Capítulo Dois

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Patrícia.

O mundo sempre me pareceu cruel, ou pelo menos era essa a percepção que eu tinha, moldada pela minha própria experiência. Apollo, meu pai, nunca me deixou faltar nada. Ao longo de dez anos, ele nunca me dirigiu um olhar indiferente ou alterou o tom de voz ao falar comigo. Era sempre aquele Apollo doce e gentil que me criou como uma filha, sorrindo sempre que eu o chamava de pai. Em contraste, minha mãe, Maria Estefânia, reprovava essa relação, desferindo suas palavras como facas de dois cortes: – Meu nome é Maria Estefânia. Dirija-se a mim dessa maneira.

Eu me perguntava se a vida a havia machucado tanto a ponto dela abominar o papel de mãe. Lembro-me de como ela bebia e fumava mesmo durante a gravidez da minha irmãzinha, e por trás das paredes escutava vovó comentar com o crápula do senhor Constantino, sobre a tentativa de aborto que minha mãe considerou ao descobrir que estava me gerando dentro dela, mesmo sabendo que dentro dela havia um ser inocente, resultado dela ter se entregado por amor a um homem que, aos olhos da sociedade, era considerado mau, mas que em sua presença se mostrava gentil.

As pessoas, em sua maioria, são cruéis, mas a família Rufino se destacava, carregando o troféu de suas maiores barbaridades.

Não se engane, minha vida não foi um
poço de lamúria. Meu pai sempre se dispôs a me dar o mundo. Ele me levou aos melhores teatros, dançamos valsa ao som de Beethoven, e eu ri quando ele comentou: – Quem dança valsa ao som de Beethoven?” Apollo me ensinou a ser gentil e sempre me lembrou que, apesar de ter Rufino na certidão de nascimento, eu carregava o sobrenome Leal tatuado em meu coração.

Após a morte abrupta de vovó, Manoela veio morar conosco na cidade grande. Ela não era uma pessoa qualquer; sempre foi doce e cheia de bons conselhos. Recordo as noites em que, após um pesadelo, ela repousava minha cabeça em seu peito e cantava:

Naquela mesa tá faltando ela 
E a saudade dela, tá doendo 
Em mim.

Arrisco dizer que aquela canção refletia o carinho e a saudade que Manoela carregava, uma saudade que eu nunca soube de quem era. Fernando, meu amigo da fazenda, e sua família mudaram-se para a mesma cidade em que vivo hoje. Seus pais fecharam um contrato milionário com meu pai, e a empresa “Império Leal” tornou-se ainda mais forte.

Minha amiga Antonella atualmente reside na Bahia, fugindo de um casamento arranjado com o desprezível Senhor Constantino Rufino, meu avô. Ela nunca nos revelou o nome da cidade, mas lá está cursando medicina veterinária, o que aquece meu coração, pois sei que ela realiza um sonho.

Hoje, estou desenvolvendo um projeto para promover acessibilidade aos funcionários públicos, que merecem lutar por seus direitos. Acredito que os professores devem receber um salário justo, pois realizam um trabalho excepcional. Contudo, nunca vi um jovem lutar pelos direitos dos trabalhadores que mantêm nossas cidades limpas, enfrentando diariamente a falta de respeito e a violência verbal. Eu quero mudar a vida dessas pessoas. Tenho prestígio e recursos suficientes para lutar até o fim.

Nunca esquecerei o dia em que quase fui agredida na rua, até que um senhor com uma pá apareceu e gritou para os rapazes que se preparavam para me atacar, por eu ser “amiga de gay”. Ele parecia cansado, vestia roupas laranjas e tinha a pele negra brilhante. Esse é o máximo que consigo recordar após o susto.

Talvez, apenas talvez, as pessoas não sejam todas cruéis.

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— Filha, posso entrar? — perguntou Apollo, batendo à porta.

— Claro. — respondi.

A expressão do meu pai indicava que uma surpresa estava prestes a ser revelada.

— Hoje é o desfile da sua mãe. É importante para ela e para nós ...

Interrompi-o de forma brusca.

— Ela me odeia, papai. Eu não vou. Ela nunca gostou de mim. — engoli em seco.

— Eu... eu não te odeio.

Fiquei pasma ao ver a mulher dura que conhecia se transformar em uma figura envergonhada.

— Eu sei que sou uma pessoa horrível e é difícil acreditar que existe algum sentimento dentro de mim. — fez uma pausa. — Quero mudar isso. Não posso passar a vida inteira atrás de uma filha que não sei se está viva e rejeitar a que sobreviveu à morte várias vezes.

Queria entender o que “várias vezes” significava, mas não era o momento certo para isso.

Filha, você e sua mãe têm a chance de recomeçar, mas a decisão de aceitar este novo caminho é toda sua. — disse meu pai.

Ele sempre foi assim, me mostrando direções e caminhos, mas deixando a decisão em minhas mãos. Sou grata por ter um pai tão incrível, que nunca me deixou faltar nada material e que me proporciona a oportunidade de recomeçar.

Que roupa eu uso nesse desfile? — perguntei, levantando as sobrancelhas.

Pela primeira vez, senti que as coisas poderiam mudar. Meu pai me abraçou forte, enquanto minha mãe observava de longe, sentada na beira da cama. Após alguns minutos, levantou-se, deu uma desculpa qualquer e saiu. Para ela, aceitar esse recomeço ainda era extremamente difícil. Ela havia perdido dois filhos e não havia derramado uma única lágrima. A única vez que a vi se contorcer de dor foi quando queimaram o caixão de vovó. Depois disso, tudo parecia voltar ao normal. Mudamo-nos definitivamente, sem receber mais notícias do Senhor Constantino Rufino. Minha mãe se tornou a modelo mais destacada entre as celebridades, todos queriam uma foto com Estefânia Leal, todas as revistas desejavam uma matéria exclusiva, e todos os blogs queriam exibir a perfeição da família Leal. Que pena que eles não conheciam a dor que essa família carrega.

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O evento estava incrivelmente perfeito, com os funcionários vestidos de maneira impecável. As flores eram de um tom uniforme, as luzes seguiam um padrão, e a passarela estava tão deslumbrante que poderia invejar as maiores princesas. Tudo transcorria como planejado; meu pai estava elegante em seu terno. No entanto, algo incomum ocorreu quando os olhos de Apollo repousaram sobre um homem à sua frente, fazendo com que eu também o observasse atentamente.

Aquele homem tinha uma presença magnética. Alto e atlético, seus ombros largos exalavam confiança. Seus olhos verdes eram expressivos, capazes de transmitir uma gama de emoções, desde humor até seriedade. O cabelo castanho, em um corte estiloso, combinava perfeitamente com seu rosto angular. A mandíbula bem definida e o sorriso charmoso conferiam-lhe um carisma inegável. Havia leveza em sua postura, tornando-o acessível, mas também uma intensidade que não passava despercebida.

Quando ele interagia com as pessoas ao seu redor, sua voz era forte e envolvente, cativando todos os ouvintes. Era evidente que possuía um senso de humor afiado, mas também uma maturidade notável. Quando os olhares do homem se cruzaram com os de meu pai, que ainda o observava, uma sensação inusitada tomou conta do ambiente, como se o aroma de flores perfumadas preenchesse a sala. A conexão entre eles era palpável, e eu não conseguia desviar os olhos daquele momento.

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