A cidade estava submersa em um silêncio pesado, quase palpável. A chuva caía ritmada, cada gota se estilhaçando contra o chão de paralelepípedos e criando pequenos rios ao longo das calçadas. As luzes dos postes projetavam sombras longas e disformes, desenhando figuras solitárias que dançavam ao sabor do vento e da água.
Em meio a essa melancolia úmida, um homem caminhava lentamente.Gael,trinta e poucos anos, cabelos revoltos e barba rala, se movia com o passo vacilante de quem carrega um peso invisível. Ele era escritor, mas já há tempos as palavras lhe fugiam, substituídas por um vazio crescente que parecia moldar sua existência. Seu olhar se mantinha baixo, os olhos escuros contemplando o reflexo dos postes na calçada encharcada.
Enquanto vagava, a mente de Gael revisitava cenas antigas, memórias que ele queria esquecer, mas que sempre retornavam, especialmente quando estava sozinho. Lembrava-se de Clara, o amor que um dia o consumira por inteiro. Ela era a mulher que o ensinou o lado mais doce e mais amargo do amor, a pessoa que fez com que ele acreditasse, por um momento, que a felicidade plena era possível.
Mas o tempo mostrara que a felicidade era ilusória. Quando ela se fora, deixara nele uma dor profunda, uma ferida que se recusava a cicatrizar. Ele tentou preencher o vazio com novos amores, aventuras e amizades, mas nada se comparava ao que vivera com ela. O amor se tornara para ele um veneno, um vício que jamais conseguira abandonar por completo.
Gael parou em frente a uma antiga cafeteria, com a vitrine embaçada pela diferença de temperatura entre o calor do lugar e o frio da rua. Entrou, almejando encontrar um pouco de refúgio. Escolheu um assento no canto mais afastado, onde se sentia protegido, quase invisível. Pediu um café, mas seu olhar perdido revelava que sua atenção estava longe dali.
"Para onde foi tudo isso?", murmurou para si mesmo. "Como algo que era tão bom virou... isso?"
Enquanto o garçom trazia o café, a porta da cafeteria se abriu, e o ar frio da rua invadiu o ambiente, seguido pelo som dos saltos de uma mulher que caminhava com passos firmes. Ele levantou o olhar, e então, seu coração deu um salto doloroso. Era **Clara**.
Ela entrou sem perceber Gael de imediato, mas em algum ponto seu olhar encontrou o dele, e a surpresa mútua ficou evidente em seus rostos. Ele observou-a congelado, sem saber o que fazer, como se todo o controle que exercera sobre seus sentimentos estivesse prestes a ruir. Após alguns segundos de hesitação, ela acenou suavemente e escolheu uma mesa próxima.
Gael lutava contra o turbilhão em seu peito. Fazia anos desde a última vez que a vira, mas ali estava ela, ainda com aquele jeito de tempestade calma, de força envolta em delicadeza. A aparência era quase a mesma, mas havia algo diferente, uma melancolia sutil em seus olhos que ele nunca notara antes.
"Clara", disse ele, tentando controlar a voz trêmula. Ela virou-se para ele, surpresa pela iniciativa.
"Gael... quanto tempo", respondeu ela, com um meio sorriso que misturava nostalgia e tristeza. "Eu... não esperava encontrar você aqui."
"Nem eu. A vida tem dessas... ironias", ele murmurou, enquanto mexia seu café, tentando conter as emoções que borbulhavam sob a superfície.
Eles trocaram algumas palavras sobre amenidades, falaram do tempo, da chuva, como se fossem dois estranhos que não compartilhavam um passado. Mas a tensão entre eles era palpável, como um fantasma não convidado que os rodeava, e finalmente, incapaz de resistir, Gael resolveu ir direto ao ponto.
"Sabe, Clara, eu ainda não entendo", ele disse, com a voz baixa, quase um sussurro. "O que aconteceu entre nós? Por que as coisas... acabaram assim?"
Ela suspirou, desviando o olhar para a janela embaçada. "Gael, algumas coisas não têm explicação fácil. Acho que eu... queria ser livre, viver sem amarras, sem rótulos. Mas talvez, no fundo, eu só estava com medo de amar alguém tanto quanto amei você."
As palavras dela, mesmo suaves, atingiram Gael com a força de um golpe. "E esse medo valeu a pena?", perguntou ele, sua voz amarga. "Porque, para mim, foi como um veneno. Um que nunca saiu do meu sistema."
Clara o encarou por um momento longo e silencioso, como se ponderasse o que dizer. "Acho que sim", respondeu ela finalmente, com um olhar triste. "Às vezes, amar demais nos machuca mais do que não amar. Pelo menos foi assim para mim. Eu me sentia sufocada, Gael. Mas... vejo agora que talvez você nunca tenha entendido isso."
Eles ficaram em silêncio, cada um absorto em pensamentos e arrependimentos. Gael sentia como se aquele reencontro tivesse aberto todas as feridas que ele passara anos tentando ignorar, e ao mesmo tempo, sentia-se patético por ainda nutrir esperanças de que ela o amasse da mesma forma que ele ainda a amava.
Depois de algum tempo, Clara se levantou. "Bem... foi bom ver você, Gael. Espero que você encontre o que procura", disse ela, antes de se virar para ir embora. Ele não respondeu; ficou apenas observando-a enquanto ela saía, o som de seus saltos ecoando no chão de ladrilhos até que a porta se fechou, e o silêncio voltou.
Gael permaneceu no café por algum tempo, absorvendo a solidão que Clara deixara para trás. O cheiro de seu perfume ainda pairava no ar, misturado ao aroma do café. Era como se ela ainda estivesse lá, uma presença que ele jamais conseguiria apagar, mesmo que ela nunca mais voltasse.
De volta ao seu apartamento, Gael sentou-se diante de uma página em branco. Sentiu a necessidade de escrever, como se fosse o único jeito de desabafar a dor que guardava. Pegou a caneta e, sem hesitar, começou a transcrever tudo o que sentia. As palavras vinham com uma fluidez que ele há tempos não conhecia, e a dor se transformava em versos.
_"Amar é droga doce e amarga,
é febre que arde, fere e apaga,
é calma que vira tempestade,
veneno que alimenta a saudade.__É vício que corrói, queima a pele,
que embriaga e mente enquanto fere,
um laço invisível que prende e solta,
é a dor que, mesmo cega, não volta.__Amar é se perder no impossível,
é ser cativo do imprevisível,
e, ainda que traga tanto dano,
é ferida que aceitamos, amando."_Quando terminou, Gael olhou para o poema com um certo alívio. Como se, por meio das palavras, pudesse finalmente aceitar que algumas cicatrizes nunca sumiriam, mas poderiam ser encaradas. Afinal, amar era isso: um veneno, um vício, uma ferida que ele carregaria para sempre, mas que também o fazia sentir-se vivo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
*Fragmentos da Alma*
Misteri / Thriller*"Fragmentos da alma"* é uma jornada profunda e sombria pela alma de um Homem melancólico, que se embrenha nas marcas deixadas pelo amor - marcas que, ao mesmo tempo, o aprisionam e o definem. Cada capítulo deste livro é inspirado por um poema, cada...