O homem sem rosto

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Estava terrivelmente atrasado.

Vesti meu melhor terno. Era preto – logicamente – com abotoaduras douradas, bastante sóbrio, perfeito para a ocasião. Enfiei na cara minha melhor expressão de tristeza e saí depressa de casa.

Dormi muito mal aquela noite. Tive pesadelos horríveis, os piores da minha vida. Um homem sem rosto me perseguia em um labirinto de corpos... Eu corria e corria, mas ele caminhava calmamente, como se não tivesse pressa. Arrastava um facão gigante e pesadíssimo pelo chão, produzindo um som estridente e arrepiante, como o de talheres sendo afiados, porém muito mais alto e perturbador.

Em algum momento escorreguei em uma poça de sangue fresco e cai de cara na barriga dilacerada de uma mulher de cabelos longos e negros, que lhe enforcavam o pescoço; os olhos dela estavam amarelados e senti sua pele flácida e decomposta desfazendo-se sob minhas unhas. Ela me olhou bem no fundo da alma e disse que meus dias estavam contados. Foi nesse momento que ouvi a respiração lenta e profunda do homem sem rosto. Não tive alternativa senão virar-me para vê-lo atrás de mim, me encarando sem olhos. Seu rosto era uma mera sombra, sua pele estava apodrecida e ele ergueu o enorme facão.

Acordei quando a arma desceu sobre mim, aos gritos, suando frio. Olhei no relógio: já eram quase seis horas da manhã. Eu deveria ter levantado às cinco. Precisava subir a serra e chegar até a capital. Mas não consegui me levantar, mesmo que fosse necessário. Ainda sentia o suor escorrendo gelado por minhas costas, a respiração entrecortada e desesperada, o arrepio nos pelos da nuca. Fora um sonho muito real. Era como se eu fosse olhar por cima do ombro e encontrar aquela criatura me perseguindo com seu facão sangrento.

Precisava esquecer aquele pesadelo, foi o que pensei, ajustando o nó da gravata. Tinha um compromisso para ir e já estava mais que atrasado. Sonhos eram besteiras, não mereciam atenção. Por mais reais que parecessem.

Saí de casa sem nem tomar café. Comeria qualquer coisa quando chegasse lá. Não gostava de comer nesses ambientes, mas não teria escolha, ou me atrasaria ainda mais. Foi só entrar no meu carro que me senti melhor. Estiquei os braços no volante e comecei a dirigir. Liguei o som. Não havia muito trânsito na cidade àquela hora, portanto logo me vi pegando a estrada. O vento fazia barulho nos vidros das janelas. Estava neblina na serra. As placas eletrônicas recomendavam diminuir a velocidade. Ignorei o aviso e mantive o velocímetro nos 120/h; precisava chegar logo.

Estava com a atenção completamente focada na estrada quando o celular tocou. Ignorei-o por três toques, mas a pessoa era insistente. Apanhei-o no banco do passageiro, levei-o aos olhos por alguns segundos e vi “Número Restrito” no identificador de chamadas. Larguei o celular no banco do passageiro novamente, esperando que caísse na caixa postal. O aparelho estava no viva-voz, então se fosse algo importante, eu escutaria. E o que ouvi foi:

“Estou chegando.”

Era uma voz rouca e profunda, que eu não conhecia. Por um impulso, me distraí e olhei o celular por poucos segundos, em um gesto tolo para identificar de quem seria a voz, e foi o suficiente. Quando voltei meus olhos para a estrada ele estava bem à minha frente.

O homem sem rosto. O facão enorme sendo arrastado pelo asfalto. A pele pútrida e tão fétida que eu conseguia sentir o fedor atravessando mesmo os vidros hermeticamente fechados do carro.

Virei o volante em um reflexo desesperado, produzindo um chiado alto dos pneus. Buzinas e mais buzinas enchiam meus ouvidos, mas nenhuma sobrepunha o bater descompassado do meu peito. Senti o suor gelado de terror e alívio misturados quando finalmente dei por mim e percebi que obtive sucesso ao desviar daquela visão diabólica. Será que dormi ao volante? Observei o retrovisor e por um instante achei ter visto novamente o homem e seu facão, então esfreguei os olhos com as costas da manga e ele sumiu. Mas ainda sentia as mãos tremerem e segurei o volante com tamanha força que os nós dos meus dedos se avermelharam.

Talvez eu precisasse descansar. Meu cardiologista insistiu que eu estava sob um enorme estresse no trabalho e isso ainda resultaria em algo sério. Um acidente foi quase o que resultou. Talvez fosse hora de pensar em pedir aquelas férias acumuladas, quem sabe? Mas pensaria nisso mais tarde, no momento tinha um compromisso para ir.

O trânsito em São Paulo estava infernal como de costume. Mas eu estava com tanta dor de cabeça e tão assustado que nem reclamei dessa vez. Olhava para todos os motoristas nos carros, esperando encontrar algum sem rosto, mas certamente minha busca foi em vão porque aquela bobagem só era resultado de um grande acúmulo de preocupações na minha mente cansada. Quase nove horas da manhã. Se perdesse mais meia hora poderia esquecer o compromisso. Mas valia a pena tentar chegar lá.

Estacionei exatamente às 09h21min no cemitério. Era um daqueles lugares amplos, como se vê nos filmes, não aqueles cemitérios verticais, tão frios e impessoais. Havia um gramado verdíssimo e bem cuidado e muitas campas com fotos, ornamentos e flores. O dia estava ensolarado na capital, tão quente e brilhante que chegava a ser indecente, ainda mais em dia como aquele – um dia de morte. Mas todos os dias alguém morre, então suponho que seja normal alguns deles serem ensolarados, ou teríamos infinitos dias de chuva.

Caminhei apressado até o salão branco, grande e aberto, onde estava sendo realizado o velório. Percebi que cheguei bem em cima da hora; o caixão já estava sendo carregado para o sepultamento e as pessoas nem deram atenção à minha chegada. Tentei falar com a minha ex-namorada, mas ela não me deu atenção: estava com os olhos vermelhos e inchados, tão atônita e em choque que provavelmente nem me escutou chamá-la – ou talvez tenha realmente me ignorado, nossa briga final foi bastante desagradável.

Olhei para o caixão; ainda estava aberto e dois funcionários do local carregavam sua tampa enquanto seguiam bem atrás do cortejo. Acompanhei-os, caminhando mais próximo aos últimos funcionários do que dos conhecidos do falecido. Acabei não falando com ninguém – daria meus sentimentos quando o enterro terminasse. Uma sensação pesada e lenta me acompanhava de perto, produzindo um embrulho no meu estômago. Caminhamos por entre várias tumbas antigas, algumas com estátuas de anjos, outras de... criaturas menos agradáveis? Um bebê com a perna direita lascada e um braço faltando... um anjo com um sorriso malicioso no rosto: faltavam-lhe os três dentes da frente. Um homem... um homem nas sombras, que me observava atentamente.

Era ele.

Senti o já familiar suor nas têmporas e o arrepio indescritível na nuca. Minhas pernas bambearam. Pensei em correr, correr o máximo que minhas pernas conseguissem para o lado oposto, mas o medo é quase sempre carregado de ironia: quanto mais eu queria correr, mais minhas pernas pareciam incapazes de realizar tal movimento. Observei impotente o homem sem rosto levar um dedo pútrido ao que deveriam ser seus lábios, fazer um sinal de silêncio e depois indicar o caixão; as pessoas estavam fazendo uma oração final antes de lacrá-lo em definitivo. Aproximei-me lentamente, cheio de um pavor absurdo quando me lembrei de que ainda não tinha visto o rosto do morto que dali a pouco seria enterrado sob várias pás de terra. O homem sem rosto ainda apontava o caixão e eu quase podia sentir seu sorriso moribundo.

Finalmente, tremendo dos pés à cabeça, olhei dentro do caixão. E gritei de horror, o mais alto que podia, mas ninguém me ouviu. Ninguém jamais me ouviria novamente. Não importava o quão alto eu gritasse, minha voz se transformara em doloroso silêncio.

Era o fim.

Porque o morto dentro do caixão era eu.

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