O primeiro feixe de luz tocava a penumbra do quarto. Lian abriu os olhos. Aquele amanhecer fora defato diferente, seu coração já não apertava somente com uma angústia silenciosade um término, mas também pela ansiedade de uma aventura que se aproximava.
Era raro o sol tocar o quarto nessa época do ano, e por isso não era o sol. Abria a janela com aquele gostinho na boca, sedento pelo novo dia. Luzes artificiais eram ligadas todos os dias às seis. As primeiras eram graciosas demais, Lian sempre se alegrava com as luzinhas coloridas correndo pelas vielas e sem rumo.
Sentado à beira da cama, seus olhos fixavam-se nas raízes colossais da árvore que dominava a cidade. Um turbilhão de pensamentos o afligia — entre o medo do futuro e a dor de deixar tudo para trás. Suas mãos tremiam enquanto ajustava os óculos no rosto magro e pálido, era como se o simples gesto pudesse trazer alguma clareza ao caos que se desenhava em sua mente.
"É hoje", murmurou para si, "o dia em que tudo muda."
O cheiro de café recém-passado invadiu o quarto, arrancando Lian de seus devaneios. Ele se levantou, vestiu-se rapidamente com os farrapos que tinha e foi em direção à grande cozinha cheia de janelas de madeira, onde Eloá, sua mãe, o aguardava com um sorriso caloroso e uma xícara fumegante.
— Bom dia, meu querido — disse ela, entregando-lhe a bebida. — Pronto para o grande dia? — perguntou com um sorriso, mas Lian sabia que ela não estava feliz.
— Bom dia — Lian assentiu, tentando parecer mais confiante do que realmente estava. Ele sorvia o café naquela grande e aconchegante casa, grande, mas simples.
Apesar da falta de comida nos armários, a cozinha e o lar estavam repletos de pequenos tesouros: fotos da família nas paredes, eram muito numerosos. Uma coleção de livros e revistas em estantes de madeira rústica. Plantas bem cuidadas em toda parte, tecnologias eletrodomésticas impregnavam os diversos cômodos. Um orfanato belo e completo, exceto é claro, pela ausência cruel da fartura na mesa.
— Sabe, Lian? — Eloá pigarreou, sentando-se à frente. — Din me contou sobre seu último emprego. É verdade que você foi demitido por... como ele disse mesmo? Ah, sim, ficar "galinhando"?
Lian se engasgou com o café, sentindo o rosto queimar de vergonha.
— Mãe, que história é essa? De onde que aquele tampinha tirou essa ideia?
— Não precisa ficar nervoso, filho — ela o interrompeu, seu tom mais preocupado que repreensivo. — Só quero que entenda que suas escolhas têm consequências. E agora, com essa jornada pela frente...
Nesse momento, Din entrou na cozinha com suas próteses nas pernas, fazendo um leve ruído metálico a cada passo. Os autômatos eram sutis, nem pareciam pernas, mas davam conta de carregar aquele pequeno menino levado.
— Aí está ele, o pegador! Hoje tem mais... — provocou o irmão mais novo, um sorriso maroto nos lábios. — Pronto para se lançar sob as piranhas nos quatro cantos das florestas?
— Din, por favor — Eloá o repreendeu suavemente.
— Bom dia para você também, tampinha. Depois vamos ter uma conversa séria sobre seus contatinhos mal-intencionados.
— Mal-intencionados, mas autênticos — o pequeno Din disse sorrindo e batendo o copo a mesa.
Lian revirou os olhos e negava balançando o rosto.
Então, podia perceber um detalhe no irmão. Os olhos estavam cheios e inchados. A afeiçãozinha mesma zangada de sempre, mas com lágrimas recém enxugadas.
Sabia, o irmão estava ansioso com sua partida.
— Falando em mal-intencionados mas autênticos, por que a TV da cozinha está desligada? — Perguntou Lian para a mãe, ela adorava o jornal da manhã.
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Máquinas e Monstros
FantasyEm um mundo pós-apocalíptico, as nações começam a cair, incapazes de auxiliar suas populações famintas. A lei do mais forte impera. Lian, um jovem de origem humilde, observa impotente enquanto sua cidade mergulha no caos. Determinado a escapar da m...