03. É ESSA A EDUCAÇÃO CRISTÃ?

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O pouco tempo que fiquei no parque com João acabou sendo mais
frustrante do que proveitoso. Embora eu tenha saído de lá animado com as
novas perspectivas e passado o resto do dia livre do estresse que se apo-
derara de mim mais cedo, a empolgação foi rapidamente se extinguindo.
Não foi nada fácil rememorar tudo o que João dissera, e eu não parava de
pensar nas centenas de perguntas que gostaria de ter feito. Tínhamos
passado muito pouco tempo juntos, e ele não marcara novos encontros, o
que me aborreceu. Afinal, quem era aquele homem? Seria algum louco?
Mas João não se comportava como um louco. Eu tinha me sentido
absolutamente à vontade conversando com ele. Fez-me lembrar das
conversas que costumava ter com meu pai antes de ele falecer, cinco anos
antes, num acidente de automóvel. Curiosamente, senti uma afeição muito
semelhante por João. Fosse ele quem fosse, satisfez minha fome de conhecer
melhor Jesus. Ela não diminuiu nos meses que se passaram, apesar de as
minhas tentativas de aplacá-la terem fracassado miseravelmente.
Depois daquele encontro, toda manhã eu reservava 45 minutos para ler a
Bíblia e orar. Embora eu fizesse isso rigorosamente todos os dias, não
conseguia notar qualquer diferença. As pressões no trabalho e em casa logo
retornaram. Nenhuma das minhas orações parecia dar resultado, mesmo em
relação às coisas pelas quais eu pedia com maior fervor. Apesar de
desestimulado, ainda assim eu persistia.
Tinha esperança de a qualquer hora cruzar com João novamente, mas isso
não aconteceu. Durante algumas semanas eu me pegava a procurá--lo em
toda parte. Se ia a uma loja, a um restaurante, ou mesmo quando dirigia
pelas ruas, ficava olhando ao redor para ver se o achava. Quando batia os
olhos em alguém de aspecto ou jeito de andar parecidos, meu coração
disparava. Cheguei algumas vezes a sair do meu caminho para percorrer os
bancos do parque à sua procura.
Dá para imaginar minha surpresa quando, cinco meses mais tarde, deparei
com seu rosto onde menos poderia esperar encontrá-lo: tentando olhar pelo
vidro espelhado de uma das portas da nossa igreja. Era um domingo de
manhã, durante o momento mais importante do culto, e eu vinha retornando
pelo corredor central com uma postura solene, depois de ter posto fim a um
ruído desagradável no nosso sistema de som.
Podia sentir os olhos das pessoas me observando no caminho pelo
corredor enquanto o pastor fazia seu sermão. Ao chegar à minha fileira, dei
uma rápida olhadela para trás. Lá estava ele. Inconfundível. Meu coração
quase parou.
Voltei pelo corredor e saí pela outra metade da porta dupla. João estava
ali, de pé, com a fisionomia grave, e eu achei que ele parecia deslocado e
constrangido na nossa sede. Não eram as roupas, pois ele usava uma camisa
polo e um par de tênis, mais do que apropriados para a nossa informalidade
californiana. Havia outros homens de barba e cabelos compridos
semelhantes aos dele, mas João, não sei bem por que, parecia especialmente
fora de contexto.
- João, o que você está fazendo aqui? - eu meio que sussurrei.
Ele se virou bem devagar, sorriu e voltou a olhar para dentro da igreja.
Após alguns instantes, finalmente falou:
- Pensei em ver se você não teria um tempinho para conversarmos.
Por onde tem andado? Tenho procurado você por toda parte. - Ele
continuava olhando pela vidraça. - Eu adoraria conversar, mas não é
uma boa hora. Estamos bem no meio do culto.
Dessa vez ele falou, continuando a olhar pela vidraça.
- É, estou percebendo. - Eu podia ouvir a congregação toda se levantando
ao som da introdução do próximo hino.
- E mais tarde? Depois do culto?
- Eu só estava de passagem e pensei em ver como você está indo. Tem
encontrado respostas para algumas de suas perguntas?
- Não sei. Tenho feito tudo o que sei fazer. Minha vida de devoção
realmente mudou, está mais regular do que antes.
Seu silêncio me fez ver que eu não havia respondido à pergunta. Fiquei
embaraçado e falei novamente:
- Oh... bom... como é que posso dizer? Acho que não. Na verdade, tenho
a impressão de que quanto mais eu tento, mais vazio e mais frustrado me
sinto. Não acho que o esforço esteja valendo a pena.
- Bom - João balançou a cabeça, sempre de olhos fixos no interior do
santuário -, então você aprendeu algo valioso, não aprendeu?
- O quê? - Achei que ele não tinha entendido direito. - Eu falei que não
está funcionando. Tenho tentado para valer, e nada acontece. Como é que
isso pode ser bom? Só me deixa irritado.
- Entendo - replicou João, virando-se para mim. - Quer saber por quê?
Venha, vou lhe mostrar.
Virou-se, fez com a cabeça um sinal para que eu o seguisse e foi se diri-
gindo para a alameda que levava à nossa ala educacional. Enquanto ele
caminhava na frente, olhei para trás. Não posso segui-lo agora. Eu deveria
estar lá no culto. E se o sistema de som der problema de novo? E se...?
Ele já ia dobrando a esquina. Se desistisse, iria perdê-lo como da outra
vez. Sem tempo para pensar, enveredei atrás de João.
Ao dobrar a esquina, quase caí por cima de um jovem casal que vinha em
direção contrária. Pedi desculpas pelo esbarrão, mas eles pareceram não
aceitá-las. Suas fisionomias demonstravam certo constrangimento.
- É a primeira vez que nos atrasamos - suspirou a mulher -, e olhe
só quem vem atrás de nós: um dos pastores! - Por cima dos ombros dela vi que João tinha parado à minha espera. Encostado na parede, ele
observava nossa troca de palavras. Suas sobrancelhas estavam arqueadas
para cima, e o risinho em seu rosto parecia traduzir um divertido Te
pegaram!
De repente me senti como o policial da igreja. Dois domingos antes eu
tinha feito uma comunicação a respeito da importância de se chegar na hora
para não perturbar os demais fiéis. João continuava atento à nossa conversa.
- O pneu do nosso carro furou no caminho - o marido se justificou.
- Vocês têm sorte. Hoje eu não estou dando incertas. - Ri, na esperança
de acabar com o constrangimento deles e com o meu. - Fico feliz em vê--los
aqui. - Abracei os dois e fui andando com eles em direção à igreja. Ao abrir
as portas, um colaborador veio ajudá-los a encontrar assento.
Atravessei o saguão e fui ao encontro de João. Lá estava ele, diante do
mural da nossa escola dominical, os olhos cravados nas letras garrafais que
diziam, lá no alto: EU ME ALEGREI QUANDO ME DISSERAM: ENTRE-
MOS NA CASA DO SENHOR.
- O que isso quer dizer? - ele perguntou, apontando as palavras com o
indicador.
- Que devemos ficar felizes de estar na presença de Deus. - Sem querer,
minha voz se elevou um pouco no fim da frase, fazendo com que minha
resposta soasse mais como uma pergunta.
- Boa resposta. Por que essa frase está aqui?
- Para mostrar o nosso compromisso missionário com a educação
cristã - respondi, tentando demonstrar indiferença, mas sabendo que
ele estava querendo chegar a algum lugar. Continuei: - Estamos pro
curando criar uma atmosfera em que as crianças gostem realmente de
assistir às aulas.
- E "a casa do Senhor" é este prédio aqui? - Ele apontou para a construção.
Opa! Eu não estava gostando nada do rumo que a coisa estava to
mando. Após uma pausa, respondi:
- Bom, é claro que todos nós sabemos que "casa do Senhor" é algo bem
maior do que isso. - Estava desesperado para dar uma resposta correta,
mas tive a desagradável sensação de não possuir nenhuma no meu arsenal.
Mas o que pensam as pessoas que lêem isso?
- Provavelmente entendem que significa freqüentar a nossa igreja.
- E é isso o que vocês desejam que elas pensem?
De novo ele deixou que o silêncio permanecesse por mais tempo do que
eu era capaz de suportar.
- Imagino que sim.
- Vocês não percebem que o que há de mais precioso no Evangelho é que
ele nos liberta da idéia de que Deus reside em um local determinado? Para
os seguidores de Jesus essa notícia foi excelente. Não precisariam pensar
num Deus que estaria encerrado no recesso do templo e apenas disponível
para pessoas especiais em ocasiões especiais.
Havia um pouco de tristeza em sua voz, e ficamos calados durante algum
tempo.
- E então, Jake, onde é a casa do Senhor?
- Somos nós. - De repente aquela inscrição me pareceu absolutamente
estúpida. Eu me perguntava se João sabia que ela havia sido idéia minha. Eu
certamente não iria contar-lhe.
João suspirou.
- Você se lembra do que Estêvão disse pouco antes de o matarem a
pedradas? "O Mais Alto não mora em casas feitas por mãos humanas."
Foi aí que o atacaram, porque os fazia lembrar o desafio de Jesus de
destruir o templo e reconstruí-lo em três dias. As pessoas são muito
sensíveis em relação aos seus prédios, principalmente quando acham
que Deus habita neles.
Não falei nada. Só balancei a cabeça concordando.
- E elas ficam felizes quando vêm aqui? Demorei um
pouco para entender a pergunta.
- Esperamos que sim. Dá uma trabalheira enorme.
- Passa mesmo essa impressão. - Os olhos de João percorriam o mural
em que anúncios de seminários de treinamento, reuniões de diretoria,
atividades de classe e formulários de pedido de suprimentos espalhavam-se
por todos os lados.
- Um programa de qualidade dá muito trabalho.
- Sem dúvida. E nem um pouco de culpa, para não falar em manipulaçao.
- Segui seus olhos, que foram fixar-se no nosso cartaz de
recrutamento de instrutores. Era uma imagem colorida de um adolescente
em trajes punk numa rua qualquer da cidade, à noite. Em letras enormes no
lado esquerdo, embaixo, se lia: Se alguém tivesse tido tempo para ensiná-lo
sobre Jesus! Seja um voluntário hoje.
- Culpa? Manipulação? Não queremos deixar ninguém com senti
mento de culpa, só estamos mostrando os fatos.
Ele balançou a cabeça e começou a andar pelo saguão. Olhei para trás, na
direção do santuário, sabendo que era lá que eu deveria estar. Em vez disso,
porém, decidi que o melhor era ficar com João, que a essa altura já
enveredara por outro corredor.
Quando dobrei a esquina pude ouvir o som de crianças cantando:
"Bom dia para você! Bom dia para você!
Estamos nos nossos lugares com o rosto radiante."
João olhava pela porta entreaberta. Fileiras de crianças estavam sentadas
de frente para a professora, em cadeiras minúsculas. Quando a música
terminou, começou uma grande bagunça, com conversas e risadas. Um
menino de suéter azul-claro virou-se e mostrou a língua para uma das
meninas. Ao fazê-lo, deu de cara conosco e imediatamente voltou a olhar
para a frente, fingindo prestar atenção.
De onde estávamos não conseguíamos ver a professora, mas podíamos
ouvir sua voz transtornada gritando para a turma.
- Vamos declamar nosso versículo! - ela berrava. - Vamos! Sentem-se,
ou ninguém vai comer biscoito depois. - Aparentemente a ameaça era para
valer, porque a sala ficou em silêncio. - Quem decorou o versículo de hoje?
Mãos se levantaram por toda a sala.
- Vamos declamar juntos. "Eu fiquei feliz quando me disseram..."
- As vozes em staccato nunca mudavam de ritmo. - "Entremos na casa
do Senhor", salmo 122, versículo um. - A maioria das vozes se calou na
hora da referência, menos a de uma garotinha que evidentemente
queria que todo mundo notasse que ela sabia.
E o que isso quer dizer? - a professora gritou para ser ouvida em
meio ao barulho crescente.
Duas mãos se levantaram, sendo uma delas a da menina que repetira bem
alto a citação.
- Sherri, diga para nós!
- Essa é minha filha - sussurrei para João. A
garota se levantou.
- Quer dizer que devemos nos alegrar ao vir para a igreja, porque é aqui
que Deus vive.
- Muito bem - disse a professora, enquanto meu rosto se ruborizava de
constrangimento.
Encolhi os ombros quando João se virou para mim, sorrindo divertido.
Em seguida falou bem baixinho duas palavras:
- Está funcionando. - O sorriso em seu rosto dissolveu meu em-
baraço ao deixar claro que ele não estava ali para fazer com que me
sentisse envergonhado.
Quando voltamos a prestar atenção na aula, a professora estava distri-
buindo estrelinhas douradas para as crianças colarem num quadro na parede.
Elas eram usadas para assinalar várias coisas, como a freqüência e a
pontualidade, e para recompensar as crianças que traziam as próprias
Bíblias. A classe estava um caos, todos se empurrando para encontrar seus
nomes no quadro, lambendo os adesivos e fixando-os no lugar.
Quando as crianças voltaram para suas cadeiras, a professora foi ao
quadro e apontou para algumas fileiras.
- Olhem só quantas estrelas tem o Bobby. Sherri também vai indo muito
bem, assim como Liz e Kelly. Não se esqueçam de que os cinco primeiros
ganharão um prêmio especial no fim do semestre. Portanto, vamos ao
trabalho. Tratem de comparecer toda semana, chegar na hora, trazer a Bíblia
e decorar o versículo.
- Já chega? - perguntou João, voltando-se para mim.
- O quê? Oh, eu só estou acompanhando você. Já conheço bem o que
acontece por aqui.
- Não tenho muita certeza disso. - João se afastou da janela e foi
caminhando de volta ao saguão, detendo-se finalmente ao lado do
bebedouro. Passou o braço direito pelo peito, com o cotovelo esquerdo
descansando nele, a mão esquerda massageando a testa.
- Jake, você reparou naquele menino que senta perto de sua filha, um de
short e camiseta amarelo-claro?
- Não, não especialmente.
- Bom, não me surpreende. Não havia muito mesmo o que reparar. Ele
não fez qualquer barulho, só ficou sentado, de cabeça baixa e braços
cruzados.
- Ah, já sei de quem você está falando. Deve ser o Benji.
- Benji. Notou que ele não sabia uma única palavra do versículo e nem
sequer se levantou para pegar a estrelinha a que tinha direito por ter vindo
hoje?
- Não, não notei.
- Como você acha que ele se sentiu diante de tudo isso?
- Espero que tenha tido vontade de se sair melhor. Trazer a Bíblia, vir
mais vezes e decorar os versículos. É assim que nós tentamos motivar as
crianças. Todo mundo faz isso. É por uma boa causa.
- Mas como é que ele vai conseguir competir com... a Sherri, não é esse o
nome dela? Será que os pais dele lhe dão o apoio que você dá a ela?
- Ele só tem mãe e nunca viu o pai. Ela trabalha duro e o ama muito. Mas
você sabe como é difícil criar um filho sozinha. Eu mesmo não consigo
imaginar.
-Você acha que Benji vai sair daqui estimulado?
- É o que esperamos. - Pensei em Benji ali sentado, com aquele olhar
distante que eu já vira tantas vezes. - Mas até agora não deu certo para
ele, embora esteja funcionando para a maior parte das nossas crianças.
Temos um dos ministérios infantis mais bem-sucedidos da cidade.
- Em sua opinião, o sentimento de sucesso de Sherri compensa a
vergonha de Benji?
Eu quis responder a essa pergunta, mas não fui capaz de pensar em nada
que não soasse incrivelmente idiota. Ele prosseguiu:
- Você freqüentou a escola dominical, Jake, quando era criança?
- Freqüentei. Meus pais nos criaram na igreja. Certa vez decorei 153
versículos da Bíblia numa competição que durou três meses.
João arregalou os olhos.
- É mesmo? E o que o motivou a isso?
- O vencedor ganhava uma Bíblia novinha em folha.
- E imagino que você já tivesse uma.
Fiz uma pausa, lembrando que meus pais tinham me dado uma Bíblia
pouco antes. Cocei a cabeça e olhei para João pelo canto do olho, meio
desconfiado. Como é que ele sabia disso?
- Quem ganha geralmente não precisa do prêmio - ele concluiu.
- Eu de fato tinha outra Bíblia, mas aquela era especial. Eu ganhei.
- Cento e cinqüenta e três? São muitos versículos...
- Sempre fui bom para decorar. Basta ler um versículo umas duas vezes e
pronto. Não era difícil. A maioria dos versículos eu decorava pela manhã,
antes de ir para a igreja.
- Quantos versículos o segundo colocado decorou?
- Acho que uns 35. Foi realmente uma barbada.
- E você acha que isso contribuiu para o seu crescimento espiritual? Bom,
agora que ele está perguntando, talvez não, eu pensei. Mas fiquei calado.
- O que mais você venceu?
- Quando tinha uns 10 anos ganhei um alfinete banhado a ouro por ter
freqüentado a escola dominical dois anos seguidos sem uma falta. O pastor
me entregou o prêmio numa manhã de domingo na frente de toda a
congregação. Você precisava ter escutado os aplausos. Nunca vou me
esquecer de como me senti o máximo.
- Aquilo lhe deu uma razão de viver, não foi?
- O que está querendo dizer?
- Não é isso que você vem buscando desde então, essa sensação de ser
especial?
Foi como se me tirassem um véu dos olhos. Boa parte das minhas
decisões fora tomada quando eu buscava a todo custo o reconhecimento e as
homenagens das pessoas. Eu amava a aprovação dos outros e
freqüentemente tinha fantasias a esse respeito. Para dizer a verdade, esse foi
provavelmente o principal motivo que me levou a trocar o trabalho como
corretor de imóveis por um cargo no ministério, no qual eu poderia me
destacar, ser mais conhecido e admirado.
Será que foi aquele momento que me faz até hoje buscar aprovação
constantemente?
- Claro que não. Foi uma série de momentos iguais àquele que ali-
mentaram um desejo que você já possuía antes. - Ele pôs o dedo em meu
peito. - Quem não deseja ser querido e admirado? É fácil usar prêmios
quando se pretende motivar as pessoas a praticar boas ações. A questão
maior é a seguinte: será que toda essa decoreba e a freqüência escolar
rigorosa o ajudaram a conhecer melhor o Pai? O que é mais fácil para você:
perseguir uma relação com o Pai ou seu sucesso pessoal? Esse é o
verdadeiro teste. Acho que você não estaria tão aflito se essa busca lhe
tivesse efetivamente ensinado a conhecer o amor do Pai. Mas você se
preocupa tanto em obter a aprovação de todos que nem se dá conta de que já
tem a Dele.
- O que está dizendo? Como é que eu posso ter a aprovação Dele se ainda
estou lutando por ela?
- Porque você está lutando pela coisa errada. Acha que pode conquistar a
aprovação do Pai. Nós não somos aprovados por aquilo que fazemos, mas
sim pelo que Jesus fez por nós na cruz. Honestamente, Jake, não há uma
única coisa que você possa fazer para que Deus o ame mais hoje, assim
como não há uma única coisa que você possa fazer para que Ele o ame
menos. Deus simplesmente o ama. - João colocou a mão sobre meu ombro. -
É a sua certeza desse amor que o fará mudar, e não sua luta para tentar
merecê-lo.
Meus olhos começaram a marejar. Ele acabava de desvendar algo em que
eu nunca havia pensado antes.
- Quer dizer que todos os meus esforços são inúteis?
- Se o objetivo de seus esforços é fazer com que Deus o ame mais, eles de
fato são inúteis. Ainda que você não fizesse nada do que faz, Jake, Deus o
amaria da mesma forma.
Como? Eu não tinha palavras. Queria acreditar em João, mas ele estava
promovendo uma reviravolta na minha vida. Eu me sentia atordoado e
precisava digerir tudo aquilo.
Após alguns momentos João se desencostou da parede e começou a
caminhar pelo corredor. Eu o segui.
Voltemos àquela manhã em que você recebeu seu alfinete como prêmio
de freqüência. Se aquele pastor o amasse de fato, sabe o que teria dito?
"Senhoras e senhores, queremos apresentar-lhes um jovem que acaba de
completar um período de dois anos sem nunca ter faltado às aulas da escola
dominical. Queremos orar por ele, pois isso significa que seus pais nunca se
preocuparam, durante esses dois anos, em tirar férias com a família.
Significa que ele provavelmente veio aqui quando estava doente e deveria
ter ficado em repouso em casa. Significa que ganhar essa biju-teria dourada
e a aprovação de vocês tem mais importância para ele do que se tornar
irmão de cada um de vocês. E, o que é mais importante, nem um só dia
dessa freqüência rigorosa o levará para mais perto de Deus."
- Isso seria um tanto grosseiro - retruquei.
- Mas seria incrivelmente importante na sua vida, Jake, com toda a
certeza. Se ele tivesse feito isso, talvez você não procurasse tão
desesperadamente uma aprovação que o distancia de Deus e impede que
você se abra para Ele.
- Então o que você está dizendo é que premiar Sherri não só é penoso
para Benji como prejudicial para ela?
Ele fez um gesto no ar com o dedo indicador como se estivesse apertando
um botão imaginário.
- Bingo! Sabia que mais de 90% das crianças que se criam na escola
dominical abandonam a congregação quando saem da casa dos pais?
- Ouvi falar. Nós culpamos as escolas públicas, que afastam as crianças
da fé.
João ergueu as sobrancelhas demonstrando incredulidade.
- E mesmo? Muito conveniente, não é?
- Bem, nós estamos fazendo a nossa parte - eu falei, na defensiva.
- De muitas outras formas além das que já vimos até agora.
- Assim você está dizendo que tudo o que aprendi na escola dominical a
respeito de Deus foi ruim. - Eu era capaz de perceber ironia e frustração no
meu tom de voz.
- Nem tanto. Não falei que tudo era ruim.
- Como é que pode? Ensinamos as crianças sobre Deus e a Bíblia e a ser
bons cristãos. - Minha voz foi sumindo à medida que ia ficando claro
para mim que ensinar as crianças sobre Deus e o significado de ser um bom
cristão não era o mesmo que ensiná-las a caminhar com Ele.
- O que eu quero que você perceba é que, misturado com coisas cer-
tamente maravilhosas, o que se tem aqui é um sistema de obrigações
religiosas que distorce todo o restante. Enquanto você não entender isso,
jamais saberá o que significa caminhar com o Pai.
- Por quê?
- Porque a maioria das coisas que você consegue na vida é fruto do seu
desempenho. Mas não a sua relação com Deus. Essa relação não está
baseada no que fazemos, mas no que Ele fez.
- Então o que você está dizendo é que eu tenho me empenhado demais?
É por isso que meus esforços não vêm funcionando? Afinal, cada um não
tem que fazer a sua parte? - Olhei para João.
- Não foi exatamente isso o que eu falei - ele respondeu com um leve
sorriso. - Mas você está chegando perto. A questão é que está tentando
merecer um relacionamento que jamais merecerá. Homens e mulheres
podem aplaudi-lo por decorar as Escrituras ou freqüentar o culto. Mas essas
coisas jamais serão suficientes para fazê-lo merecer uma relação. Além do
mais, você as está perseguindo não porque deseja conhecer Deus, mas
porque quer que as pessoas pensem que você é um grande religioso. E, se
quer saber, é exatamente isso que está conseguindo.
- Então foi isso o que Jesus quis dizer quando falou que os fariseus
faziam coisas para serem vistos pelos outros e para obterem recompensas.
Mas não é bem o que eu quero.
- Ótimo. Você não compreende que o caminho que está seguindo não o
leva aonde lhe disseram que levava? Ele fará de você um bom cristão aos
olhos dos outros, mas não lhe permitirá conhecer Deus. - João ia andando
sem parecer ter a intenção de chegar a um lugar determinado. Nós dois
caminhamos pelas salas de aula e, vez por outra, passávamos por alguém
andando apressado pelos corredores. Eu estava tão envolvido na conversa
que nem percebi as pessoas nos olhando de forma estranha. Mais tarde eu
haveria de pagar caro por isso.
- Quer dizer que eu posso me tornar um cristão formidável aos olhos dos
outros e no entanto não alcançar a essência do que isso significa?
E não é nesse ponto que você se encontra atualmente? Olhe bem para
esse programa, para esses prédios, para as necessidades das crianças e as
demandas de equipamentos. Para que tudo isso?
- Essas coisas todas, evidentemente, requerem gente, dinheiro e uma
certa espiritualidade, imagino eu.
- E é o que traz recompensa, não é? Como é que alguém se destaca na
sua igreja?
- Pela freqüência constante, fazendo doações e não vivendo em pecado
óbvio.
- Qualquer pecado?
- O que está querendo dizer?
- Bem, aqui não sei, mas em outros lugares existem pecados abso-
lutamente proibidos, em geral pecados sexuais ou ensinar coisas que os
líderes não aprovam. Mas outros pecados igualmente destrutivos tendem a
ser ignorados, como a fofoca, a arrogância, julgar e condenar outras pessoas.
Esses, às vezes, são até recompensados, porque é possível usá-los para fazer
com que as pessoas se comportem do jeito que queremos.
De repente me dei conta de como fazíamos uso do pecado para conquistar
poder e benefícios, mesmo prejudicando os outros. Eu mesmo tinha agido
assim.
- Não é interessante ver como um grupo de pessoas que estão juntas
regularmente acaba desenvolvendo um estilo, seja na forma de se vestir
e falar, seja nos comportamentos aceitos e nas músicas que gosta de
cantar? Não fica claro, aqui, o que é ser um bom cristão. Será que o cha-
mado bom cristão não é aquele que tem comportamentos aceitos e
aprovados pelo grupo a que pertence? Será que fazer perguntas incô-
modas não é malvisto e até condenado?
Ele tinha captado bem a coisa.
- Uma das lições mais significativas que Jesus deu a seus discípulos
roí de parar de procurar Deus por meio de rituais e de regras. Ele não
tinha vindo para enfeitar a religião deles com cultos e cerimônias, mas
para oferecer-lhes uma relação. Será que foi apenas uma coincidência
ter curado pessoas doentes no Sabbath? Claro que não! Ele queria que seus discípulos soubessem que as regras e tradições dos homens interferem
no poder e na vida do Seu Pai.
Fez a pausa habitual para que eu digerisse o que ele dissera. Depois
prosseguiu.
- As regras e os rituais podem ser muito escravizantes, pois nós os
adotamos com a intenção de agradar a Deus. Nenhuma prisão é tão forte
quanto a obrigação religiosa. Ontem eu passava por uma sinagoga quando o
rabino saiu e veio me pedir para entrar e acender algumas luzes para ele.
Alguém se esquecera de acendê-las no dia anterior, e ele não podia fazê-lo
pessoalmente sem quebrar o Sabbath.
- Isso é uma estupidez, você não acha?
- Para você pode ser, da mesma forma como algumas das suas regras e
alguns dos seus rituais parecem estúpidos para o rabino.
- Minhas regras? Eu não faço nada parecido com essa história de Sabbath.
- Claro que não, mas e se você passasse um mês sem ir ao culto de
domingo ou desse seu dízimo diretamente aos pobres em vez de depositá-lo
na bandeja de oferendas?
- É tudo a mesma coisa?
João fez que sim com a cabeça. Eu afirmei:
- Mas eu vou ao culto e dou o dízimo, não porque seja lei, mas porque
escolho fazê-lo.
- O rabino não diria nada muito diferente a respeito do Sabbath. Mas se
você fosse honesto veria que faz essas coisas por acredittar que elas o tornam
mais aceitável por Deus. Se não as fizesse se sentiria culpado.
Na hora eu não compreendi todas as implicações de suas palavr;as, mas no
fundo sabia que ele estava certo. Quando nossa igreja acabou com os cultos
noturnos aos sábados fiquei bastante aborrecido. Durante quase toda a minha
vida eu tinha ido à igreja praticamente todos os sábados à noite. Levei dois
anos até poder ficar em casa se?m me sentir culpado ou sem marcar alguma
atividade com as pessoas 'da igreja para me sentir produtivo.
- É por isso que você nunca consegue relaxar, Jake. Aposto que mesmo
no dia de folga você fica inquieto se não fizer alguma coisa. Sente-se
culpado por achar que está perdendo tempo.
Enquanto suas palavras iam penetrando em mim, outra música invadiu o
corredor, vinda de uma sala de aula: "Oh, tenham cuidado, olhos
pequeninos, com o que vêem..." O último verso alertava que Deus estaria
olhando para cada um de nossos atos. Embora dissesse que Deus o fazia
"por amor", não creio que alguma criança acreditasse nisso. Para uma
criança, o Deus todo-poderoso estava atrás das moitas com seu radar, pronto
para capturá-la caso cometesse algum erro.
- Isso aí é o pior de tudo - disse João, balançando a cabeça em sinal
de óbvio pesar. - Detesto ouvir as criancinhas cantando essa música.
No começo não consegui entender de que ele estava falando. A canção
era familiar. Eu a tinha cantado desde criança e a tinha ensinado aos meus
filhos. Achava que acreditar que Deus é capaz de ver tudo os ajudaria a
fazer as escolhas certas.
- Você está dizendo que há algo de errado com essa canção?
- Diga-me você.
- Não sei. Ela fala do amor do Pai por nós e do Seu desejo de que evi-
temos fazer o mal.
- Mas qual é a mensagem que essa canção transmite?
- Não estou entendendo aonde você quer chegar.
- A música se apropria de palavras lindas como "Pai" e "amor" e
transforma Deus num policial divino que se esconde atrás de um tapume
com Seu radar. Quem vai querer caminhar ao lado de um Pai como esse?
Não podemos amar o que tememos. Não podemos estimular uma relação
com quem está sempre analisando nosso desempenho para se assegurar de
que somos suficientemente adequados para merecer Sua amizade. Quanto
mais nos concentramos em nossas necessidades e falhas, mais distante o Pai
nos parecerá. É a culpa que faz isso. Ela nos empurra para longe de Deus
quando estamos carentes, em vez de permitir que corramos para Ele com
todas as nossas grandes falhas e as nossas dúvidas, a fim de receber Sua
misericórdia e Sua graça. Nessa canção, invocamos Deus e Seu castigo para
sustentar nosso entendimento do que significa ser um bom cristão. - O olhar de João transmitia carinho. - Pense nisto: Deus é um Pai que compreende nossa inclinação para
o pecado, que sabe quanto somos fracos. Seu amor quer nos livrar dessa
condição pecaminosa para nos transformar em Seus filhos, com base não em
nossos esforços, mas nos Dele. É essa a mensagem que essa canção
transmite?
- Acho que nunca tinha pensado nisso.
- Observe uma coisa. Todas as vezes que cantou essa música, você
pensou em coisas que fez e que Deus não aprovaria. Sentiu-se mal ao pensar
nessas coisas, mas isso não contribuiu para levá-lo a ser melhor. Portanto,
racionalmente você continua a afirmar o amor do Pai, mas intuitivamente
está se afastando Dele. Isso é a pior coisa que a religião faz. Quem vai
querer ficar próximo de um Deus que está sempre tentando flagrar as
pessoas em seus piores momentos ou castigando-as por suas falhas? Somos
fracos demais para suportar, quanto mais amar, um Deus desse tipo.
Recorremos à culpa para moldar o comportamento das pessoas, sem
perceber que é essa mesma culpa que as manterá longe de Deus.
Estávamos novamente na entrada. João parou e se encostou na parede. Eu
fiquei ali com ele por alguns instantes.
- Não admira que nos empenhemos tanto para que as pessoas façam
o bem e raramente percamos nosso tempo ajudando-as a entender o
que é se relacionar com um Pai que sabe tudo sobre elas e que mesmo
assim as ama incondicionalmente.
Ele balançou a cabeça.
- É por isso que a morte de Jesus é tão ameaçadora para quem foi criado
com a idéia da obrigação religiosa. Se você não agüenta mais as regras e
entende que elas não são capazes de abrir as portas para a relação que seu
coração anseia, a cruz é a maior de todas as novidades. Para quem, no
entanto, conquistou importância dentro do sistema, a cruz é um escândalo.
Tenha certeza: nós podemos ser amados sem fazer nada para merecer isso.
- Mas as pessoas não vão usar essa certeza como pretexto para se dar
bem?
- Certamente, mas as coisas não estão erradas só porque as pessoas abusam delas. Aqueles que só estão em busca de benefício próprio podem
usar qualquer recurso. Mas, para quem deseja realmente conhecer Deus, Ele
é o único que pode abrir a porta.
- Será que é por isso que meus últimos meses foram tão improdutivos?
- Exatamente. A relação com Deus é a dádiva que Ele oferece gratui-
tamente. O importante na questão da cruz foi que Deus pôde fazer por nós o
que jamais poderíamos fazer por nós mesmos. A questão não é quanto você
O ama, mas quanto Ele ama você. Tudo começa Nele. Aprenda isso e sua
relação com Deus começará a crescer.
- Então a maior parte do que estamos fazendo aqui está errada. O que
pode acontecer se pararmos com tudo?
A canção de encerramento invadiu a entrada enquanto os colaboradores
escancaravam as portas para a saída dos fiéis. Eu tinha ficado fora tanto
tempo assim?
- A questão não é bem essa, não é, Jake? Estou me referindo ao seu
relacionamento com o Deus vivo, não com esta instituição. Claro, isso
acarretaria uma mudança drástica. Em vez de promover um espetáculo,
deveríamos nos reunir para celebrar a obra Dele na vida do Seu povo.
Em vez de ficar imaginando o que fazer para que as pessoas ajam de
forma mais "cristã", deveríamos ajudá-las a conhecer melhor Jesus e
deixar que Ele as transforme de dentro para fora. Isso revolucionaria a
vida da Igreja e a vida dos fiéis. Mas não começa ali - ele apontou para
as portas do santuário -, e sim aqui. - E bateu no próprio peito.
Um dos colaboradores me viu.
- Jake, você está aí. O pastor perguntou por você durante o culto. O
sistema de som continuou dando problema e ele precisou de você.
- Oh, essa não! - resmunguei. - Tenho que ir - falei para João, enquanto
enveredava pelas portas evitando por um triz a torrente dos fiéis.
Não sei o que houve com João depois disso, mas eu percebi que algumas
mudanças na minha própria vida e naquele mural da escola dominical
teriam que ocorrer.

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⏰ Última atualização: Sep 18, 2015 ⏰

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