Acordei com o som estridente do despertador, os olhos entreabertos lutando contra a invasão da luz matinal que escapava pelas frestas da cortina. Com um suspiro profundo, desliguei o alarme e me permiti alguns segundos a mais na cama, sentindo a brisa suave da manhã que entrava pela janela semiaberta.
"bom dia, Christian," murmurou minha voz sonolenta, sem muita convicção.
Apesar da aparente estabilidade em minha vida, uma sensação sutil de inquietação persistia. Eu tinha um trabalho estável, uma namorada amorosa e um círculo de amigos confiáveis - tudo o que muitos considerariam como garantia de felicidade. No entanto, em meio à rotina previsível das manhãs e aos momentos de silêncio contemplativo, eu não podia ignorar a voz suave da dúvida que sussurrava em minha mente.
Enquanto observava a paisagem em constante movimento através da janela do ônibus, ao ir trabalhar, uma sensação de desconforto se misturava à minha aparente tranquilidade. Era como se uma parte de mim estivesse satisfeito com a vida que construí, mas outra parte ansiava por algo mais.
Essa dualidade interior me deixava intrigado, às vezes até perturbado. Talvez fosse o medo de ficar estagnado em uma existência previsível, ou talvez fosse o anseio por outras coisas que eu não fazia ideia. Seja qual for a razão, a sensação de estar preso em uma vida "tranquila" me deixava inquieto, questionando se havia mais para explorar além das fronteiras confortáveis do meu cotidiano. Sempre sentava no mesmo lugar, antepenúltimo banco ao lado direito, assim eu poderia ver as outras almas que assim como eu também tinham as mesmas rotinas, era quase como um consolo para mim.
Naquela manhã ensolarada de sexta-feira, senti o alívio da semana se despedindo e a promessa de um merecido descanso se aproximando. Enquanto eu navegava pelas tediosas planilhas do escritório, o peso das responsabilidades e a ansiedade pelo futuro se misturavam em minha mente. Apesar de já estar comprometido, o conceito de casamento e a construção de uma vida juntos ainda pareciam um desafio assustador. Afinal, aos meus 24 anos, eu estava apenas começando a compreender o que significava a verdadeira independência e responsabilidade. Com o fim do expediente se aproximando, a tensão que pairava no ar começava a se dissipar lentamente. Após horas dedicadas ao trabalho, finalmente chegava o momento tão aguardado. Com um suspiro de alívio, afrouxei a gravata e desabotoei o colarinho da camisa, permitindo que o ar fresco inundasse meus pulmões. Eu estava livre!
Cheguei em casa, fui envolvido por uma onda de calor nada acolhedora, como se o próprio diabo estivesse me abraçando. O sol poente tingia a sala com tons dourados, infiltrando-se pelas cortinas semiabertas e criando padrões de luz dançantes pelo chão de madeira polida. Cada móvel, meticulosamente escolhido por tia Vera parecia contar uma história própria, desde o sofá de couro desgastado até a poltrona vintage que ocupava um canto.
No entanto, era o home bar de Tio Gregório, (agora meu) que dominava o espaço com sua presença imponente e convidativa. Uma relíquia dos anos 90, sou grato por ele aderir à moda de ter um bar em casa, exibindo seu bom gosto em cada detalhe. Feito de madeira escura polida à perfeição, ele emanava uma aura de elegância discreta, garrafas de diversos formatos e cores repousavam em suas prateleiras, cada uma contendo sua própria história e sabor. O aroma suave de madeira envelhecida e álcool fino impregnava o ar.
Aproveitei para me servir uma dose de whisky, o tilintar do gelo batendo em meu copo, ecoava por aquela sala silenciosa, despertando memórias adormecidas. Num instante, fui transportado de volta aos dias ensolarados da minha infância, quando tio Gregório colocava seus vinis de Caetano ou Bon Jovi no toca-discos antigo. Lembrei-me de nós três - eu, meu irmão Cesar e minha amiga Mariana - dançando pela sala como se não houvesse amanhã... A música era a trilha sonora das nossas brincadeiras e confidências, um elo que nos unia mesmo quando a vida nos levava por caminhos diferentes.