O tempo passou, e o fim da tarde se aproximava. Já em uma conversa iniciada, o pai continuou:— Ele deve estar bem melhor da doença. Amanhã de manhã, iremos pegá-lo.
A menina esboçou um leve sorriso; aquilo era um lampejo de esperança em meio à incerteza que ambos carregavam. Ele prosseguiu:
— Trate de arrumar suas coisas esta noite. Depois de nos encontrarmos com ele na casa da senhoria, partiremos.
Ela teve vontade de perguntar "de novo?" ou "por quê?", mas se conteve, guardando a dúvida para si mesma.— Para onde vamos?
— Não sei.O pai repetiu, com um fio de tristeza na voz:
— Não sei... me desculpe, de verdade. Um dia você entenderá.— E o irmãozão vai voltar a tempo?
A pergunta atravessou-o como uma lâmina, rasgando-lhe a alma.
— Não... ele não vai.
— Pelo menos vamos sair deste lugar que não tem nada — resmungou ela, buscando consolo — eu odeio esta casa.
Ele se aproximou, agachando-se para ficar na altura da filha, como se quisesse compartilhar seu mundo.
— Não diga algo assim! — exclamou fingindo ser a voz da Anikusha, tentando arrancar um sorriso da menina em meio a tristeza.
— Eu sei que é você, papai — respondeu a menina, entre risos e gargalhadas. Ele a abraçou com força, encerrando a brincadeira.
— Não diga mais isso. Você não odeia nada. Essa palavra é muito forte. Nunca mais repita, tá bom? Vou fazer batatas para o jantar.
A menina deitou-se no pequeno divã da sala, abraçada à sua boneca com o olhar perdido nas lembranças da confusão daquela manhã, pois mesmo que aquilo fosse recorrente havia tido um desfecho terrível.
Em um momento, seus olhos se fixaram no quadro que o pai passou o dia observando, especialmente após a partida do irmão. Ela se lembrou da primeira vez que vira aquela imagem; estava gravada em sua mente, como um sussurro de tempos antigos.
A tela emoldurada parecia pulsar com uma luz suave, como se o próprio sol tivesse escolhido repousar ali por um instante. Seria aquele o rosto do avô? Um semblante sereno e imortalizado no tempo pairava sobre um fundo envolto em sombras e luzes crepusculares. As pinceladas revelavam uma expressão que oscilava entre dor e paz, entre penumbras e uma estranha claridade, como se cada traço carregasse uma verdade inalcançável.
Havia naquele rosto algo belo, um segredo eterno velado na própria expressão. O olhar do pintado, ao mesmo tempo distante e próximo, parecia puxá-la para um abismo de contemplação, onde as respostas se escondiam e restava apenas uma sensação profunda de paz inexplicável.
— Inventei um novo prato! — continuou o pai, tentando arrancar-lhe um sorriso com um tom animado. — Batatas quadradas!
Ela sorriu, com um brilho nos olhos. Ele, então, prosseguiu:
— Mande o Vanya de volta para casa; hoje não teremos carne.O pobre Vanya, que descansava debaixo da mesa, acordou ao ouvir seu nome. Dormindo de barriga vazia, ele se levantou, esticando as patas antes de seguir para fora com a menina, que o guiava com esforço. A luz do sol, como num último abraço ao dia, apressava-se em tocar o chão uma última vez antes de se despedir.
Algumas horas se passaram e finalmente as batatas quadradas do papai estavam prontas. Deitada na cama, mesmo sem sono, permaneceu ali, apenas existindo, com os olhos fixos no teto e os pensamentos vagando até a Tia Lana e o quanto ela era boa em aceitar cuidar de seu irmão.Foi nesse momento que quatro batidas duras soaram na porta da casa, cortando o silêncio com uma urgência que gelou o ar.
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Anikusha
Short StoryEm uma casa isolada pelo silêncio e pela dor, um pai e seus filhos vivem à sombra de segredos nunca ditos. Quando o irmão mais velho parte em busca de um destino movido pela revolta, a pequena e seu pai enfrentam as marcas de um passado sombrio que...