Hoje eu completava dezoito anos de vida e completava também dez anos desde que perdi meus irmãos e vovó. A sensação que carreguei era como um nó no estômago, uma mistura de frustração e culpa - por não ter sido forte o suficiente naquele dia, por ter corrido atrás de um garoto desconhecido e, principalmente, por ser filha de um homem tão odiado. Era para ser meu dia feliz, mas o olhar de desgosto da minha mãe me mergulhava em tortura.

- Parabéns, meu amor - disse Apollo, meu "pai". - Está gostando da sua festa, filha?

O nó subiu para a garganta.

- Sim - respondi, em palavras rasas.

- Senhorita Leal, eu sei quando algo a fere - segurou meu queixo. - Você é a pessoa mais importante da minha vida. Seu pai sempre estará aqui para você.

Naquele momento, o nó se desfez, revelando as lágrimas que escorriam pelo meu rosto.

- Patrícia, eu sei. O mundo é repleto de almas cruéis, mas eu te dei asas, mocinha. Eu exijo ver seu vôo - ele beijou minha testa. - Seja feliz.

Ao final daquele dia, percebi que o "seja feliz" de meu pai era um grito de socorro por todos os dias tristes que vivera ao lado da família Rufino.

Meu coração Verde Águia Onde histórias criam vida. Descubra agora