HUME

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  ...então lançai-o à fogueira... 

Alberto olhava fixamente para a mesa entre os dois. Por fim voltou-se e olhou pelajanela.— O céu está a ficar nublado — afirmou Sofia.-Sim, está carregado.— Vais falar agora de Berkeley? — Ele foi o segundo dos três empiristas britânicos.Mas uma vez que em muitos aspectos ele é um caso à parte, vamos concentrar-nos primeiro emDavid Hume, que viveu entre 1711 e 1776. A sua filosofia é hoje tida como a mais importantefilosofia empírica. Ele também foi de importância essencial por ter inspirado o grande filósofoImmanuel Kant para a sua própria filosofia.— E não tem importância o fato de a filosofia de Berkeley me interessar muito mais?— Isso não tem importância, não. Hume cresceu perto de Edimburgo, na Escócia, e afamília queria fazer dele um jurista. Mas ele afirmava sentir "uma insuperável aversão a tudomenos à filosofia e ao conhecimento em geral".Viveu, como os grandes pensadores franceses "Voltaire" e "Rousseau", em plena épocado Iluminismo e realizou longas viagens pela Europa, antes de se fixar novamente em Edimburgo.A sua obra mais importante, Tratado Sobre a Natureza Humana, foi publicada quando Hume tinhavinte e oito anos. Ele mesmo afirmou que já tivera a idéia para esse livro aos quinze anos.— Estou a ver que tenho de me apressar.— Já falta pouco.— Mas se fizer a minha própria filosofia, será completamente diferente de tudo o queouvi até agora.— Sentes a falta de alguma coisa em particular? — Primeiro, todos os filósofos dosquais ouvi falar até agora eram homens. E os homens parecem viver no seu próprio mundo. Amim interessa-me mais o mundo real. Flores, animais e crianças que nascem e crescem. Os teusfilósofos estão constantemente a falar do homem, e está sempre a aparecer um tratado sobre anatureza do ser humano. Mas este ser humano parece ser quase sempre um homem de meia-idade.Afinal, a vida começa com a gravidez e o nascimento. Acho que até agora não houve suficientesfraldas e gritos de crianças. Talvez também tenha havido muito pouco amor e amizade.— Aí, tens toda a razão. Mas talvez Hume seja justamente um filósofo que pensa deforma um pouco diferente. Mais do que qualquer outro, ele tem como ponto de partida o mundoquotidiano. Acho que Hume tinha um sentido muito apurado para o modo como as crianças — ouseja, os novos cidadãos do mundo — vivem a realidade.— Eu vou conter-me.— Enquanto empirista, Hume via como sua tarefa a supressão de todos os conceitos econstruções especulativas pouco claros que os teus homens tinham concebido até então. Nessaaltura, estava em circulação na escrita e em conversas todo o tipo de conceitos da Idade Média edos filósofos racionalistas do século XVII. Hume queria regressar à sensibilidade humanaoriginal do mundo. Segundo ele, nenhuma filosofia pode alguma vez ignorar as experiênciasquotidianas ou dar-nos regras de comportamento diferentes daquelas que obtemos por meio danossa reflexão sobre a vida quotidiana.— Até agora isso parece aliciante. Podias dar exemplos?— Na época de Hume, estava muito difundida a idéia de que existem anjos. Por anjo,entendemos uma figura humana com asas. Alguma vez viste um ser desses, Sofia? — Não.— Mas já viste uma figura humana?— Que pergunta tão boba.— E também já viste asas?— Claro, mas nunca num homem.— Segundo Hume, os "anjos" são uma idéia complexa. Esta idéia é constituída por duasexperiências diferentes que não estão juntas na realidade, mas foram ligadas na fantasia humana.Por outras palavras, a idéia é falsa e deve ser rejeitada. Do mesmo modo, temos de fazer umaarrumação em todos os nossos pensamentos e idéias. Tal como Hume afirmou: "Pegando aoacaso em qualquer volume acerca de teologia ou filosofia da escola, devemos perguntar: Contémalgum raciocínio abstrato acerca da grandeza ou dos números? Não. Contém algum raciocíniosobre fatos e sobre a realidade baseado na experiência? Não. Então, lançai-o à fogueira porquesó contém ilusão e aparência."— Bastante drástico. — Mas há o mundo, Sofia.Mais fresco e nítido nos seus contornosdo que anteriormente. Hume queria regressar ao modo como uma criança vê o mundo — antes deidéias e reflexões ocuparem espaço na mente. Não disseste que muitos filósofos, dos quaisouviste falar, vivem no seu próprio mundo e que o mundo real te interessa mais?— Sim, mais ou menos isso. — Hume poderia ter dito exatamente o mesmo. Masobservemos mais exatamente o seu raciocínio.— Estou a ouvir.— Hume verifica em primeiro lugar que o homem possui por um lado "impressões", epor outro "idéias". Por impressão, ele entende a sensação imediata da realidade exterior. Poridéia ele entende a recordação dessa sensação.— Exemplos, por favor.— Se te queimas num fogão quente, tens uma impressão imediata. Mais tarde, podesrecordar que te queimaste. É a isso que Hume chama idéia. A diferença é que a impressão é maisforte e viva do que a recordação posterior da impressão. Podes dizer que a impressão sensível éo original e a idéia ou recordação a cópia pálida. Porque, afinal, a impressão é a causa direta daidéia que é conservada na mente.— Até agora estou a acompanhar bem.— Mais adiante, Hume sublinha que tanto uma impressão como uma idéia podem ser ou"simples ou complexas". Ainda te lembras que em Locke falamos de uma maçã. A experiênciaimediata de uma maçã é também uma impressão complexa. Assim, a idéia de uma maçã é tambémuma idéia complexa.— Desculpa a interrupção, mas isso é muito importante?— Se é! Apesar de os filósofos se terem preocupado com uma série de problemasaparentes, não podes agora desistir quando se trata de construir um raciocínio. Hume teriacertamente dado razão a Descartes quanto à importância de se construir um raciocínio a partir dabase.— Para Hume, a questão é que, por vezes, podemos juntar coisas sem que exista umobjeto composto correspondente na realidade. Assim, surgem idéias falsas de coisas que nãoexistem na natureza. Já mencionamos os anjos. E, antes disso, já se tinha falado de crocofantes.Um outro exemplo é o Pégaso, um cavalo com asas. Em todos estes exemplos, temos dereconhecer que a nossa mente fez uma construção no vazio. Retirou as asas de uma impressão eos cavalos de outra. Todos os elementos foram percebidos uma vez e por isso entraram no palcoda mente como impressões verdadeiras. No fundo, a mente não inventou nada. A mente agarrouna tesoura e na cola e construiu idéias falsas.— Entendo. E agora também compreendo que isso pode ser importante.— Ainda bem. Hume quer examinar cada idéia e descobrir se ela é composta de ummodo que não encontramos na realidade. Ele pergunta: em que impressões tem origem esta idéia?Em primeiro lugar, ele tem que determinar de que idéias simples é composto um conceito. Destemodo, obtém um método crítico para analisar as idéias humanas. E é assim que quer organizar osnossos pensamentos e idéias.— Tens um ou dois exemplos?— Na época de Hume, muitas pessoas tinham uma idéia clara do paraíso. Talvez ainda telembres que Descartes explicara que idéias claras e evidentes em si podiam ser uma garantia deque existe uma correspondência na realidade.— Como já disse, não sou esquecida.— É-nos imediatamente claro que "paraíso" é uma idéia extrema-mente complexa. Voureferir apenas alguns elementos: no "paraíso" há um "portão de pérolas", há "estradas de ouro" e"exércitos de anjos" — e assim por diante. Mas ainda não examinamos tudo nos seus elementosparticulares. Porque também "portão de pérolas", "estradas de ouro" e "exércitos de anjos" sãoidéias compostas. Só quando verificamos que a nossa idéia complexa de paraíso é constituídapor idéias simples como "pé-rola", "portão", "estrada", "ouro", "figura vestida de branco" e"asa", é que podemos perguntar se já tivemos de fato alguma vez "impressões simples"correspondentes.— E temos. Mas depois montamos todas as impressões simples numa ilusão.— Sim, Exato, porque quando sonhamos, usamos, por assim dizer, tesoura e cola. MasHume sublinha que toda a matéria, a partir da qual formamos as nossas ilusões, chega à nossamente na forma de impressões simples. Uma pessoa que nunca tenha visto ouro também nãopoderá imaginar nenhuma estrada de ouro. — Ele é muito esperto. E quanto a Descartes e a suaidéia clara de Deus?— Hume também tem uma resposta para isso. Digamos que imaginamos Deus como umser infinitamente inteligente, sábio e bom. Temos então uma idéia complexa que é constituída poralgo infinitamente sábio, infinitamente inteligente e infinitamente bom. Se nunca tivéssemos tido aexperiência da inteligência, sabedoria e bondade, nunca poderíamos ter esse conceito de Deus.Talvez a nossa idéia de Deus implique que ele seja um pai severo, mas justo — ou seja, umaidéia que é composta por "severo", "justo" e "pai". A partir de Hume, muitos críticos da religiãoapontaram precisamente para este fato: a saber, que esta idéia de Deus pode provir do modocomo víamos o nosso próprio pai quando éramos crianças. A idéia de um pai teria levado à idéiade um pai do céu, conforme dizem alguns.— Talvez seja verdade. Mas eu nunca aceitei que Deus fosse forçosa-mente um homem.Em compensação, a minha mãe diz por vezes "Graças a Deusa", ou uma coisa do gênero.— Hume quer atacar todas as concepções e idéias que não provêm de impressõessensíveis correspondentes. Ele afirmava que queria afugentar a bagunça sem sentido quedominara durante tanto tempo o pensamento metafísico e o desacreditara. Mas também usamosconceitos complexos no quotidiano sem nos questionarmos se possuem de fato legitimidade. É ocaso da idéia de um eu ou de um núcleo da personalidade. Esta idéia constituía o fundamento dafilosofia de Descartes. Era a idéia clara e evidente sobre a qual edificou toda a sua filosofia.— Espero que Hume não tenha negado que eu sou eu. Senão falava por falar.— Sofia, se há uma coisa que eu quero que tu aprendas neste curso de filosofia, é que nãopodes tirar conclusões precipitadas.— Continua.— Não, tu podes usar o método de Hume para analisares o que entendes pelo teu "eu".— Então tenho de perguntar primeiro se a idéia do eu é simples ou complexa. — E a queconclusão chegas?— Tenho de admitir que me sinto bastante complexa. Por exemplo, sou bastante bemhumorada. É difícil decidir-me em relação a certas coisas. Além disso, posso gostar e não gostarda mesma pessoa.— Nesse caso, a tua idéia do eu é complexa.— Está bem. Agora tenho de perguntar se tenho uma impressão complexa correspondentea mim. E tenho-a mesmo? Tenho-a sempre?— Não tens a certeza?— Estou sempre a mudar. Hoje já não sou a mesma que há quatro anos. A minhadisposição e a minha idéia de mim própria mudam de minuto para minuto. Por vezes, sinto-me derepente uma pessoa totalmente nova.— Então a sensação de se ter um núcleo de personalidade inalterável é uma idéia falsa.A nossa idéia do eu consiste numa longa série de impressões particulares que tu nuncaexperimentaste "simultaneamente". Hume fala de um "conjunto de diversos conteúdos daconsciência que se seguem uns aos outros com uma rapidez inacreditável e estão constantementeem fluxo e movimento". A nossa consciência seria "uma espécie de teatro", em que essesdiversos conteúdos "entram em cena uns a seguir aos outros, vão e vêm e se misturam entre sinuma variedade infinita de situações e disposições". Para Hume não temos qualquerpersonalidade de base formada em que essas opiniões e disposições vêm e vão. É como asimagens numa tela de cinema: pelo fato de mudarem tão depressa, não vemos que o filme écomposto por imagens individuais. Na realidade, estas imagens não estão ligadas, ou seja, narealidade, o filme é um conjunto de instantes.— Acho que desisto.— Isso quer dizer que desistes da idéia de teres um núcleo de personalidade imutável?— Sim, significa isso.— E ainda há pouco tinhas uma opinião completamente diferente! Tenho de acrescentarainda que a análise de Hume da consciência humana e a sua negação de um núcleo imutável dapersonalidade já tinham sido expostas dois mil e quinhentos anos antes no outro extremo doplaneta.— Por quem?— Por "Buda". É quase inquietante a semelhança do modo como ambos se exprimem.Buda via a vida humana como uma série ininterrupta de processos mentais e físicos que alteram ohomem a cada instante. O bebê não é o mesmo que o adulto, e eu não sou o mesmo que ontem.Buda afirmava: "Nada há de que eu possa dizer "isto é meu", nada de que possa dizer "isto soueu". Não há, portanto, nenhum eu nem nenhum núcleo constante da personalidade."— Sim, isso tem uma semelhança surpreendente com Hume.— Como continuação da idéia de um eu imutável, muitos racionalistas tinham porevidente que o homem tem uma alma imortal. — Mas essa também é uma idéia falsa?— Pelo menos é o que dizem Hume e Buda. Sabes o que se conta que Buda disse aosseus discípulos imediatamente antes da sua morte?— Não, como é que posso saber?— "Todas as coisas compostas estão sujeitas à corrupção." Hume poderia ter dito omesmo. Ou Demócrito. Sabemos que Hume recusou qualquer tentativa de provar a imortalidadeda alma ou a existência de Deus. Isso não significa que achasse ambas as coisas impossíveis,mas achava um absurdo racionalista acreditar que é possível provar a fé religiosa com a razãohumana. Hume não era cristão; mas também não era um ateu convicto. Ele era um homem a quemchamamos "agnóstico".— E o que significa isso?— Um agnóstico é uma pessoa que não sabe se Deus existe. Ao receber a visita de umamigo no leito de morte, o amigo perguntou-lhe se acreditava na vida após a morte. Diz-se queHume respondeu que também era possível que um bocado de carvão atirado ao fogo não ardesse.— Ah...— A resposta foi típica da sua incondicional ausência de preconceitos. Ele apenasaceitava como verdade aquilo de que tinha experiências sensíveis seguras. Deixava todas asoutras possibilidades abertas. Ele não rejeitou nem a crença em Cristo nem a crença em milagres.Mas em ambos os casos se trata justamente de "fé" e não de "razão". Podes dizer que a últimaligação entre fé e saber foi desfeita com a filosofia de Hume.— Disseste que ele não negou categoricamente os milagres.— Mas isso também não significa que tenha acreditado em milagres. Ele sublinha que oshomens têm uma forte necessidade de acreditar naquilo a que hoje chamaríamos "acontecimentossobrenaturais". Mas todos os milagres que se narram aconteceram muito longe de nós ou há muitotempo. Hume recusava os milagres simplesmente porque não tinha visto nenhum. Mas ele tambémnão viu que não pode haver milagres.— Tens que ser mais preciso.— Hume caracteriza um milagre como uma ruptura das leis da natureza. Mas também nãopodemos afirmar que "percebemos" as leis da natureza. Vemos que uma pedra cai no chãoquando a largamos, e se não caísse também o veríamos.— Eu chamaria a isso um milagre — ou algo sobrenatural.— Acreditas então em duas naturezas, uma natureza e uma "natureza" sobrenatural. Nãoestarás a voltar ao absurdo nebuloso dos racionalistas?— Talvez, mas acho que a pedra cai sempre ao chão quando a largamos.— E por quê?— Estás a ser insistente.— Eu não sou insistente, Sofia. Para um filósofo, nunca é errado fazer perguntas. Talvezestejamos a falar do ponto mais importante da filosofia de Hume. Responde agora: como é quepodes ter tanta certeza de que a pedra cai sempre ao chão?— Eu vi-o tantas vezes que tenho a certeza.— Hume diria que viste muitas vezes uma pedra cair ao chão, mas nunca viste que "cairásempre". Normalmente diz-se que a pedra cai ao chão devido à lei da gravitação. Mas nós nuncavimos essa lei. Só vimos que as coisas caem.— Não é a mesma coisa?— Não é bem a mesma coisa. Disseste que achas que a pedra vai cair ao chão porqueviste isso muitas vezes. É precisamente esse o problema de Hume. Estás tão habituada a que umacoisa se siga à outra que esperas que, cada vez que deixas cair uma pedra, suceda o mesmo.Deste modo, surgem idéias daquilo a que chamamos "leis constantes da natureza".— Ele quer dizer que se pode pensar que a pedra não caia ao chão?— Ele estava tão convencido como tu de que a pedra vai cair ao chão sempre, mas dizque não percebeu "porque é que" é assim.— Não nos afastamos das crianças e das flores?— Não, muito pelo contrário. Podes consultar as crianças como testemunhas para asasserções de Hume. Quem te parece que ficaria mais surpreendido se uma pedra ficasse no aruma ou duas horas — tu ou uma criança de um ano?— Eu ficaria mais surpreendida.— E por que, Sofia?— Provavelmente porque eu compreendo melhor do que uma criança pequena que issonão seria natural.— E porque é que a criança não entenderia?— Porque ainda não aprendeu o que é a natureza.— Ou porque a natureza não se tornou para ela uma coisa habitual.— Eu percebo o que queres dizer. Hume queria levar as pessoas a tomarem mais atenção.— Agora, dou-te a seguinte tarefa: se tu e uma criança pequena vêem juntas um grandeilusionista — que, por exemplo, põe alguma coisa suspensa no ar —, qual das duas se divertiriamais durante o espetáculo?— Eu diria que era eu.— E por quê? — Porque eu compreenderia o que estava errado.— Está bem. A criança não se alegra por ver as leis da natureza violadas porque aindanão as conhece.— Também podes dizê-lo dessa maneira.— Ainda estamos a tratar do cerne da filosofia empírica de Hume. Ele teria acrescentadoque a criança ainda não se tornou escrava das suas expectativas. A criança pequena tem menospreconceitos que tu. Resta saber se a criança não é também o maior filósofo. Uma criança nãotem opiniões preconcebidas. E isso, minha querida Sofia, é a primeira virtude em filosofia. Acriança vive o mundo tal como ele é, sem acrescentar às coisas mais do que o que vê.— Eu nunca gosto de ter preconceitos.— Quando Hume trata do poder do hábito, refere-se à chamada "lei da causalidade".Esta lei diz que tudo o que acontece tem que ter uma causa. Hume usa como exemplo duas bolasde bilhar. Se lanças uma bola de bilhar preta contra uma bola branca parada, o que é queacontece à bola branca?— Quando a preta toca na branca, esta move-se.— Sim, e porque é que faz isso?— Porque foi atingida pela bola preta.— Neste caso, dizemos que o choque da bola preta é a "causa" do movimento da bolabranca. Mas não podemos esquecer que só podemos dizer que uma coisa é totalmente certaquando a experienciamos.— Eu já experienciei isso várias vezes. Jorunn tem uma mesa de bilhar na cave.— Hume afirma que tu apenas viste que a bola preta atinge a branca e que a branca rolapela mesa. Tu não conheceste pela experiência a causa pela qual a bola branca rola. Conhecestepela experiência que um acontecimento se segue ao outro temporalmente, mas não que o segundoacontecimento sucede "por causa" do primeiro.— Isso não é um pouco sofístico?— Não, é importante. Hume sublinha que a expectativa de que uma coisa se siga à outranão está nos objetos, mas na nossa consciência. Uma criança pequena não teria esbugalhado osolhos se uma bola tivesse atingido a outra e ambas ficassem totalmente imóveis. Quando falamosde "leis da natureza", ou de "causa e efeito", estamos na realidade a falar dos hábitos humanos enão do que é racional. As leis da natureza não são nem racionais nem irracionais, "são",simplesmente. A expectativa de a bola de bilhar branca ser posta em movimento quando a pretachoca contra ela, não é uma idéia inata. Nós nascemos sem quaisquer expectativas sobre o mundoou sobre o comportamento das coisas. O mundo é como é e nós apreendemo-lo progressivamentepela experiência.— Tenho de novo a sensação de que isso não é assim tão importante.— Pode ser importante se as nossas expectativas nos levam a conclusões precipitadas.Hume não contesta que há leis da natureza constantes, mas uma vez que não podemos terexperiência das leis da natureza, podemos tirar as conclusões erradas.— Podes dar-me exemplos?— O fato de eu ver um conjunto de cavalos pretos não significa que todos os cavalossejam pretos.— Tens toda a razão.— E mesmo que durante toda a minha vida tenha visto apenas corvos pretos não significaque não haja corvos brancos. Para um filósofo e para um cientista, pode ser importante provarque não existem corvos brancos. Quase podes dizer que a caça ao corvo branco é a tarefa maisimportante da ciência.— Compreendo.— Quando se trata da relação de causa e efeito, muitos imaginam o relâmpago comocausa do trovão, porque o trovão se segue sempre ao relâmpago.Este exemplo não é muito diferente do das bolas de bilhar. Mas será o relâmpagorealmente a causa do trovão?— Não, na realidade relampeja e troveja exatamente ao mesmo tempo.— Porque relâmpago e trovão são efeitos de uma descarga elétrica. Mesmo que vejamossempre que o trovão se segue ao relâmpago, não significa que o relâmpago seja a causa dotrovão. Na realidade há um terceiro fator que provoca os dois.— Compreendo.— Um empirista do nosso século, "Bertrand Russell", deu um exemplo um pouco maisgrotesco: um pintinho que tem a experiência de receber todos os dias comida quando o avicultorpassa pela capoeira, tirará a conclusão de que há uma relação entre a passagem do avicultor pelacapoeira e a comida no comedouro.— Mas um dia o pintinho não é alimentado, pois não?— Um dia, o avicultor passa pela capoeira e torce-lhe o pescoço.— Que horror!— O fato de as coisas se seguirem umas às outras no tempo não significa necessariamenteque exista um nexo causal. Impedir os homens de tirar conclusões precipitadas é uma das tarefasmais importantes da filosofia. Além disso, conclusões precipitadas podem levar a muitas formasde superstição.— Como assim?— Vês um gato preto andar pela rua. Um pouco mais tarde nesse dia tropeças e partes umbraço. Mas isso não significa que haja um nexo causal entre os dois acontecimentos. Emcontextos científicos também é importante não se tirar conclusões muito rápidas. Apesar demuitas pessoas ficarem sãs depois de terem tomado um determinado remédio, isso não significaque o remédio as curou. Por isso, precisamos de um grande grupo de controlo de pessoas queacreditam receber o mesmo remédio quando na realidade recebem farinha com água. Se estaspessoas são curadas, tem de haver um terceiro fator que as cura — por exemplo, a confiança naeficácia deste remédio.— Acho que começo a perceber o que é o empirismo.— Em relação à ética e à moral, Hume também se opôs ao pensamento racionalista. Osracionalistas achavam que era inerente à razão humana a distinção entre o justo e o injusto. Estaconcepção do direito natural apareceu-nos em muitos filósofos de Sócrates a Locke. Mas Humenão acredita que seja a razão a determinar aquilo que dizemos e fazemos.— Então é o quê?— Os nossos "sentimentos".Quando decides ajudar um necessitado, são os teus sentimentos que te levam a isso, não atua razão.— E se eu não tiver vontade nenhuma de ajudar?— Também nesse caso tudo depende dos teus sentimentos. Não ajudar um necessitadonão é racional nem irracional, mas pode ser maldoso.— Mas tem de haver um limite algures. Toda a gente "sabe" que não é correto matar umapessoa.— Segundo Hume, todos os homens têm sensibilidade para o bem-estar dos outros.Temos, portanto, uma capacidade de compaixão. Mas nada disso tem a ver com razão.— Não sei se estou de acordo.— Nem sempre é assim tão irracional assassinar uma pessoa, Sofia. Quando se queratingir alguma coisa, pode até ser uma grande ajuda.— Isso é demais! Eu discordo!— Nesse caso, podes tentar explicar-me porque é que não se deve matar uma pessoaimportuna.— A outra pessoa também ama a vida. Por isso não a podes matar.— Isso é uma demonstração lógica?— Não faço idéia.— O que tu fizeste foi, de uma "frase descritiva" — "a outra pessoa também ama a vida"deduzir uma "frase normativa" — "por isso não a podes matar". Do ponto de vista puramentelógico, isso é um absurdo. Poderias da mesma forma deduzir, do fato de muitas pessoas fugiremaos impostos, que tu também devias fazer o mesmo. Hume explicou que nunca se pode deduzir"proposições de dever" de "proposições de realidade". Contudo, isso sucede com muitafreqüência — inclusivamente em artigos de jornais, programas de partidos e discursos noparlamento. Queres que dê alguns exemplos?— Sim.— "Cada vez mais pessoas preferem viajar de avião. Por isso, é preciso construir maisaeroportos." Achas este argumento convincente?— Não, isso é um absurdo. Temos que pensar também no ambiente. Eu acho quedevíamos antes construir novas vias férreas.— Ou então, diz-se: "a ampliação dos campos petrolíferos aumentará o nível de vida dopaís em dez por cento. Por isso, temos que explorar o mais depressa possível novos campospetrolíferos".— Que absurdo! Nesse caso, também temos que pensar no ambiente. Além disso, o nívelde vida na Noruega já é suficientemente elevado.— Por vezes, diz-se também: "Esta lei foi deliberada pelo parlamento, e por isso todosos cidadãos do país têm que agir de acordo com ela". Mas muitas vezes, seguir essas leis vaicontra as convicções mais profundas de um povo.— Compreendo.— Verificamos, portanto, que não podemos provar com a nossa razão o modo comodevemos proceder. Um comportamento consciente da responsabilidade não significa que temosde apurar a nossa razão, mas que temos de apurar os nossos sentimentos pelo bem— estar dosoutros. Para Hume, não era irracional preferir a destruição de todo o mundo a uma arranhadelano dedo.— Que afirmação horrível!— É ainda mais horrível se baralhares as cartas. Sabes que os nazis assassinarammilhões de judeus. O que é que dirias que não estava certo nestes homens, a razão ou ossentimentos?— Antes de mais, alguma coisa estava errada com os seus sentimentos.— Muitos deles tinham uma idéia muito clara do que estavam a fazer. Por detrás dasresoluções sem sentimentos pode justamente ocultar-se um calculismo extremamente frio. Depoisda guerra, muitos nazis foram condenados, mas não por terem sido irracionais. Foramcondenados pela sua crueldade. Sucede também que pessoas que não sabem bem o que estão afazer são absolvidas apesar do seu crime. Dizemos que "não estão em plena posse dasfaculdades mentais no momento do crime" ou "não estão em plena posse das faculdades portempo ilimitado". Mas ainda ninguém foi absolvido por falta de sentimentos.— Pois não, era melhor!— Mas não precisamos sequer de recorrer aos exemplos mais grotescos. Quando, apósuma cheia, muitos homens precisam de ajuda, são os nossos sentimentos que decidem seintervimos. Se nós fôssemos insensíveis e deixássemos esta decisão à "razão fria", talvezrefletíssemos que é bom se alguns milhões de homens morressem, num mundo que sofre já deexcesso demográfico.— Fico furiosa com o fato de alguém poder pensar assim.— E nesse caso não é a tua razão que fica furiosa.— Obrigada, já chega.  


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