KELVIN

75 5 1
                                    

       Ele não está atendendo. É a segunda vez que eu ligo em quinze minutos, e também não tive respostas para as mensagens que tenho enviado. Será que ele ainda se lembrava de estar aqui às duas?
       Desligo e olho para o relógio na parede do bar, vendo que já é quase meia-noite. Ainda tem duas horas antes do meu namorado pensar que meu turno acabou e que pode vir me buscar. 
        E eu aqui pensando que teríamos sorte hoje, se eu saísse mais cedo, para termos uma noite surpreendente.
        Merda.
        Preciso arrumar meu carro. Não posso continuar dependendo dele para as caronas.
         A música toca ao redor, os clientes riem à minha direita e um dos bartenders enche o cooler com gelo do meu outro lado.
        Começo a me sentir inquieto. Se ele não está atendendo, então está dormindo ou saiu. Ambos significam que vai se lembrar de mim quando for tarde demais. Ele nem sempre é confiável, mas essa não seria a primeira vez, também.
        Esse é o problema de transformar seu amigo em namorado, acho. Ele ainda pensa que pode se safar.
      Pego minha camisa e mochila no armário embaixo da pia e guardo o celular no bolso. Visto a camisa de flanela por cima do cropped, abotoo e a enfio no cós do shorts jeans, me cobrindo. Eu me visto um pouco sexy para conseguir as gorjetas, mas não sairei daqui assim.
    — Onde está indo? — pergunta Luana, olhando para mim enquanto enche uma caneca de cerveja.
      Olho para minha chefe, seu cabelo preto com cachos volumosos e uma sequência de corações minúsculos tatuados ao redor do braço.
    — Tem uma sessão à meia-noite de "Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio" no cinema. — respondo quando fecho o armário e coloco a mochila nas costas. — Vou passar o tempo lá enquanto espero pelo Jonatas.
       Ela termina de encher a caneca e olha para mim como se houvesse um milhão de coisas a dizer, mas sem saber por onde começar.
       É, é, eu sei.
       Gostaria que ela parasse de me olhar assim.    Existe uma boa possibilidade de Jonatas não estar aqui às duas da manhã, considerando que ele não está atendendo o telefone agora. Eu sei disso. Pode ser que esteja completamente bêbado na casa de algum amigo.
       Ou poderia estar dormindo em casa com o alarme programado para vir me pegar às duas e esqueceu seu telefone em outro cômodo. Pouco provável, mas possível. Ele tem duas horas. Darei duas horas a ele.
       Além disso, minha irmã está no trabalho e ninguém aqui pode sair para me levar para casa. O movimento está fraco esta noite, e fui dispensado para sair mais cedo porque sou o único sem um filho para sustentar.
       Mesmo que eu precise desesperadamente do dinheiro da mesma forma.
       Aperto a alça da mochila sobre o peito, com a sensação de que deveria ter mais de Dezenove anos.
       Bem, vinte agora, quase me esquecendo de que dia é hoje.
       Respiro fundo, afastando a preocupação nesta noite. Muitas pessoas da minha idade lutam para ganhar dinheiro, não conseguem pagar as contas e têm que andar de carona. Sei que é esperar demais que eu já tenha tudo resolvido a essa altura, mas ainda assim é vergonhoso. Odeio parecer desamparado.
       E também não posso culpar Jonatas. A decisão foi minha de usar o que sobrou do dinheiro do meu empréstimo estudantil para ajudá-lo a consertar seu carro. Ele esteve ao meu lado quando precisei. Houve uma época em que só tínhamos um ao outro.
       Virando-se, Luana coloca a cerveja no balcão em frente a Andrade – um dos frequentadores assíduos – e pega seu dinheiro, dando mais uma olhada para mim enquanto registrava a venda no caixa.
    — Seu carro não está funcionando — afirma. — E está escuro lá fora. Não pode ir a pé até no cinema. Traficantes sexuais estão à procura de adolescentes andando sozinhos, e essas merdas todas.
      Solto um bufo. — Você precisa parar de assistir programas policiais.
      Podemos estar bem perto de algumas cidades maiores, mas ainda estamos no meio do nada.
      Levanto a divisória e saio de trás do balcão.
   — O cinema fica virando a esquina no quarteirão — comento. — Chego lá em dez segundos, se eu correr como se estivesse nas eliminatórias.
      Dou um tapinha nas costas de Andrade ao sair, e o vejo se virar e dar uma piscadinha para mim. — Tchau, criança — ele se despede. — Noite.
— Kelvin, espera — Luana grita mais alto que a música, e viro a cabeça para olhar para ela.
Vejo quando ela pega uma caixa do cooler, junto com uma caixa de vinho embrulhada e empurra os dois através do balcão para mim.
— Feliz aniversário — diz ela, sorrindo como se soubesse que eu provavelmente pensei que ela tivesse esquecido.
Começo a sorrir e levanto a tampa da pequena caixa, vendo meia dúzia de donuts.
— Foi tudo o que pude conseguir às pressas — explica ela.
Ah, mas é bolo. Mais ou menos. Não vou reclamar.
Fecho a caixa e abro a mochila, escondendo lá dentro meu dinheiro, vinho e tudo mais. É evidente que não esperava que alguém me desse alguma coisa, mas ainda assim, é bom ser lembrado. Berê, minha irmã, sem dúvida vai me surpreender com uma linda camisa ou um par de brincos amanhã quando eu a vir, e meu pai provavelmente me ligará em algum momento desta semana.
Luana sabe como me fazer rir, no entanto. Ter um pouco de vinho para eu poder beber escondido e desfrutar, no cinema, será minha pequena aventura de hoje à noite.
— Obrigada — agradeço e me empoleiro no balcão, dando um beijo em seu rosto.
— Tome cuidado — pede.
Aceno uma vez e me viro, saindo pela porta de madeira e pisando na calçada.
A porta se fecha atrás de mim – a música lá dentro agora só uma vibração – e meu peito cede, soltando a respiração que não percebi que estava segurando.
Eu a amo, mas gostaria que não se preocupasse comigo. Ela olha para mim como se fosse minha mãe e quisesse consertar tudo.
Acho que seria muita sorte ter uma mãe como ela.
O ar puro e acolhedor me envolve, o frio da madrugada faz meus braços se arrepiarem, e o perfume das flores de maio flutua até meu nariz. Inclino a cabeça para trás, fecho os olhos e respiro profundamente, alguns fios do meu cabelo caindo nos meus olhos com a brisa leve.
Noites quentes de verão estão chegando.
Abro os olhos e olho para a esquerda e depois à direita, vendo as calçadas vazias, porém os carros ainda estão nos dois lados da rua.
A noite está agradável, embora esteja um pouco frio. Meu nariz ainda sente o cheiro das bebidas que impregnavam cada espaço dentro do bar.
Barulho demais e muitos olhos, também.
Eu ando mais depressa, animado para desaparecer na escuridão do cinema por um tempo. Normalmente não vou sozinho, mas quando estão mostrando um filme dos anos 80 como "Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio", eu tenho que ir. Jonatas só quer saber de efeitos especiais e não confia nos filmes feitos antes de 1995.
Acabo sorrindo ao pensar em suas manias. Ele não sabe o que está perdendo. Os anos 80 foram fantásticos. Foi uma década inteira de diversão da boa. Nem tudo precisava ter um significado ou ser profundo.
É uma fuga bem-vinda, especialmente esta noite.
Virando a esquina e caminhando até a bilheteria, percebo que estou alguns minutos adiantado, o que é ótimo. Odeio perder os trailers.
— Um ingresso, por favor — peço ao caixa.
Pego na mochila o dinheiro das gorjetas que consegui esta noite e pago os quinze reais pela entrada. Não que eu tenha dinheiro sobrando, com o aluguel vencendo e uma pequena pilha de contas na mesa, lá no nosso apartamento que ainda não podemos pagar, mas não é como se quinze reais fossem me salvar ou levar à falência.
E é meu aniversário, portanto...
Entrando, desvio da lanchonete e me dirijo para a próxima porta dupla. Só tem um cinema na cidade e, surpreendentemente, este lugar sobreviveu por sessenta anos, mesmo na sombra dos doze maiores cinemas construídos na região. Por causa da faculdade e do trabalho não venho muito aqui, mas é um lugar legal e escuro quando você quer sumir por um tempo. Reservado e silencioso.
Atravessando a porta, verifico meu telefone mais uma vez e vejo que Jonatas ainda não ligou ou mandou uma mensagem. Coloco o celular no silencioso e guardo de volta no bolso.
Alguns anúncios aparecem na tela, mas as luzes estão acesas, e eu rapidamente percorro os olhos pela sala, vendo alguns solitários espalhados. Também vejo um casal sentado na última fileira nos fundos à minha direita, e um pequeno grupo de rapazes no meio – garotos, pelo som das risadas altas. Com cerca de trezentos lugares, duzentos e oitenta e cinco ainda estão disponíveis, basicamente posso escolher qualquer assento.
Passo por cinco ou seis fileiras, encontro uma vazia e me sento bem no meio. Coloco a mochila do lado e discretamente tiro a caixa roxa de vinho, lendo o rótulo sob a luz fraca.
Merlot. Pensei que fosse vinho branco, mas tenho certeza de que Luana precisa se livrar dessa coisa. Nós só servimos isso quando tem algum evento ao ar livre e não queremos taças de vidro lá fora.
Ao abrir a tampa, inalo o aroma pungente, sem sentir nadica dos cheiros extravagantes que os sommeliers parecem perceber do vinho. Nenhum indício de carvalho com um "aroma arrojado de cerejas" ou qualquer coisa assim. Deslizando o suporte na minha frente, aproveito a fileira vazia à minha frente e dobro os joelhos, encaixando os pés nos braços entre os assentos vazios.
Colocando a caixa de vinho no suporte, pego meu telefone do bolso, por precaução, caso meu namorado ligue, e o deixo ao lado dela.
Mas, em vez disso, o aparelho escorrega do suporte. Ele desce entre as minhas pernas e cai no chão, e ao levantar os joelhos para tentar pegá-lo, acabo esbarrando no suporte, jogando a caixa com vinho no chão.
Abro a boca e arfo. — Merda! — solto num sussurro.
Mas que merda?!
Abaixando os pés, empurro a bandeja de lado e me inclino para baixo, tateando à procura do telefone. O vinho derramado molha meus dedos, e estremeço com a sujeira. Olhando por cima dos assentos, vejo o grupo dos três rapazes poucas fileiras à frente.
Gemo. Que maravilha.
Uma leve camada de suor esfria minha testa, e eu me levanto, tirando uma camiseta da bolsa para secar os dedos. Odeio sujá-la, mas não tenho nenhum guardanapo.
Que bagunça.
Tanto esforço para escapar por duas horas.
Olho ao redor em busca de um dos famosos "lanterninhas" com uma lanterna, bastante certa de que este cinema não tem esse tipo de funcionário, principalmente a esta hora da noite, mas a única iluminação que tenho está no meu telefone, e o chão está escuro.
Não vendo ninguém, pego a camiseta e a mochila e sigo até a fileira de baixo, me agachando e olhando sob os assentos para ver se consigo achar meu celular. Quando não encontro nada, vou até a próxima fileira e depois na seguinte, pois com certeza o ouvi deslizar um pouco. Como as fileiras são inclinadas, pode ter ido longe também. Droga.
Indo para a próxima fileira, coloco minhas coisas de lado e engatinho, olhando debaixo das poltronas à esquerda e à direita, tateando o chão. Um longo par de pernas vestidas de jeans está à frente, e eu olho para cima, vendo um homem sentado no banco com a mão cheia de pipoca a caminho da boca. Ele fica me olhando com as sobrancelhas levantadas.
— Desculpa — sussurro. — Deixei cair minha bebida e meu telefone caiu e deslizou para algum lugar aqui. Se importa de eu procurar...?
Ele hesita um instante e depois pisca, sentando-se.
— Não, pode olhar. — Ele coloca o suporte dele de lado e se levanta, tirando algo do bolso. — Aqui.
Ele acende a lanterna do seu telefone e se agacha, iluminando sob os assentos.
Imediatamente, vejo meu celular debaixo do assento ao lado do dele e o pego. Obrigada, Senhor. Nós dois nos levantamos e meus ombros relaxam. Não posso comprar outro agora. Passo os dedos sobre a tela para ver se não tem nenhum arranhão ou se o vidro trincou.
— Pegou? — pergunta.
— Sim, obrigada.
Ele apaga a lanterna, mas se aproxima, passando os dedos na parte de baixo do meu telefone e os leva ao nariz, cheirando.
— Isso é... — Ele estremece. — Vinho?
Olho para o chão, vendo que ele está em cima do vinho que eu derramei três fileiras acima.
— Oh, nossa. — Olho para ele. — Desculpa. Está por todo lado?
— Não, não, está tudo bem. — Ele solta uma risada, os lábios se curvando mais em um dos cantos com um sorriso, logo se afastando da sujeira. — Não sabia que vendiam bebidas alcoólicas aqui.
Pego a camiseta que agora precisarei jogar fora e limpo o telefone.
— Ah, eles não vendem — comento em voz baixa, para não incomodar os outros no cinema. — Acabei de sair do trabalho. Minha chefe me deu para... hum. — Balanço a cabeça, em busca do que dizer. — Para, uh... comemorar.
— Comemorar?
— Shhh — alguém sussurra.
Nós dois olhamos para o cara uma fileira atrás e à direita que está nos olhando feio de rabo de olho. Nem os trailers nem o filme começaram ainda, e não estamos em sua linha de visão, mas acho que estamos perturbando-o. Eu me afasto para tentar alcançar minha mochila.
O homem me ajuda, pega sua bebida e pipoca, me seguindo, e o leve cheiro de seu sabonete me atinge.
— Só vou mais pra lá para sair da sujeira — diz ele.
Ele senta algumas cadeiras abaixo e olha para mim e depois para onde eu estava sentado quando meu telefone e vinho caíram.
— Fique à vontade se quiser se sentar. — Ele gesticula para o assento ao lado dele, provavelmente descobrindo que estou sozinho esta noite também.
— Obrigada — respondo. — Mas vou só...
Eu não termino. Afasto-me e pego minha mochila, virando para voltar ao meu lugar quando vejo um rapaz e uma garota entrarem no cinema. Eu fico paralisada, observando-os subindo à esquerda, para a última fileira do outro lado da sala, sentando-se em seus lugares.
Merda.
Frank. O único outro namorado que tive além de Jonatas, e ele o faz parecer um príncipe. Infelizmente, ele ainda adora me humilhar sempre que tem uma chance, e de jeito nenhum vou aguentá-lo hoje à noite.
— Você está bem? — o cara do telefone com a lanterna pergunta quando eu não me movo. — Juro que não estou te passando uma cantada. Você é velho demais pra mim.
Viro o olhar para ele, esquecendo Frank e a garota por um minuto. Velho demais para ele? Como assim? Observo seus mais de um metro e oitenta de altura, o contorno visível dos músculos através da camiseta, e o antebraço direito coberto de tatuagens desaparecendo por baixo da manga. Vi muitos caras no bar, e ele não se parece com nenhum garoto de vinte anos que já vi. Ele tem que ter pelo menos o quê? Uns trinta?
Ele bufa.
— Estou brincando — declara, sua boca se abrindo em um largo sorriso que faz meu rosto ceder um pouco. — Se não quiser assistir ao filme sozinho, pode se sentar aqui. Foi só o que eu quis dizer.
Dou uma olhada para Frank e com quem quer que seja sua companhia, mas então um grupo de rapazes de repente empurra a porta dupla, fazendo muito barulho quando entram no cinema. Eu o vejo afastar o olhar da garota e virar para a comoção, e despenco no assento ao lado do cara por puro instinto, não querendo que ele me visse.
— Obrigada — digo para ele.
Eu sinto a presença do meu ex no cinema, e as memórias surgem, fazendo com que eu recorde do quanto deixei que ele me fizesse sentir impotente no passado. Só quero uma noite sem pensar em nada.
Eu me recosto e tento relaxar, mas então, dou uma espiada de rabo de olho, e a proximidade de um cara que não conheço sentado ao meu lado, de repente, parece uma fogueira escaldante e impossível de ignorar.
Viro a cabeça, olhando apreensivo para ele.
— Você não é um serial killer, né?
Ele franze a testa e olha para mim.
— Você é?
— Eles são geralmente homens caucasianos e antissociais.
Homem bonito completamente sozinho aqui? Hmmm...
Ele arqueia uma sobrancelha bem acentuada.
— E eles poderiam ser qualquer pessoa — acrescenta, com suspeita na voz enquanto me olha de cima a baixo.
O brilho dos anúncios na tela reflete em seus olhos, nenhum de nós se mexe, mas não aguento mais. Dou uma risada baixinha.
Estendo a mão para ele, por fim.
— Meu nome é Kelvin. Peço desculpas pelo vinho. — Prazer. — ele diz, pegando minha mão ao me cumprimentar.
Depois de cumprimentá-lo, relaxo no assento e cruzo os braços, levantando os joelhos e colocando os pés no espaço entre os dois lugares vazios à minha frente.
— Gosta de filmes dos anos 80? — pergunto, apontando para o filme que estamos prestes a assistir.
— Gosto de filmes de terror — esclarece e oferece a pipoca para mim. — Este é um clássico. E você?
— Eu amo os anos 80. — Pego um pouco e jogo algumas na boca. — Meu namorado odeia o meu gosto por filmes e músicas, mas não resisto. Sempre venho quando tem algo dessa década passando.
Eu me sinto estranho deixando escapar sobre um namorado do nada, mas não quero passar a impressão errada. Rapidamente olho na sua mão esquerda, e ainda bem que não vejo uma aliança de casamento. Seria errado ficar aqui com um homem casado.
Mas ele apenas me observa com um olhar perspicaz.
— "Clube dos Cinco" é o seu favorito, né? — pergunta. — E todas as demais criações de John Hughes?
— Tem alguma coisa contra "Clube dos Cinco"?
— Não nas dez primeiras vezes que assisti.
Meus lábios formam um sorriso. Passa muito na TV, acho.
Ele se inclina.
— Os anos 80 foram a época dos heróis de filmes de ação — ressalta, sua voz profunda próxima e baixa. — As pessoas se esquecem disso. "Máquina Mortífera", "Duro de Matar", "O Exterminador do Futuro", "Rambo"...
— Jean-Claude Van Damme — acrescento.
— Exatamente.
Eu mordo o canto da boca, para não rir, mas minha barriga treme de qualquer maneira, e solto uma risada.
Ele franze o cenho.
— Do que você está rindo?
— Nada — respondo rapidamente, assentindo. — Van Damme. Ótimo ator. Filmes bastante relevantes.
Não consigo esconder a vontade de rir, e ele enruga a testa, sabendo que estou mentindo.
Bem nesse momento escuto uma risadinha em algum lugar atrás de mim, e olho por cima do ombro, vendo Frank se inclinar sobre a garota, os dois no auge da pegação.
— Você os conhece? — pergunta o homem ao meu lado.
Aceno com a cabeça, negativamente. Ele não precisa saber das minhas coisas.
Ficamos em silêncio e termino de comer a pipoca na minha mão, deixando a cabeça cair para trás enquanto observo o teto alto com antigos arcos de ouro. Ele fica sentado ao meu lado e eu respiro profunda e lentamente, apesar do martelar dentro do peito.
Por que estou nervoso? É por causa do Frank?
Não, nem estou pensando nele agora.
As pessoas conversam ao nosso redor, esperando o filme começar, mas não consigo ouvir o que estão dizendo, e realmente não me importo. Eu sinto um calor na pele.
— O que está estudando na universidade de nova primavera? — pergunta.
Eu o olho surpreso. Como ele sabe aonde eu estudo?
Serial Killer.
Mas então ele aponta para minha mochila no chão e vejo o chaveiro pendurado com o emblema da universidade.
Oh, dã.
Corrijo minha postura no assento.
— Paisagismo — respondo. — Quero projetar áreas externas bonitas.
— Que legal. Eu trabalho com construção civil.
Dou um sorrisinho para ele.
— Ah, então você constrói áreas internas bonitas.
— Na verdade, não.
Dou risada com seu tom triste como se estivesse muito desanimado com o que faz.
— Eu só as deixo funcionais — ele me corrige.
Ele vira os olhos castanhos-escuros para mim, calorosos e penetrantes, mas então, seu olhar desce para a minha boca por um segundo, e sinto um ligeiro frio na barriga. Ele rapidamente afasta o olhar, assim como eu, e sinto dificuldade para recuperar o fôlego.
Limpando a garganta, eu me inclino para pegar os donuts da mochila, ajeitando o suporte para abrir a caixa.
Sinto o cheiro doce na hora e meu estômago ronca.
Olho a tela, querendo saber se o filme vai começar logo, porque estava os guardando para quando ele começasse, mas agora estou morrendo de fome.
Sinto os olhos do homem em mim, e olho para ele, explicando sobre os donuts.
— É meu aniversário. Além do vinho, minha chefe me deu a única coisa que conseguiu achar em um drive-thru.
Pego um e me recosto, colocando os pés de volta no descanso de braço na minha frente.
— Vai comer todos os seis? — questiona.
Eu paro a rosquinha a cinco centímetros da boca e olho para ele.
— Por um acaso isso vai te incomodar ou algo assim?
— Não, só queria saber se vou conseguir um.
Sorrio e aponto para a caixa, dizendo que pode ficar à vontade.
Ele pega um com cobertura simples, e não sei se ele é do tipo sem frescuras ou se só quis deixar os com coberturas diferentes para mim, mas de qualquer forma, eu meio que gosto disso. Nós nos acomodamos e comemos, mas não pude evitar em dar algumas olhadas sorrateiras para ele de vez em quando.
Seus olhos parecem jabuticabas, bem escuros, o cabelo é um castanho profundo quase preto, acredito eu, mas com a luz baixa e o piscar do telão é quase impossível ter certeza. Tem um pouco de barba no rosto de traço firme e angular, nariz reto, e meu olhar é atraído por algumas falhas em sua barba que me permitem ver pintinhas. A barba o faz parecer ter mais de trinta anos, mas também pode ser todo o trabalho debaixo do sol. Ele é alto, forte, bronzeado e está em forma.
De repente, seus olhos piscam para o lado como se ele me sentisse o observando. Desvio os meus para frente de novo.
Droga.
Não faz mal, certo? É normal achar outras pessoas atraentes. Isso acontece. Quero dizer, Scarlett Johansson é atraente. Não significa que eu esteja interessada nela.
Dou outra mordida no donut, meu olhar indo para o lado outra vez, observando seus braços e as várias tatuagens. Engrenagens pretas e parafusos, parecendo o esqueleto de um robô, um desenho tribal que definitivamente diz que ele era um garoto dos anos 90 e – se eu estiver vendo direito – parece haver um relógio de bolso tentando sair de sua pele. Parece uma miscelânea sem um propósito específico, mas é um belo trabalho. Eu me pergunto qual é a história por trás delas.
Dou outra mordida, a cobertura rosa com granulado colorido envia choques até no fundo da boca e sinto vontade de enfiar tudo na boca de uma vez só.
— Sabe, eu realmente gostaria de ter uma barriga sarada — digo, mastigando —, mas isso é bom demais.
Ele solta uma gargalhada, olhando para mim e rindo.
— Que foi?
— Nada. É que você é... — Ele olha para longe como se estivesse à procura de palavras. — Você é meio que interessante ou... algo do tipo? — Ele sacode a cabeça. — Sinto muito, não sei o que quero dizer. — E então ele solta: — Um fofo. — Como se tivesse acabado de se lembrar. — Você é uma graça, quero dizer.
Sinto um frio na barriga, e um calor aquece meu rosto como se eu estivesse na quinta série outra vez e o garoto que eu tinha uma queda me elogiasse. Sei que ele está falando da minha personalidade e não da aparência, mas eu meio que gosto disso.
Ele termina de comer seu donut e toma um gole de refrigerante.
— Então, quantos anos você tem? — pergunta. — Vinte e três, vinte e quatro?
— Um dia chego lá, com certeza. Ele solta uma risada.
— Vinte. — respondo, por fim.
Ele respira fundo e suspira, com algo distante em seu olhar.
— Que foi? — Dou a última mordida e esfrego as mãos, limpando-as. Eu me recosto e deito a cabeça no encosto.
— Ser tão jovem de novo — diz, pensativamente. — Parece que foi ontem.
Oras, quantos anos ele poderia ter? Vinte anos não pode ser tanto tempo assim para ele. Dez anos a mais que eu? Talvez doze?
— Me conta, faria alguma coisa diferente se pudesse voltar no tempo? — pergunto.
Meio sem jeito ele dá um sorriso tenso e olha para mim, seus olhos sérios.
— Vou te contar uma coisa... um pequeno conselho, tá bom?
Eu presto atenção, olhando diretamente em seus olhos sem desviar.
— Comece a todo vapor — diz.
Hã?
Ele deve ver a confusão no meu rosto, porque continua:
— O tempo passa num piscar de olhos — explica. — E o medo te dá as desculpas que você deseja para não fazer as coisas que sabe que deveria. Não duvide de si mesmo, não suponha, não deixe o medo te segurar, não seja preguiçoso, e não baseie suas decisões no quanto elas farão outras pessoas felizes. Arrisque-se e vá à luta, está bem?
Fico o encarando e, infelizmente, parece que é tudo que consigo fazer. Quero sorrir, porque meu coração está transbordando e a sensação é ótima, mas também estou sentindo algo que não sei explicar. Parece uma dúzia de emoções diferentes inundando de uma só vez, e tudo o que consigo fazer é respirar de forma ofegante.
— Tá bom — sussurro para ele.
Não tenho certeza se o que ele disse era o que eu queria ou precisava ouvir, mas sinto meus ombros aprumarem e meu queixo se elevar a postos. Pelo tempo que durar, serei um pouco mais corajoso, e ele, o meu novo herói.
Vejo quando ele pega uma caixinha e risca um fósforo; a pequena chama acende. Ele o enfia em um dos donuts, o da cobertura rosa – segundo o pedido da Luana, porque ela sabe que é meu sabor favorito – brilha com a chama. Sinto meu coração aquecer com o gesto.
Abaixando os pés, inclino-me para a frente, fecho os olhos e faço meu pedido mentalmente, e então assopro a "velinha improvisada".
Não faço o mesmo desejo de sempre, no entanto. Minha cabeça está vazia de repente, e agora não estou me lembrando de todas as coisas que preciso e quero fora deste cinema. Só consigo pensar em uma única coisa.
Nós dois relaxamos e nos acomodamos, cada um pegando mais um donut enquanto as luzes finalmente se apagam, e o som chega até nós de todos os lados do cinema.
Nos próximos noventa minutos, nós comemos e rimos, e escondo o rosto algumas vezes quando sei que algo vai acontecer. Pulo de susto de vez em quando e dou risada dele quando também se assusta, porque parece envergonhado. Depois de um tempo, percebo que minha cabeça está mais inclinada na direção dele, e ele está com o pé apoiado na cadeira vazia à nossa frente, com a cabeça relaxada no encosto, e estamos completamente confortáveis. Nem me ocorreu manter uma certa distância.
Não assisto muitos filmes com outras pessoas. Não estou acostumada a ficar sentada em silêncio com outra pessoa. Os compromissos de Jonatas e os meus nem sempre se encaixam; minha irmã, Berê, não tem mais quase nenhum tempo livre, e a maioria das minhas amizades do ensino médio não durou muito depois da formatura há dois anos. É bom se divertir com alguém.
Assim que os créditos sobem, não sei bem se me lembro muito do filme. Mas não me sinto relaxado assim há muito tempo. Sorri, fiz piadas e esqueci de tudo que está acontecendo fora dali, e eu precisava disso. Eu realmente não quero ir para casa ainda.
As luzes começam a acender, e devagar me sento direito, abaixando os pés enquanto engulo o nó na garganta e o observo. Ele também se senta, mas praticamente não me encara.
Levanto, pcoloco a mochila nas costas e recolho meu lixo.
— Olha, eles vão exibir "Poltergeist" em algumas semanas — diz atrás de mim, levantando-se e pegando o próprio lixo. — Se eu te vir, não vou esquecer de me sentar no lugar mais alto possível.
Dou risada baixinho, lembrando do vinho. Nós dois saímos da fileira e caminhamos até a saída, e noto que Frank e sua namorada não estão mais em seus lugares. Já devem ter ido embora, mas para dizer a verdade, esqueci que estavam aqui há muito tempo.
"Poltergeist". Quer dizer que ele estará aqui então? Esse é o jeito de ele falar casualmente isso, para o caso de eu querer vir, também?
Mas não deve ser, ele sabe que eu tenho namorado.
No entanto não consigo deixar de pensar que se por algum motivo Jonatas e eu não durarmos até lá, será que eu viria ao cinema, sabendo que ele estaria aqui?
Pisco por vários instantes, culpa me inundando conforme caminho pelo corredor. Eu provavelmente viria. Não existem muitos "bom partidos" nesta cidade, e eu me diverti hoje à noite. Esse homem é interessante.
E tem boa aparência.
E tem emprego.
Eu devia armar para juntar ele com a minha irmã mais velha. Como ele passou despercebido sob o radar dela esse tempo todo é um mistério para mim.
Empurramos a porta – os últimos saindo da sala –, e paramos no saguão, jogando fora nossos lixos.
Eu olho para ele e meu coração dispara ao vê-lo sob a luz mais forte, parado na minha frente. Olhos de jabuticabas. Definitivamente olhos de jabuticabas.
Seu cabelo é cacheado e é comprido no ponto certo de se acariciar com os dedos, e permito que meus olhos desçam para o pescoço macio e bronzeado. Porém não consigo ver se tem marca de bronzeado sob a gola da camiseta. Ele é assim em todos os lugares? Sem aviso, uma imagem dele martelando e carregando madeira sem camisa aparece na minha cabeça e eu...
Fecho os olhos de novo, balançando a cabeça. Ei, calma, respira, está tudo bem.
— Hum, é melhor ir andando — eu digo a ele, apertando a alça da mochila. — Meu namorado já deve estar me esperando no bar agora para me buscar.
— Bar?
— Naitandai? — respondo, pensando que ele provavelmente deveria conhecer o lugar. É um dos únicos três bares da cidade, apesar de muitos preferirem o "Poor Red's" ou o clube de strip do que a espelunca onde eu trabalho. — Saí um pouco mais cedo hoje, sem aviso, mas é com ele que vou embora e não consegui falar com ele pelo celular. Mas já deve estar lá agora.
Ele abre a porta, segurando-a para mim enquanto saio do cinema e me acompanha.
— Bem, tomara que tenha tido um bom aniversário, apesar de ter trabalhado — diz ele.
Eu viro à direita, na direção do Naitandai, e ele à esquerda.
— E obrigada por me fazer companhia — agradeço. — Espero não ter estragado o filme pra você.
Ele olha para mim por um momento, sua respiração ficando mais pesada enquanto uma expressão dividida cruza seu rosto. Finalmente, ele sacode a cabeça, desviando os olhos.
— Nem um pouco — diz ele.
Um momento de silêncio se passa e, lentamente, nós dois nos afastamos, mas sem dar às costas um para o outro.
O silêncio se prolonga, a distância aumenta, e por fim, ele levanta a mão, acenando ao se despedir antes de colocar as mãos nos bolsos de trás.
— Boa noite — diz ele.
Eu só fico olhando-o fixamente. É, boa noite.
E então, eu me afasto, sentindo-me mal por dentro.
Eu nem sequer perguntei o nome dele. Seria legal dizer "oi" se eu o encontrasse de novo.
Não tenho tempo para remoer sobre isso porque meu telefone toca e eu o tiro do bolso, vendo o nome de Jonatas na tela.
Paro na calçada e atendo.
— Oi, você está no Naitandai? — pergunto. — Estou quase chegando.
Ele não diz nada, entretanto, e eu pauso antes de chamar seu nome:
— Jonatas? Alô, você está aí? Nada.
— Jonatas? — digo mais alto.
Mas a linha está muda. Quando vou ligar para ele, escuto uma voz atrás de mim.
— O nome do seu namorado é Jonatas? — o homem do cinema pergunta. — Jonatas Neves?
Eu viro e o vejo caminhar lentamente de volta para mim.
— Sim — respondo. — Você o conhece?
Ele hesita por um segundo como se chegasse à conclusão de alguma coisa, e então estende a mão, finalmente se apresentando.
— Meu nome é Ramiro. Ramiro Neves.
Neves?
Ele faz uma pausa por um instante e depois acrescenta:
— O pai dele.
Fico sem ar.
— Como? — arfo.
O pai dele?
Fico boquiaberto, mas logo me recomponho, olhando para este homem com novos olhos enquanto começo a entender.
Jonatas falou pouco sobre o pai – eu sabia que ele morava aqui –, mas eles não são próximos, pelo que entendi. A impressão que tive do pai de Jonatas com base nas breves menções do filho não coincide com o homem com quem conversei no cinema hoje. Ele é legal.
E fácil de conversar.
E ele, dificilmente, parece ter idade suficiente para ter um filho de Vinte e um anos, pelo amor de Deus.
— O pai dele? — digo em voz alta.
Ele me dá um breve sorriso e sei que essa é uma reviravolta que não estava esperando, também. Escuto o celular dele vibrar no bolso, e ele o pega, verificando a tela.
— E se ele está me ligando agora, deve estar com problemas — diz, olhando para o telefone.
— Precisa de uma carona?
— Uma carona pra onde?
— Delegacia, eu presumo. — Ele suspira, atendendo o telefone e mostrando o caminho. — Vamos.

Birthday BoyOnde histórias criam vida. Descubra agora