Renovação

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Após conhecer o fim, não há força para levantar e trilhar no­vos caminhos. Os caminhos foram apagados. Este, não é qualquer fim, é o fim do mundo. Do mundo que costumávamos co­nhecer, o fim das vidas com as quais amávamos conviver e o fim dos homens que achávamos conhecer.

O monstro desistiu da luta, jogando-se nas profundezas do submundo, aguardando também o seu próprio fim.

Os céus repletos de prédios da cor da terra, toda a cidade re­fletia caos e destruição. A energia luminosa brincava com a gravidade mundana, enquanto as nuvens cinza e negras cobriam o céu trevoso.

Pequenas plantas e ramos surgiam onde jamais existir algum verde. Seria impossível sobreviver às condições da tempestade um­brálica. E lá ele se encontrava, definhando, no fundo da maior cratera, rodeado por pilares fallyrianos, blocos de concreto e tremendas ro­chas negras.

O lar dos principados, engolido pela escuridão, jazia o último abaixo nos calabouços sob os antigos e memoráveis salões de luta da velha corte. Uma prisão. Ele não podia retornar, e não fazia a menor questão.

Estilhaçado, esgotado. Não se importava, não se movia. Can­sado, acabado, jogado sob destroços e beira-morte.

A espada quebrada e jogada pelo saguão, ao lado, sangue e águas decorrentes das grandes nuvens forravam o chão, tocando aqueles pés imundos. Um com a bota em prata e couro, o outro descalço deformado com grandes unhas e pelos de fera.

Assistíamos àquele sofrimento com muita atenção. Retiramos uma vela do castiçal e nos aproximamos solenemente.

"Grande como um urso, bom garoto", disseram-lhe uma vez. Lembrava como era jovem e alegre, não sabia o que o aguardava, as ferozes iras dos homens se lançariam sobre sua inocência para apren­der a ser como todos nós, a levar a vida como um sobrevivente nato, um predador.

"Pai, vai mimar o garoto se continuar o chamando assim", lembrava da imagem e da voz de Petar, o irmão mais velho. Cabelos curtos sob os ombros eram castanhos e dourados como os dele. Com­portado, dedicado e complacente, o irmão diferia do padrão de Fallyria. Eram geralmente viris, dotados de uma grande presunção.

Nobres dos céus, lembrados por suas armaduras tecnológicas magnificentes, traços azuis e marrons. As do pequeno príncipe eram azuis e avermelhadas.

O memorável dia de caça das famílias principais. Ele tinha de aprender, desde pequeno, a ver o sangue dos pequenos animais. O pai o lembrava sempre como um homem deveria ser, parecer e perecer.

"Para mim, ele se parece com um ursinho", continuava o ir­mão, as palavras cintilavam pelo ar como se tudo estivesse aconte­cendo novamente. Lembrava até do sutil bocejo de Petar, ainda de costas, visando os robôs de caça. E como o irmão conseguia instigar o fogo naquele pequeno coração, o orgulho do príncipe refletia na ima­gem. Era um garoto bravo, determinado e ousado, assim gostava de se lembrar.

Um rosnar súbito agarrava a sobrepeliz do irmão en­quanto ele se distraía com os robôs, assustava-o facilmente. Ele gar­galhava, mas o irmão o perdoaria, perdoaria por tudo, mas não mais, não hoje.

— Chega de ilusões! — Rugiu ferozmente o homem meio monstro, interrompendo os vislumbres.

Devagar, nos aproximamos mais, precisava de nós.

— Não se aproxime de mim!

Entendemos, mas precisamos, precisamos estar ao seu lado. Estava febril, mas atento aos nossos passos divagados.

— Como você se sente, caro monstro? — Perguntamos, entendemos a tristeza, gostaríamos de tê-la, por inteiro!

Não respondia, continuava olhando vagamente para o escuro, sem mesmo se dar ao luxo de se virar e nos aniquilar por completo.

Os contos dos espíritosOnde histórias criam vida. Descubra agora