Meu coração quase saiu da boca com a vista. A primeira coisa pensei era que se tratava de um castelo medieval recolhido sobre um monte, negro, gigantesco, imponente no horizonte plano que lhe rondava. Mas era reto, reto demais para um castelo, que é cheio de torres e chaminés. Era reto, reto feito uma tábua de passar, feito uma mesa, feito um tabuleiro de xadrez. E não era só alta, era larga, com quilômetros e mais quilômetros se projetando para os lados, roubando para si toda grandeza do planalto. Ainda estávamos há pelo menos dez quilômetros de distância e o monte já era a única coisa que se via no horizonte. De seus cantos lisos, estreitos, subiam fileiras de escadarias naturais, que, na realidade, eram caminhos de mata que rondavam o "tabuleiro", que era como os moradores da região chamavam o monte. As matas de passagem desembocaram nas densas matas que cobriam a estranheza mágica do monte e levavam, eventualmente, ao topo, onde uma nascente bem no centro da mata deu origem a um lago, que desaguava em treze cachoeiras ao redor dos paredões do monte.
Era esplêndido.
一 Professor, devemos seguir. A cidade não está longe agora 一 Benito, que era um peão a mando de meu amigo, o barão Lacerda, me acompanhava da cidade vizinha até a municipalidade de Carmo dos Perdidos, que havia surgido (Ou se perdido) na região próxima ao monte, envolta na mata por todos os lados, inacessível a não ser por uma estrada de terra antiga. 一 Logo menos anoitece. Dentro dessas matas tem todo tipo de coisa. E não tem nada perto por pelo menos vinte quilômetros.
一 Que reconfortante 一 respondi, meio irônico. Havia aceitado o convite do barão, pois após meu mestrado sobrevivia de uma bolsa de pesquisa financiada pelo governo, que era, bem, quase nada. Dava para pagar um quarto de pensão em Beagá, onde passei a morar após concluir a faculdade.
Sou formado em história, especializado no estudo da imigração de grupos étnicos asiáticos para o Brasil, dentre o século dezenove e vinte. Havia sido informado pelo coronel Lacerda que Carmo dos Perdidos, cidadezinha no norte de Minas, escondida por rios, matas e cachoeiras, sob os pés do grande tabuleiro, havia sido refúgio de japoneses, judeus alemães, indianos e todos os estrangeiros que chegavam ao Brasil pelo Porto do Amparo, numa baía capixaba, e atravessavam o Espírito Santo até chegar em Minas pela estrada dos vinténs, a mesma que estava tomando. Conheci o coronel numa palestra acadêmica em Belo Horizonte, onde discutimos o destino das megapolis, as hipercidades, como chamávamos São Paulo, Rio de Janeiro e, eventualmente, Belo Horizonte, que tornavam-se tão poderosas, muitas vezes mais que alguns países do exterior.
一 Foi isso que atraiu os migrantes, a certeza de que mesmo a mais pequena das capitais do Brasil era maior que seu próprio país 一 o coronel Lacerda me afirmou aquela vez, quando contou que também se interessava pela temática, pois era ele mesmo descendente de judeus alemães 一 Meu avô contava que vieram em um enorme barco, cinquenta judeus. Quarenta deles ficaram ali pelo porto, os outros dez tomaram a estrada dos vintens e chegaram em Carmo dos Perdidos quando tudo ainda era mato.
一 Os judeus chegaram pouco antes dos japoneses em Carmo dos Perdidos 一 o professor Valter completou, enquanto segurava os cotovelos, pensativo. Ele era um senhor alto e calvo, muito erudito, amigo próximo do coronel Lacerda. 一 Quando estive lá pude conhecer a comunidade que construíram. Yuzu.
Toda aquela conversa não estava me interessando, pelo menos não até a menção dos japoneses. O professor Valter era um sujeito meio enfadonho e repetitivo, enquanto o coronel Lacerda cheirava a privilégio e nepotismo. As conveniências da vida me obrigavam a tomar uma atitude comum, ser educado e parecer sempre interessado, mas, no fundo, só queria voltar logo pra casa e me enfiar debaixo das cobertas. Odiava a vida metropolitana por esses lados de Beagá. Tudo era tão vazio, branco.
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Talvez a Guerra Esteja Dentro de Mim
Ficção AdolescenteHiro Kobayashi é reconhecido como o único "brasileiro" a morrer vitimado pela bomba atômica de Nagazaki. Nascido no Japão e tendo vivido toda sua juventude no Brasil, numa comunidade Nipo-brasileira em Minas Gerais, em 1945, sua misteriosa história...