Diziam as lendas que aquela cidade relativamente pequena era o lar de um ser sobrenatural de moral muito duvidável. Passos furtivos, silêncio nos lábios, as suas vítimas só davam pela sua presença quando das suas carnes contemplavam um líquido rubro que se mesclava com as lágrimas salgadas de dor e desalento. No buraco através do qual o fluido encarnado escorria, com um intenso cheiro férrico, assentava pendurada pelo menos uma flecha. Ponta vil, prenúncio da fatalidade. Os olhos fechavam, a alma ia-se pelas mãos do Arqueiro do Vazio, um ente tão cruel que no seu interior nada existia para além do vazio profundo.
Seculares eram os registos que mencionavam pioneiramente tal criatura que só aparecia no Halloween. Surpreendentemente, após anos de extensas aparições, parecia que o monstro se refugiava e permanecia invisível durante longos anos. A razão afirmava que tais constatações se deviam a períodos de imaginação coletiva. E eis um dos motivos que apoiava a versão que rejeitava o mito enquanto realidade.
Na última década, a hipótese do regresso do Arqueiro do Vazio fora amplamente difundida. No entanto, a lenda recebera um pormenor que a readaptara aos tempos modernos: o alvo da besta passara a ser adolescentes e jovens em festividades de Halloween. Contava-se que o Arqueiro, no Dia das Bruxas, saltitava de festa em festa à procura dos futuros sacrificados.
Era verdade que, no dia a seguir às celebrações bruxescas, a cidade era tristemente visitada pela notícia da morte de uma porção da sua juventude. Os inspetores da Polícia prosseguiam durante anos a fio com longas investigações que não desembocavam em lado nenhum, acabando por ser arquivadas. E, mesmo perante o perigo, a miudagem continuava a sair de casa mascarada para conviver e festejar a noite em que mortos e vivos se misturam.
Estava Lua Cheia. Phylax e Koleus navegavam aos encontrões no meio de uma multidão juvenil. Bem, na realidade, o fantasma, com a sua intangibilidade, não se via em tantas dificuldades para avançar naquele magote como o Guardião.
- O que é que vamos fazer quando encontrarmos esse tal Arqueiro? - Questionou o espetro.
- Um problema de cada vez, defunto.
- Então ainda não sabes o que é que vais fazer quando o encontrarmos?
- Apenas acredita no processo. - Retorquiu o Guardião. - Custa muito dar um espacinho?
Entalado no meio de um grupo de jovens, Phylax não tardou a perceber que estava a ser cercado por meia dúzia de rostos que exalavam um intenso cheiro a álcool.
- Esta festa não é para miúdos tão novos, ó puto. Vai mas é para pedir rebuçados às velhas.
- A sério? Posso ler o regulamento onde essa regra está escrita? Ou talvez conversar com o legislador que formulou tais leis? - Disse com sarcasmo o ser milenar, sem nunca deixar de mirar os olhos do rapaz que tentava expulsá-lo.
- Ó mano! - Chamou o jovem, virando-se. - Conheces este puto de algum lado?
- Quem? - Berrou um moço enquanto se aproximava.
- Um miúdo de onze ou doze anos que não me desaparece da frente!
Fez-se um compasso de silêncio no pequeno círculo de curiosos que se formara à volta de Phylax. O manda-chuva da festa, chegado, demorou alguns instantes a prescrutar o Nono Guardião dos Mortos. Longa capa negra de flanela com as pontas desfiadas, mangas escortanhadas na zona dos pulsos e botas de cano médio escuras completavam a mancha negra que era o rapazeco de cabelo encrespado e globos oculares sem íris.
- Gostas do Halloween? - Perguntou-lhe o jovem.
- Digamos que... sim. - Respondeu o inquirido, torcendo secretamente o nariz.
- Máscara gira! Gostei do efeito nos olhos. Podes ficar. Quanto mais formos para nos divertir, melhor. - Retorquiu o outro, dando uma leve palmada nas costas do Guardião.
Koleus não conseguiu conter o sorriso derivado do cómico da situação.
- O que é que foi, ó fantasminha?
- Nada, nada. - Disse o espetro, num evidente esforço para não se escangalhar a rir.
- Então vamos ao trabalho. Vê lá se vês o Arqueiro por aí, que eu nunca vi esse estupor à frente do meu nariz.
O par sobrenatural deambulava de olhos perspicazes no magote festivo. A música, desafinada e altíssima, dificultava bastante a comunicação. No entanto, nem sombra da criatura assassina.
- Não, obrigado. - Declarou Phylax a uma rapariga cujo convite de dança rejeitara. - Não, eu já disse que não. Maldita a hora em que me pirei de uma festa dos mortos para me infiltrar numa dos vivos...
- Deixa estar que eu já passei mais ou menos pelo mesmo. Nunca fui muito de festas e tinha logo de morrer numa, não é?
- Esse tal Arqueiro também nunca mais aparece! Já me está a deixar pela ponta dos cabelos!
Meio dito, meio feito. Aos ouvidos de Phylax, chegou um grito agoniado distante. Os festeiros, pelo menos os que se encontravam nas proximidades, pareciam não se ter apercebido de nada, tal era a êxtase que viviam.
Um novo berro moribundo ecoou pelo espaço, desta vez mais próximo. E mais outro. Às vozes dolosas, juntava-se um coro de almas atemorizadas com o espetáculo mortal que à sua visão chegara entretanto. O pavimento transformava-se gradualmente num rio sangrento de desalento e angústia, onde fluíam perdidas as alegrias e as esperanças.
- O Arqueiro... É aquele! - Indicou Koleus, apontando na direção de um vulto de rosto indecifrável que segurava um arco.
- Podias ter dito um bocadinho mais cedo... - Murmurou o ser secular, a meia voz.
No peito do rapazeco milenar, pendia uma flecha hedionda. Uma nova seta bárbara foi disparada na sua direção, rasgando-lhe o conteúdo intrínseco que não era nem de natureza viva nem morta. Phylax sentiu uma dor aguda atazanar-lhe o espírito, uma sensação que lhe era completamente desconhecida até à data. Deu por si a semicerrar os olhos anirídicos, a contemplar as maravilhas que vivera ao longo dos milénios em que governava o Nono Reino dos Defuntos. Via a imortalidade, uma certeza com a qual convivera desde o início dos tempos, escapar-lhe entre os dedos como água que escorre através dos minúsculos furos de um copo roto. A gravidade desempenhou o seu papel de obrigar o seu corpo a tombar no chão. Pelas mãos de um demoníaco ser a quem jurava vingança, o Guardião via a sua existência findar. Resolveria os seus problemas com a Morte. E, das cinzas, voltaria como uma fénix renovada para vingar a própria morte e resolver assuntos pendentes com o Arqueiro do Vazio.
(1056 palavras)
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O Arqueiro do Vazio
Historia Corta🏅 Selecionado para a antologia "Contos de Halloween" do Projeto_Luna Conto escrito para o desafio de Halloween do Projeto_Luna Rezam os mitos que, na noite de Halloween, o Arqueiro do Vazio bate às portas das festas do Dia das Bruxas à procura das...