mentiras

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A noite havia caído de uma maneira silenciosa, como se o próprio tempo tivesse desacelerado. O céu, outrora repleto de um vazio sem fim, agora estava coberto por nuvens pesadas, quase como se algo estivesse encobrindo a própria luz das estrelas. A atmosfera ao redor parecia densa, carregada com uma energia estranha, como se o ar em si estivesse se distorcendo. Lily estava sentada entre as crianças, ainda se acostumando com o que acontecia ali, com os outros, com aquele limbo que se arrastava ao redor dela.

"Vamos brincar", disse Henry, com um sorriso largo, um sorriso que parecia um pouco forçado, mas que ele usava como se fosse sua própria armadura. Ele se levantou, gesticulando para que as outras crianças se juntassem a ele ao redor de uma fogueira improvisada. O fogo queimava com uma intensidade suave, mas a luz que emanava era gélida, como se o calor não fosse suficiente para afastar a sensação de desconforto que pairava no ar.

O sorriso de Henry não era o sorriso de um garoto alegre. Era o sorriso de alguém que sabia demais, de alguém que entendia que, em um lugar como aquele, a alegria era uma faca de dois gumes. Se eles não se alegrassem, se não brincassem, se não se distraíssem de alguma forma, a dor se espalharia rapidamente. A dor, o medo — essas eram as coisas que o "homem" lá fora buscava, alimentando-se delas até que não sobrasse mais nada.

Lily sentiu o peso do olhar de Henry sobre ela, como se ele estivesse esperando algo dela, algo que ela ainda não compreendia. Ele não estava apenas convidando as outras crianças, ele estava chamando a ela de maneira especial, de maneira diferente. Como se soubesse que havia algo nela que os outros não possuíam. Mas o que era isso? O que havia de tão importante nela, que ele parecia identificar, mas não conseguia decifrar?

A fogueira iluminava os rostos das crianças ao redor. As crianças não estavam exatamente felizes, mas estavam tentando. Tentando seguir o que Henry fazia, tentando criar uma normalidade naquele lugar de distorções. Eles riam, mas era uma risada vazia, como se a alegria fosse uma forma de manter a coisa terrível lá fora longe deles. Mas Lily sentia que havia algo mais nesse jogo, algo que não era apenas um reflexo de medo e manipulação. Henry sabia disso. Ele sabia que a felicidade deles não era uma escolha, mas uma necessidade, uma barricada invisível contra o mal que os cercava.

As outras crianças começaram a se reunir em torno da fogueira, mas Lily permaneceu onde estava, sentada, observando tudo com uma sensação crescente de estranhamento. Ela podia sentir a tensão nas mãos de Henry, a maneira como ele parecia se preocupar com a sensação de desespero que ele tanto tentava esconder. Aquelas crianças não eram apenas vítimas dessa maldição. Elas estavam, de algum modo, sendo treinadas para uma sobrevivência que não fazia sentido. Henry, como o primeiro a ser pego, sabia que qualquer sinal de fraqueza, qualquer queda na felicidade, poderia desencadear algo muito pior.

"Vamos jogar, Lily", Henry disse com uma calma que parecia exagerada. Ele estendeu a mão para ela, sua expressão cheia de uma determinação silenciosa, como se quisesse que ela entendesse a importância de estar ali, naquele momento.

Lily hesitou. Ela sentiu que havia algo ali, algo que não podia ser ignorado. A necessidade de manter a fachada da felicidade parecia ser a única coisa que os impedia de cair no abismo. Mas por que Henry estava sendo tão insistente? Por que ele estava olhando para ela de maneira diferente?

Ela se levantou, sentindo uma estranha urgência, como se sua presença fosse fundamental para algo que ela ainda não entendia. Quando se aproximou da fogueira, as crianças ao redor a observavam em silêncio, mas seus olhos estavam vazios, como se soubessem que não havia mais esperança ali, apenas a necessidade de sustentar essa fachada de normalidade. Mas Henry parecia acreditar que algo estava prestes a acontecer, algo que ele não podia deixar escapar.

A chama da fogueira tremulava, e a sombra de Henry parecia se estender até ela, mais pesada do que o próprio fogo. Ele sorriu mais uma vez, e, por um momento, Lily viu nele algo que ela não sabia explicar. Havia uma dor profunda em seus olhos, algo que refletia a solidão de ser o primeiro a passar por aquilo, de ser o portador da verdade, mas também o prisioneiro dessa mesma verdade. Ele sabia que a máscara de felicidade que estavam criando ao redor da fogueira era a única coisa que os mantinha longe do caos. E ele sabia que, se isso falhasse, se a dor e o medo voltassem a dominá-los, o "homem" não demoraria a se aproximar.

"Você é diferente", ele disse, sua voz mais baixa, quase um sussurro. "Eu posso sentir. Não sei o que você tem, mas é importante."

Lily olhou para ele, confusa, seu coração batendo forte no peito. O que ele queria dizer com aquilo? O que ela tinha que fosse tão importante para ele, algo que ela não compreendia?

"Não posso explicar", Henry continuou, com um olhar que parecia carregado de uma dor profunda. "Mas o medo, a dor... o 'homem' se alimenta disso. E você... você pode ser a chave para manter ele longe. Mas não sei como. Não sei o que você é, mas..."

Antes que ele pudesse terminar, um estalo súbito veio do lado de fora da fogueira. A noite parecia ter ficado mais pesada, mais densa, e a luz da chama parecia mais fraca, como se alguma presença estivesse se aproximando.

Henry engoliu em seco. Ele sabia o que aquele som significava.

"Brinquem!", ele gritou para as outras crianças, tentando manter a fachada, tentando manter todos juntos, mantendo a alegria acesa. "A alegria é tudo! Não deixem o medo tomar conta!"

Lily não entendeu, mas sentiu. Sentiu a intensidade da verdade não dita. O homem estava mais perto, e a única coisa que os protegia era a mentira da felicidade.

Ela olhou para Henry, que agora estava mais sério, mais tenso, como se estivesse aguardando algo que ele não queria ver. Algo que ele não queria que acontecesse.

E o que Henry não sabia, o que ele ainda não entendia, era que o "homem" não era apenas uma presença externa. Ele era uma parte daquele lugar, uma extensão da própria maldição. E cada sorriso, cada brincadeira, cada pedaço de felicidade que eles tentavam criar era, na verdade, um escudo contra algo muito mais profundo e sombrio.

Lily não sabia se estava pronta para enfrentar o que estava por vir, mas uma coisa era certa: ela agora fazia parte disso. Ela estava dentro dessa mentira. E a pergunta era: até onde ela poderia ir antes de ser consumida por ela?

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