ᴄᴀᴘɪ́ᴛᴜʟᴏ - 01

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𝑳𝒂𝒖𝒓𝒂 𝑳𝒆𝑩𝒍𝒂𝒏𝒄 🍓✨️

Eu sempre gostei de caminhar pela cidade no fim do dia, quando o movimento diminuía e as luzes começavam a acender nos prédios. Eu  sentia uma liberdade intensa nesse horário, como se a cidade pertencesse só a me. Afinal, liberdade era tudo o que eu queria - e tudo o que, depois de tantas decepções, jurei que nunca mais abriria mão.

Numa dessas tardes, enquanto eu estava sentada em uma parte do fundo no café que sou dona e visitava religiosamente todos os dias, um rosto desconhecido chamou minha atenção. Ele entrou com pressa, mas ao perceber o meu olhar, me retribuiu com um sorriso rápido, daqueles que parecem um convite para o desconhecido. Eu olhei para baixo, mas sentir um frio no estômago, como há tempos não sentia.

Eu balancei a cabeça, espantando o pensamento, lembrando-se das promessas que havia feito a me mesma - promessas de que não me permitiria mais depender de ninguém para me sentir completa. " Eu sou minha e de mais ninguém", eu sussurrei para me, mesma como uma mantra. No entanto, uma parte me sabia que era um tanto irônico dizer isso. Porque, desde que eu se lembrava, sempre quis alguém que me compreendesse - mas sem me sufocá, sem me pressionar.

O desconhecido pegou o café para viagem e saiu. Antes de sair pela porta, lançou um último olhar em minha direção, como se houvesse ali uma história que só ele poderiam desvendar. Eu suspirei, irritada consigo mesma por sentir o coração acelerar. "Quem ele pensa que é?", murmurei, tentando disfarçar o desconforto.

Quando o relógio do café marcou 18h, o céu lá fora já exibia um tom entre o azul profundo e o laranja apagado. Eu terminei o último gole do cappuccino, deixando algumas notas sob o pires e levantei sentindo o ar fresco da noite me tocar assim que atravessei a porta.

As ruas estavam mais tranquilas agora, meus passos ecoando no calçamento quase vazio. As vitrines acesas lançavam reflexos sobre o asfalto úmido, e as árvores balançavam suavemente com a brisa que anunciava o fim de um dia. Eu enfiei as mãos no bolso do casaco, meus pensamentos se entrelaçando como as luzes que piscavam nos semáforos à distância.

A imagem do sorriso do estranho persistia em minha mente. “Por que me abalo com algo tão bobo?”, murmurei para me mesma, tentando afastar o frio no estômago que insistia em voltar. Respirei fundo, sentindo o cheiro das flores da floricultura da esquina misturado ao de pão fresco que saía da padaria. Tudo parecia mais vivo à noite, como se a cidade também soltasse um suspiro de alívio depois de um dia cheio.

Ao chegar no meu prédio, cumprimentei o porteiro com um aceno rápido e subir as escadas em vez de esperar pelo elevador. Cada passo ecoava, preenchendo o silêncio que sempre me acompanhava naquele horário. Quando destranquei a porta do meu apartamento, a luz quente da sala já estava acesa.

— Finalmente! Achei que ia passar a noite fora — disse Clara, minha melhor amiga, que estava esparramada no meu sofá com uma taça de vinho na mão e um sorriso provocador nos lábios.

— Só perdi a noção do tempo — respondir, tirando o casaco e pendurando-o no cabideiro.

— Perdeu a noção ou estava perdida em pensamentos? — Clara arqueou uma sobrancelha, eu sabia que a minha amiga lia meus pensamentos melhor do que eu mesma.

— Os dois, talvez — admitir, me sentando na poltrona ao lado e aceitando a taça de vinho que Clara me
estendeu.

Clara me estudou por um momento, como quem avalia um enigma.

— Certo, pode começar a falar. Quem roubou sua paz hoje?

Eu rir, um som breve que a surpreendeu pela minha sinceridade.

— Um sorriso. Um estranho. Nada demais.

Minha amiga estreitou os olhos, divertida.

— Nada demais, né? Você tem essa mania de fingir que as coisas não te afetam. Mas, pelo visto, já sei o que vamos discutir hoje.

E pela primeira vez em dias, eu não me sentir sozinha. Por mais que eu carregasse meus próprios fardos, era bom ter alguém que me lembrasse que às vezes a liberdade também podia incluir um pouco de vulnerabilidade.

Eu dei um longo gole na taça, tentando evitar o olhar curioso da Clara. Sabia que a minha amiga não deixaria aquilo passar tão fácil. Clara tinha o dom de desmontar qualquer muralha emocional com apenas algumas palavras.

— Não é nada mesmo, Clara. Foi só... um momento estranho. Um sorriso inesperado. Já passou. — Eu tentei mudar de assunto, mexendo na borda da minha taça.

Que parecia a coisa mais interessante a se fazer até que....

— Passou? — Clara se inclinou, apoiando o cotovelo no joelho e olhando diretamente para mim. — Então por que você está aqui com esse olhar perdido, como quem acabou de voltar de uma viagem ao mundo das possibilidades?

Credo!!
Soltei uma risada sem graça.

— Você dramatiza demais.

— Talvez. — Clara deu de ombros. — Mas conheço você. Depois de tudo o que aconteceu, você se fechou tanto que é quase um milagre um sorriso, seja de quem for, te tirar desse casulo.

Isso é verdade. Pensei comigo mesma, mas mesmo assim vou rebater a seu questionamento.

— Eu não estou em um casulo. —  cruzei os braços, defensiva.

— Ah, está sim, e você sabe disso. — Clara se recostou no sofá, cruzando as pernas. — Mas não tem problema. Todo mundo precisa de um tempo pra se recuperar. Só que, às vezes, acontece algo ou alguém que mexe com a gente de um jeito diferente.

— Você está exagerando. — Minha voz saiu mais suave do que pretendia.

Clara deu uma risada baixa e ergueu a taça em um brinde simbólico.

— Tudo bem, então. Vou parar de insistir. Mas só se você me prometer uma coisa.

— O quê?

— Que, da próxima vez que algo ou alguém te der esse frio no estômago, você não vá embora tão rápido. Nem do café, nem da sua própria cabeça.

Eu fiquei em silêncio, encarando a superfície do vinho que balançava suavemente na taça. Clara tinha razão, como sempre. Não era só sobre o estranho no café; era sobre como eu vivia evitando qualquer coisa que parecesse minimamente fora do meu controle.

— Vou pensar no seu conselho. — Eu finalmente disse, lançando um olhar meio sério, meio divertido para Clara.

— É só isso que eu peço. — Clara deu um sorriso vitorioso e ligou a televisão, encerrando o assunto.

Enquanto as cenas de um filme qualquer preenchiam a sala, eu me recostei na poltrona, deixando a minha mente vagar. Talvez, apenas talvez, Clara tivesse razão. Talvez fosse hora de parar de fugir — da cidade, das memórias, e, principalmente, de mim mesma.

Enquanto o filme seguia sem grande importância, eu fiquei imersa em meus pensamentos. Clara estava certa, e isso me incomodava de uma maneira estranha. Desde que tudo havia desmoronado, eu havia se afastado, erguendo uma muralha ao redor de mim mesma. A promessa de que nunca mais dependeria de ninguém para ser feliz havia se transformado em uma obsessão, mas também numa prisão invisível. Talvez fosse por isso que o sorriso do estranho havia me abalado tanto, como se ele fosse uma chave para algo que eu há muito deixara trancado.


Continua....

𝑬𝒖 𝑵𝒂𝒐 𝑺𝒐𝒖 𝑺𝒖𝒂Onde histórias criam vida. Descubra agora