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As minhas mãos tremem ligeiramente ao apanhar os livros frios do meu – ainda mais frio – cacifo azul. A campainha já tocou... Isso significa que estou atrasada. Caraças, sussurro. Fecho os olhos por uns segundos, suspiro uma vez, e respiro mais profundamente do que é costume antes de reabrir os olhos e começar a andar. Ando numa passada rápida e com ritmo, na direção da assustadora porta de madeira. Diz oito: não o número, mas sim a palavra em si do mesmo, e de certo modo alivia os meus nervos, inexplicavelmente. Fecho a minha mão direita num punho, e antes de eu conseguir responder a qualquer questão que viaja temporariamente pela minha mente, a porta abre e um velho senhor de barbas grisalhas olha para mim.

– Entra. – dispara ele, deitando todo o ar que tinha inspirado para fora. Parece que o facto de eu entrar na sala lhe tira algum peso de cima dos ombros. Estranho, mas ignoro. – Estás atrasada. – eu consigo sentir o calor a emanar das minhas bochechas que ficam rosadas velozmente, mas obviamente faço o que ele diz.

– Peço imensa desculpa... – digo, talvez um pouco mais baixo do que planeava. O senhor não responde, mas sei que sorriu um sorriso torto, logo antes de eu baixar a cabeça. Tento encontrar uma cadeira na qual me possa sentar ao fundo da sala ou perto dele, mas não consigo. A única que encontro está na primeira fila, mesmo ao pé da secretária destinada ao professor. Suspiro após me sentar, e deixo que os meus olhos fiquem pousados na mesa, visto que toda a gente está claramente a olhar para mim. Eu sei que sim, mas não se trata apenas de o saber – eu sinto-o. E que sentimento estranho que é.

O senhor pigarreia.

– Bom dia – começa ele. – Chamo-me Desmond Kev-an-au. Kavanagh. – Dito isto, escreve o seu nome, muito depressa; eu estremeço ao ouvir o som agudo do giz no quadro. – Mas vocês podem-me chamar Mr. Des ou até mesmo Mr. K – ouço algumas pessoas a rirem baixinho. – ... Mas apenas se estiver bem-disposto. Vou ser o vosso professor de Literatura, como talvez já saibam. Porém, também tenho qualificações para ensinar Matemática, portanto se tiverem alguns problemas com o otário do vosso professor, dou explicações de boa vontade. – A turma inteira desata a rir. Eu não rio, pois ainda me estou a adaptar às inside jokes da pequena cidade para a qual me mudei, Oldrose, vinda da "muito longínqua" Shadowdale. Pelos vistos, o professor de Matemática não é flor que se cheire. Mas tenho que comer e engolir, porque vir para esta cidade foi minha ideia. Minha e da minha mãe. As ideias para a nossa família se manter unida e feliz (o que não acontecia, estranhamente, desde o meu nascimento) eram escassas, e mudar de casa e de cidade foi uma sugestão razoavelmente agradável. E, oh, cá estou eu.

– Espero que se saiam bem neste novo ano, especialmente nos exames. Acho que a única pessoa aqui que... – faz uma pausa e sorri. - ...Não me conhece é a garotinha aqui à frente, mas trataremos disso. Vejam se não são muito duros com a vossa colega. – sorrio ao professor após este proferir estas palavras, mas sinto um arrepio ao ouvir algo maldoso vindo do fundo da sala, seguido de risinhos. Engulo em seco. O professor olha para eles e calam-se no segundo. Não sei o que esperar dele, nem de Oldrose, nem de Oldrose High, nem das pessoas por cá. Principalmente das pessoas, penso.

Após um algo típico discurso sobre a matéria a dar durante o ano, a campainha e o seu irritante trrimmm fazem-se ouvir. O professor para-me antes de poder sair da sala.

– Quanto a ti, Selene... - quase que estremeci ao reparar que acertou o nome à primeira. Ninguém o consegue. – Tenta não voltar a chegar à aula atrasada, por favor. Odeio marcar faltas.

– Prometo que não volta a acontecer, Mr. Des. – digo eu, enquanto fito o senhor nos olhos. Tem olhos azuis clarinhos, que combinam perfeitamente com o seu pullover e gravata por baixo do mesmo. Cheira-me que é uma pessoa humilde e simpática. Bastante culto também, visto que pode ensinar Literatura e Matemática. Interessante. Mr. Des deseja-me um bom ano letivo e vira costas, em direção à secretária. Não sei porquê, mas observo-o enquanto se senta com dificuldade na cadeira, deixando um breve "ai" escapar; parece-me algo familiar.

Ainda não conheci ninguém. Ninguém teve curiosidade de falar comigo durante a aula, nem passar um sorriso, um olhar alegre, nada. Volto para o meu cacifo. "Oito". Ainda não tinha reparado bem no facto de todas as coisas nesta escola serem mesmo escritas. Pode ser alguma espécie de tradição esquisita que não me tenha antes ocorrido; não sei. Ao fechar o cacifo, de uma cor azul, – um azul peculiarmente ciano, belo, quente – dou um pequeno salto ao vislumbrar um rapaz mesmo por detrás da porta.

– Oh! Não faças isso outra vez! – digo, expirando lentamente. – Assustaste-me.

– Desculpa. Uh, olá.

– Olá. Não faz mal, sou uma assustadiça. – explico, enquanto olho diretamente para os seus olhos. São olhos verdes azeitona, mas têm alguns tons de azul e cinzento, misturados. Uma raridade. O seu cabelo é mais encaracolado e escuro que o meu; os seus caracóis pretos são volumosos, estendendo-se cerca de dez centímetros (não que eu estivesse a contar, claro) acima do seu couro cabeludo. Não é nenhum modelo, mas se é bonito... é. E tenho que controlar o meu maxilar para não descair. Cerro os dentes. Nenhum de nós fala durante pelo menos uns bons quarenta segundos. Segundos estes que parecem uma eternidade. Olhar nos olhos de alguém durante tanto tempo seguido é muito difícil para um ser humano. Para tal, costuma ser precisa uma certa confiança ou atrevimento. O tempo passa tão devagar.

Uma vez, ouvi dizer que se duas pessoas numa sala de desconhecidos olharem nos olhos uma da outra durante tempo suficiente, tornar-se-ão muito mais próximas. Não aguento mais tempo sem quebrar o silêncio que agora se tornara algo que constrangedor, mas continuo com os meus olhos nos dele. – Falas tu ou falo eu? – sussurro com ironia. Ele ri e quebra o "jogo do sério" que parecia que estávamos a ter, fitando o chão.

– Tens olhos bonitos – diz ele. Sinto que estou a começar a corar, mas tento aguentar essa emoção. Coro com uma facilidade enorme. Não consigo ser fria. Sinto demasiado, e isso prejudica-me sempre. No entanto, nunca alguém me tinha dito tal coisa. Os meus olhos são castanhos, aborrecidos, normais. Muito escuros, quase pretos. Quando brilham, não se nota. Mas são grandes, bem como as pestanas, e talvez seja esse o motivo pelo qual ele me elogiou. Não estou habituada a elogios.

– Tu também. – replico.

– Edward Edwards... Jr. – e estende-me a mão. Suspira e sorri. Eu sorrio e aperto-a. – E tu és a Seléne, certo? – desta vez sou eu a soltar um suspiro. É uma ação que tenho efetuado com alguma frequência, pelos vistos.

– Sa-li-ni. Selene Beckett. Prazer, Edward Edwards Jr. Belo nome.

– Nem me digas nada. Acho que os meus pais estavam ligeiramente tocados quando me batizaram. Acho que nos vamos dar bem, Selene. Podes-me chamar Ed.

– OK, Ed. Ed... Bastante mais fácil. Obrigada, também acho.

A campainha soa novamente. Sinto um suave aperto no coração, e sinto-me estúpida por isso. Mal conheço o rapaz. Mas foi a primeira pessoa da minha idade que veio falar comigo, e creio que significa qualquer coisa.

– Devíamos ir andando. Vemo-nos no próximo intervalo! – diz ele, ao afastar-se rapidamente. Piscou-me o olho. Parecia ser simpático.

No entanto, muitas pessoas parecem ser simpáticas, e tal nem sempre se verifica. Porém, esta situação faz com que eu sinta que o dia não está a correr tão mal como previsto e, para mim, isso já é uma pequena vitória.

Rabisca Um Coração - a odisseiaOnde histórias criam vida. Descubra agora