Manhã

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Fragmentos #1


          No topo de uma colina havia uma casinha. Era uma construção miúda, originalmente uma cabana de caça que, com o passar dos anos, caiu em desuso pela ausência de grandes animais selvagens naquela região tão remota e inóspita do extremo Noroeste.

           À primeira vista, era evidente que o morador atual esforçou-se para tornar a velha tapera mais acolhedora, embora sem o toque de um artesão. As paredes haviam sido reforçadas com madeira bruta da região, e o telhado, recém-reparado, parecia resistente o suficiente para suportar as pesadas nevascas, ainda que sua inclinação fosse rasa demais. Isso significava que, durante o longo inverno que naquela região reinava por quase oito meses, o morador precisaria subir diariamente para remover a neve acumulada.

           Numa manhã qualquer, uma das poucas janelas daquela casinha foi tomada pelos primeiros raios de uma primavera nascente. Ainda havia neve cobrindo boa parte do bosque que rodeava o lugar, e os galhos das árvores, despojados de folhas, pendiam sob o peso da neve que começava a derreter.

           Na mesma janela, uma garotinha observava o espetáculo matinal; ao ver o sol escalando as copas mais altas da colina, inclinou-se no batente de madeira para sentir o calor delicado. Ela ficou encantada ao ver que o solo, pela primeira vez, começava a aparecer entre as alvas camadas cristalizadas de neve.

           Antes, havia apenas neve, neve e mais neve. Um manto tão espesso que, em certos dias, mal se podia abrir a porta. Agora, finalmente, poderia brincar do lado de fora com seu irmão, assim que ele recuperasse a saúde. Segurando Anikusha, sua pequena boneca de pano, ela escalou a janela, foi um esforço imenso para ela pois o batente estava muito alto, quase um metro e meio de altura.

           Com as perninhas esticadas, ela respirou fundo e absorveu o momento. Vestia apenas um velho casaco e um gorro sobre seus delicados cabelos cor de mel que desciam quase até os cotovelos. Agachou-se e, com as duas mãos, pegou um punhado de neve ainda intacta, observando-a por um instante antes de arremessá-la para o lado, revelando o permafrost logo abaixo. Então, posicionou a boneca sobre o solo recém-desvendado.

           Ela tinha um carinho imenso por aquele brinquedo, fora feita para ela com muito carinho pelas mãos de sua mãe enquanto ela a carregava junto ao irmão no ventre.

— Veja como é bom sentir a terra, Anikusha — murmurou, ajeitando a boneca com certa delicadeza. Lentamente, deu uma volta completa no seu próprio eixo, deixando os olhos se perderem pelo horizonte.

Ela sorriu.

           Cerca de três horas após o nascer do sol, o pai chegou. Costumava ir muito longe em busca de trabalho ou mantimentos, e não era raro que passasse dois ou três dias fora pois o vilarejo mais próximo ficava a uma distância considerável, e a casa mais próxima (pertencente à dona da tapera, a tia Svetlana, que no último outono lhes oferecera abrigo) ficava colina abaixo, uns sete minutos a cavalo.

           Ele carregava um saco grande e pesado na mão direita, enquanto sobre o ombro esquerdo trazia um pequeno instrumento de cordas muito belo, cujo nome a menina sempre esquecia. Pobre papai, parecia exausto.

           Ele largou ambos os itens sobre o banco de uma pequena troika em frente à cabana. A troika estava inutilizada desde que o pai teve de vender as duas mulas para comprar comida: Grisha, em novembro, e Lyuba, em março. Foram perdas que deixaram marcas na menina e em seu irmãozinho, ambos muito apegados aos animais, que se viram forçados a abdicar, assim como fizeram repetidas vezes com pessoas e lugares.

           Ao todo, a garota lembrava de já ter se mudado ao menos sete vezes. Nunca permaneciam por muito tempo em um mesmo local e, quando menos esperavam, precisavam partir, mudando-se cada vez mais para longe. Pobre papai, ele era muito indeciso, tentando a sorte com um trabalho novo em cada parada. Houve uma época em que ele tentou ser sapateiro, após aprender o ofício com um velho amigo; foi um fracasso. Na última cidade, arriscou-se no teatro, e agora era músico, embora nunca tivesse tocado para ela ouvir.

AnikushaOnde histórias criam vida. Descubra agora