02. Passeio no parque

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Nas semanas seguintes repassei milhares de vezes os acontecimentos daquela manhã, reconstituindo as palavras do homem. A ideia de que ele pudesse ser o apóstolo João fora um delírio passageiro. No entanto, ao piscar para mim, foi como se ele tivesse admitido quem era.
Mas como João poderia estar vivo depois de 2 mil anos? Absurdo total! Teria sido uma aparição milagrosa, como quando Moisés e Elias se transfiguraram na presença de Jesus? E como é que ele fora capaz de ler a minha mente e de sumir tão facilmente de vista?
Fui então reler as palavras enigmáticas de Jesus a Pedro quando este lhe indagou sobre o futuro de João. Jesus alertou Pedro de que chegaria o dia em que os homens o levariam à morte por causa da amizade dos dois. Perturbado por essa ideia, é talvez não querendo seguir sozinho por esse caminho, Pedro apontou para João e perguntou sobre o que aconteceria com ele. A resposta de Jesus deixou todos chocados:
--Se eu quiser que ele continue vivo até a minha volta, o que você tem a ver com isso? Você deve me seguir.
João escreveu que as palavras de Jesus provocaram entre os demais discípulos a ideia de que ele não morreria. Mas, em seguida, afirmou que não tinha sido exatamente aquilo o que Jesus dissera. Obviamente, o que Jesus desejava era que Pedro seguisse a trilha que o Senhor preparara para ele, sem se comparar com os outros. Mas será que Jesus não queria dizer algo?
Quando contei a história à minha mulher e alguns amigos mais íntimos, eles se limitaram a cantarolar o tema de Além da imaginação e a rir. A reação deles me deixou menos seguro quanto ao que havia de fato acontecido naquele dia. Mas eu não podia negar que, fosse quem fosse aquele homem, suas palavras tinham tocado o mais fundo do meu cristianismo.
Eu nunca ouvira alguém falar de Jesus daquela maneira, e a experiência provocou em mim uma fome insaciável de saber mais a respeito desse Jesus que eu pensava conhecer. Durante as semanas seguintes li novamente todos os Evangelhos, mas agora com outros olhos, procurando descobrir que espécie de pessoa ele era. Compreendi que, embora me considerasse cristão, eu não tinha a menor ideia de quem era Jesus como pessoa. Quanto mais tentava, mais frustrado ficava. Mergulhei de cabeça em meu trabalho na igreja, na esperança de sufocar as interrogações que o estranho havia despertado.
Quatro meses e meio depois daquele primeiro encontro, coisas estranhas aconteceram. Eu havia reservado um manhã para estudar, pois surgira uma rara oportunidade de pregar nos nossos encontros religiosos das manhãs de domingo. No entanto, uma série de imprevistos me impediu de sequer abrir os livros. Foi o técnico de som que teve um problema e faltou, foi uma mulher que veio se queixar de que nossa congregação era muito pouco acolhedora. Ela vinha frequentando os cultos havia dois anos e até então ninguém a apresentara formalmente.
Em seguida, Ben e marsha Hopkins vieram me dizer que não poderia comparecer a reunião do grupo de casa. Seria a terceira vez seguida que iriam faltar, um mau exemplo, considerando-se que ele era meu adjunto. Quando os pressionei, eles finalmente me disseram que não estavam contentes com a igreja e que vinham considerando a possibilidade de sair. Tentei convencê-los a não fazer isso. Eu dedicara um número incalculável de horas preparando-os para liderar seu próprio grupo. Como iam sair logo agora?
-- Nossos filhos estão participando de um grupo de jovens em outra igreja mais perto da nossa casa. Além disso, já faz algum tempo que estamos nos sentindo pou à vontade com o caráter impessoal que a igreja vem assumindo.
Quando os dois chegaram à paróquia, estavam prestes a se divorciar. Investi muito esforço para ajudá-los a reconstruir seu casamento. Agora, justo na hora em que tinham superado a crise e podiam dedicar-se, eles partiam em busca de novos lugares.
E, para culminar, o pastor telefonou logo após o almoço para cancelar uma reunião que, a pedido dele, eu marcara com muita dificuldade. Alegou simplesmente que não estava se sentindo bem. Furioso, precisei sair para refrescar a cabeça.
A porta do escritório denunciou minha frustação ao bater com muito mais força do que eu pretendia, assustando minha secretaria e atraindo o olhar de todos. Fiz um gesto de impaciência em direção à porta e, quando olhei para trás, meus olhos se fixaram na placa tão familiar: Jake Colsen, Pastor Associado.
Ainda me recordo do primeiro dia em que entrei por aquela porta, surpreso pelo fato de a placa com o meu nome já estar no lugar e com medo da responsabilidade que ela depositava sobre meus ombros. Eu nunca planejara virar ministro em tempo integral, mas no dia em que entrei naquela sala senti como se todos os meus sonhos tivessem afinal se realizado. Quatro anos mais tarde esses sonhos, como sempre, mostraram-se inalcançáveis.
Filho de pais da classe operária, cresci na igreja. Mesmo nos turbulentos anos da adolescência, nunca me afastei de minhas raízes espirituais. Saí da faculdade em 1979, formado em administração, e acabei indo trabalhar como corretor de imóveis em Kingston, uma cidade na fertil região central da Califórnia. A economia havia explodido na década de 1980 e começo dos anos 1990, e assim pude construir um negócio lucrativo e uma reputação sólida.
Minha mulher e eu ajudamos a fundar a igreja para a qual trabalho agora. Havia 15 anos, descontentes com a luta pelo poder travada na igreja tradicional que frequentavamos, decidimos, com umas poucas famílias e alguns estudantes universitários, criar uma nova. Durante certo tempo nós nos reunimos em nossas casas, mas logo alugamos um prédio e abrimos as portas para a comunidade. No começo o crescimento foi lento, mas nos últimos 10 anos a igreja congregou mais de 2 mil membros, conseguimos levantar nossa sede própria e ganhamos uma equipe completa de gestão pastoral.
Dá para imaginar como fiquei envaidecido quando o pastor me convidou para integrar essa equipe de gestão, supervisionando os assuntos financeiros e auxiliando no trabalho pastoral. Eu tinha 39 anos na época, estava indo bem na minha profissão e criando dois filhos pequenos. A turma adulta da escola dominical para a qual eu dava aulas era uma das mais concorridas da igreja, e eu havia completado duas gestões na diretoria.
O pastor falou quanto precisava de mim e pediu-me para substituí-lo nas atividades em que não se sentia competente. Embora eu estivesse ganhando mais do que o suficiente na corretagem de imóveis, sabia que se tratava apenas do "deus dinheiro", como eu ouvia nos sermões, e me perguntava se não estaria desperdiçando a vida com prazeres fúteis. O que realmente importava na minha vida? Resolvi aceitar o trabalho, na esperança de dar uma trégua à culpa infindável que me atormentava.
E assim foi durante algum tempo. No primeiro ano, ou nos dois primeiros, fui absorvido pela importância de fazer parte de uma equipe que dirigia uma igreja em ascensão e ainda ter tempo para orar e estudar a Bíblia. Logo, entretanto, a carga de trabalho se tornou opressiva. Eu não só trabalhava o dia inteiro como passava cinco ou seis noites por semana fora de casa. Não tinha disponibilidade alguma para dedicar um mínimo de tempo que fosse à corretagem de imóveis, como havia planejado, para compensar a queda de rendimentos.
Quando minha frustação chegava ao auge, eu costumava buscar consolo em longas caminhadas. Dizia à minha secretaria que ficaria por fora por algum tempo e me dirigia para um parque duas quadras adiante. Ele era meu refúgio mais frequente e às vezes me servia de local de oração. Naquele dia a temperatura não estava muito acima dos 30 graus- sinal de que o verão finalmente chegava ao fim e os dias mais amenos do outono se aproximavam.
Dobrando a esquina, porém, fiquei surpreso ao ver o parque repleto de crianças. Desapontado, procurei um lugar mais tranquilo onde ficar. Foi quando reparei nele - uma figura solitária sentada em um dos bancos. Mesmo àquela distância ele se parecia com o estranho que eu vira em San Luís Obispo.
Meu coração deu um salto. Eu tinha pedido muitas vezes a Deus que me desse uma oportunidade de conversar com aquele homem, mas já havia desistido de esperar. Ao imaginar vê-lo, lembrei-me daquela manhã extraordinária e da ânsia que assaltara meu coração. Eu tinha quase certeza de que não podia ser ele, mas me aproximei para conferir mais de perto.
Enquanto ia me aproximando, tinha a impressão de que a altura era a mesma e de que a compleição e a barba eram familiares, mas o homem usava óculos escuros e um boné de beisebol que dificultavam a avaliação. Parecia ter os olhos perdidos na distância, sem sequer notar minha presença.
Eu não conseguia desviar os olhos; meu coração batia descompassadamente.
E se for ele? O que é que eu faço?
Quando cheguei perto, o homem virou a cabeça, e eu imediatamente desviei os olhos. Não pode ser ele. Não conseguia chegar a uma conclusão. Não tinha a menor ideia do que dizer, e a hesitação era tanta que sai andando pela calçada. Havia me afastado uns 10 metros quando reuni coragem suficiente para parar e olhar para o parque, como se estivesse procurando alguma coisa. Meus olhos voltaram a recair sobre o homem no banco.
Com certeza parecia ser ele.
Sua cabeça começou a se voltar, e eu me virei de novo, sentindo-me inconveniente. Antes mesmo de me dar conta, já estava outra vez me afastado. Sentei em um banco uns 50 metros adiante e olhei novamente. O homem acabara de se levantar e seguia na direção oposta.
Oh, não! O que é que eu faço?  É agora ou nunca.
Saí correndo atrás dele, até chegar tão perto que ou passava direto ou então falava.
--- Desculpe, senhor! -- As palavras saíram dos meus lábios sem que eu as controlasse.
Ele se deteve e virou-se de frente para mim.
-- Sim? Uma sílaba era pouco, mas a voz soou familiar.
-- Desculpe lhe perguntar, mas o senhor estava há alguns meses no centro comercial de San Luís Obispo?  -- Os óculos escuros ocultavam qualquer expressão.
-- De fato eu estive lá, sim, faz poucos meses, mas somente por alguns dias. Nós nos conhecemos?
-- Não, mas alguém muito parecido com o senhor entrou numa discussão que algumas pessoas travavam na área comercial da cidade.
É possível que fosse eu- - ele respondeu, dando de ombros.
-- Era um discussão sobre religião. E o senhor, se é aquele mesmo homem, entrou no debate e falou de Jesus e de como ele realmente amava as pessoas. Isso faz sentido?
-- Faz. Eu falo sempre, sobretudo com pessoas que estão em busca de conhecimentos espirituais.
-- Meu nome é Jake Colsen- - eu disse,  estendendo a mão.
-- Oi, Jake. Eu sou João-  ele respondeu, oferecendo-me a sua. -- E por favor,  não me chame de senhor.
A próxima respiração não me veio fácil, e tampouco as palavras seguintes. Eu sentia como se tivesse levado um soco no estômago.
-- O senhor, digo, você é o mesmo homem que falou com aquelas pessoas? Era uma manhã de sábado. Não me viu lá?
-- Não me lembro exatamente de sua presença, mas esse é o tipo de conversar em que eu costumo me envolver.
-- Podemos conversar por um momento?  -- Olhei o relógio e vi que só tinha meia hora antes de uma reunião no escritório. Dirigi-me ao banco mais próximo.
-- Eu ficaria encantado.
Nós nos sentamos, ambos olhando fixamente para o parque.
Pode parecer estranho - eu comecei, finalmente -, mas orei muito
por esta oportunidade de encontrá-lo. Suas palavras me tocaram de
verdade naquele dia. Falou sobre Jesus como se tivesse estado com
ele pessoalmente. Num certo momento cheguei a me perguntar se você
não seria o apóstolo João.
Ele riu baixinho.
- Isso me faria um tanto velho, não acha?
- Sei que parece loucura, mas, quando esse pensamento me ocorreu, você
se deteve no meio da frase, virou-se para mim e balançou a cabeça como se
concordasse. Tentei segui-lo depois, mas acho que o perdi no meio da
multidão.
- Talvez não fosse o momento. Pelo menos estamos aqui agora. De que
você gostaria de falar?
- É você?
- Eu sou o quê?
- Você é João?
- O discípulo de Jesus? - Ele sorriu, evidentemente apreciando a
confusão. - Bem, você já sabe que meu nome é João, e eu me considero de
fato um discípulo de Jesus.
- Mas você é o João?
- Por que isso é tão importante para você?
- Se for, tem algumas coisas que eu gostaria de lhe perguntar.
- E se não for?
Eu não sabia o que dizer. Tinha sido profundamente afetado por suas
palavras, fosse ele quem fosse. Aquele homem dava a impressão de saber
determinadas coisas sobre Jesus que certamente me haviam escapado.
- Acho que gostaria de conversar com você, de qualquer modo.
- Por quê?
- Suas palavras em San Luis Obispo mexeram profundamente comigo.
Você parece conhecer Jesus de uma forma que eu nunca imaginei. Sou
pastor, dirijo uma igreja na cidade, a Irmandade do Centro da Cidade. Já
ouviu falar?
- Não, creio que não. - Ele sacudiu a cabeça.
Sua resposta me deixou um tanto ofendido. Como é que ele não sabia a
nosso respeito?
- Você mora por aqui?
- Não. Na realidade, esta é a primeira vez que venho a Kingston.
- É mesmo? O que o traz aqui?
- Talvez suas orações - ele respondeu, rindo. - Não estou bem certo.
- Olhe, terei que ir embora dentro de poucos minutos. Poderíamos nos
encontrar novamente?
- Não sei. Eu realmente não tenho liberdade para assumir compromissos.
Se tivermos necessidade de nos ver outra vez, tenho certeza de que o
faremos. Nós não marcamos este encontro de hoje.
- Você poderia vir jantar comigo esta noite? Aí poderíamos conversar...
- Não, desculpe. Já tenho algo para esta noite. Mas o que é que você quer
conversar?
Por onde começar? Eu tinha tantas coisas para perguntar e apenas 20
minutos antes de ter que correr para o escritório, mesmo assim chegando
atrasado.
- Estou me sentindo muito frustrado. É como se todas as pessoas com
quem tenho falado ultimamente estivessem se sentindo vazias, até mesmo
cristãos que conheço há décadas. Ontem encontrei um dos nossos veteranos,
Davis, que sempre considerei uma rocha. Davis está totalmente desiludido.
Chegou a me dizer que tem se perguntado freqüentemente se Deus é mesmo
real ou se essa coisa toda de cristianismo não passa de balela.
- O que você lhe respondeu?
- Procurei encorajá-lo. Disse-lhe que não se pode viver baseado no que
se vê, mas naquilo em que se crê. Mostrei que algum dia ele será re-
compensado pelas coisas maravilhosas que tem feito para Deus e que só
precisamos ser fiéis e não confiar nos nossos sentimentos.
- Quer dizer que você disse que ele não tem direito a ter sentimentos, ou
questionamentos?
- Não, não foi isso o que eu falei.
- Tem certeza? - A pergunta era amável, sem acusações.
Tentei relembrar o que dissera.
Entenda uma coisa, Jake. Sabe o que descobri sobre quando as pes-
soas sentem que há algo errado? É que algo de fato está errado. Você
acha que ajudou Davis?
- Não sei. Procurei estimulá-lo bastante. Acho que ele ficou melhor.
João permaneceu em silêncio enquanto eu pensava. Acabei concluindo:
- Você está certo, eu não o ajudei em nada. Acho que só fiz com que ele
se sentisse mais culpado.
- Será que ele irá procurá-lo da próxima vez que tiver esse tipo de
pensamento?
Eu me limitei a fazer que não com a cabeça, lamentando praticamente
tudo o que dissera a Davis.
- Vou ligar para ele e tentar de novo.
- Mas e quanto a você, Jake? Está funcionando para você?
- Funcionando o quê?
- Sua fé. A vida em Deus lhe dá a alegria e o sentido que você procura?
Ela lhe dá paz?
- Eu me sinto frustrado de vez em quando, como hoje. Mas em geral fico
pensando em tudo o que tenho que fazer, e isso me ocupa a cabeça.
João não se mexeu, e eu prossegui:
- Quer dizer, sinto falta do dinheiro e do tempo livre que tinha, mas
o que faço agora é muito mais importante. Estamos promovendo um
grande impacto nesta cidade.
Ele continuou sentado em silêncio. Eu não sabia mais o que dizer e,
inesperadamente, as lágrimas começaram a brotar dos meus olhos e eu me
vi soluçando. De repente eu me senti incrivelmente só.
A cabeça de João finalmente se voltou na minha direção.
- Não estou me referindo ao que você está fazendo. Você se sente
preenchido pelo amor de Jesus como estava no primeiro dia em que
acreditou nele?
As palavras me penetraram na alma, e foi como se eu derretesse por
dentro, como manteiga sobre pão quente.
- N... N... N... Não! - Eu não conseguia falar, a voz sacudida por gol
fadas curtas de ar. Quando a palavra finalmente saiu, veio acompanhada
por um longo suspiro gutural. - Há anos que não vem funcionando.
Tenho a impressão de que quanto mais eu faço por Deus, mais Ele se afasta
de mim.
- Ou, quem sabe, mais você exige dele.
- O quê? - Fosse ele quem fosse, certamente via as coisas sempre por um
ângulo diferente.
- Sabe por que está se sentindo assim tão vazio?
- Na verdade, não tenho pensado muito a respeito, João, porque ando
muito ocupado, sem tempo para pensar. Isso me dá um grande desânimo.
Por outro lado, tenho tanto a agradecer: uma mulher adorável e com-
panheira, filhos maravilhosos, uma casa linda. E estou servindo a Deus com
o melhor de mim. Mas sinto um buraco aqui dentro. - Bati com o punho no
peito, enquanto meus olhos ficavam cada vez mais úmidos.
- Davis mexeu com você, não foi?
- Como? - Pela segunda vez eu perdia o rumo.
- Talvez você esteja se sentindo tão vazio quanto ele, mas não consegue
reduzir o ritmo de trabalho e admitir isso.
Não me dei conta disso, mas me lembro de que fui me sentindo cada vez
mais incomodado enquanto ele falava. Para dizer a verdade, eu não queria
responder às perguntas dele.
- Você sabe do que estamos falando, não é, Jake? - João se recostou no
banco, cruzou os braços sobre o peito e olhou para o parque. - É sobre a
vida, a verdadeira vida de Deus preenchendo a sua. Pode ter certeza de
que Ele está fazendo as coisas de um jeito que vai eliminar qualquer dúvi-
da sobre a Sua realidade. É o tipo de relacionamento que Adão experi-
mentava quando caminhava com Deus pelo jardim do paraíso, ouvindo
Dele o grande plano de ter um povo por meio do qual pudesse revelar
sua realidade ao mundo das mais diversas formas. Foi essa a vida que
Jesus viveu, e ela foi suficiente para atender todas as necessidades com
que ele se deparou, desde dar de comer a multidões com dois peixes e
cinco pães até curar uma mulher doente que tocou a barra da sua túni
ca. Essa vida não é uma mera idéia filosófica que se pode evocar pela
meditação ou por alguma espécie de abstração teológica. É completu-
de. É liberdade. É alegria e paz, não importa o que aconteça, mesmo
que seu médico pronuncie uma palavra ameaçadora ao lhe dar o resultado do seu exame de ressonância magnética. É o tipo de vida que Jesus
veio repartir com todos aqueles que se mostram capazes de desistir de tentar
controlar a própria vida para abraçar sua proposta. - João parou um instante
para que eu pudesse absorver o que dizia. Depois prosseguiu: - A proposta
de Jesus não é, com certeza, aquilo que tanta gente imagina, como dar duro
no trabalho, reunir uma multidão de fiéis ou construir novos templos. Tem a
ver com a vida que se pode enxergar, provar e tocar, algo que se pode
desfrutar todos os dias. Sei que o que estou dizendo pode parecer
complicado, mas você sabe bem do que estou falando. Já passou por
momentos assim, não é mesmo?
- Sim, já passei, mas foram sempre tão breves. Lembro-me bem de como
era no começo, mas agora ficou tudo tão distante. O que há de errado
comigo? Como posso ser um cristão há tanto tempo, ser tão ativo na igreja e
me sentir tão vazio? Como perdi o contato com essa vida de que você está
falando?
- Já vi isso acontecer muitas e muitas vezes - João respondeu. - É uma
autêntica epidemia hoje. De certa forma, nossa experiência espiritual dá
importância às coisas erradas, e acabamos sendo afastados da verdadeira
vida. Foi o que aconteceu também nos primeiros tempos da Igreja. Você se
recorda do que ocorreu em Éfeso e do que Jesus disse na epístola da
Revelação? A teologia dos cristãos de Éfeso era impecável. Conheciam a
verdade com tal precisão que eram capazes de identificar o erro como uma
mosca na tigela de sopa a centenas de passos. Não tinham medo de enfrentar
os que se punham à frente no ministério para descobrir quem estava falando
a verdade e quem estava fabricando uma mensagem apenas para promover-
se. A resistência deles numa época de sofrimento não perdeu para nenhuma
outra em toda a cristandade. Quanto mais enfrentavam o sofrimento, mais
fortes se sentiam, e nunca se queixavam quando eram atacados. Apesar de
tudo isso, Jesus estava satisfeito com eles?
Eu lera recentemente essa passagem e sabia bem a que João se referia.
- Não, ele os reprovou por terem abandonado o amor inicial.
- Isso mesmo. Não é incrível? Tinham abandonado o maravilhoso amor
por Jesus que existira no início. Sem esse amor. mesmo os atos heróicos não fazem sentido. É possível alguém concentrar-se de tal maneira
no trabalho para Jesus que acaba perdendo de vista quem ele realmente é.
Muito pouco do que os cristãos primitivos faziam era motivado pelo amor
que tinham por ele. Isso fez com que tudo ficasse não apenas sem valor,
mas verdadeiramente destrutivo.
- Sou eu! - exclamei. - Você está falando de mim.
- É uma história muito antiga, Jake. E ela tem se repetido milhões de
vezes, com milhões de nomes diferentes. Você se lembra do dia em que o
amor de Jesus conquistou seu coração pela primeira vez?
As lembranças me chegaram flutuando.
- Lembro. Eu devia ter uns 12 ou 13 anos. Meus pais estavam na
outra sala orando, com mais umas 30 pessoas. Estavam ali havia umas
quatro horas, e o entusiasmo era tanto que iriam até tarde da noite. Isso
sempre acontecia nas sextas-feiras. Às vezes cantavam, às vezes riam e
às vezes até choravam. - Parei um pouco, saboreando as lembranças.
- Tinha sido uma grande mudança, pois éramos a terceira geração de
batistas por parte de pai e de presbiterianos por parte de mãe. Meus pais
eram membros ativos da igreja batista, apesar de nunca terem parecido
gostar de fato da igreja. Havia muita competição e intrigas, e aos poucos
eles foram sentindo que não eram bem-vindos. Por isso os dois resol-
veram fundar outra igreja junto com outros que também estavam insa-
tisfeitos. À primeira reunião compareceram mais de 80 pessoas, que
ficaram apertadas numa casa pequena. A experiência foi tão eletrizante
que eles decidiram alugar um prédio e contratar um pastor. - Era esti--
mulante contar essas coisas para uma pessoa que ouvia com tanto inte-
resse. - Tornaram-se pessoas apaixonadas pela caminhada com Deus.
Sentiam que Ele estava transformando suas vidas. Velhos hábitos se
perderam, a presença de Deus ficou mais forte do que suas necessida-
des, e eles não perdiam uma oportunidade de ler a Bíblia. Pela primeira
vez eu os vi alegres, livres e vivos em sua fé. Isso despertou o desejo em
nós, garotos, de também participarmos daquilo. Foi nessa época que
pela primeira vez Deus conquistou meu coração.
João sorriu.
- Não há nada que o Pai deseje mais do que nos ver cair diretamente
no colo do Seu amor e de lá nunca mais sair. O plano de Deus, desde a
Criação, foi pensado para trazer as pessoas à relação de amor que o Pai, o
Filho e o Espírito Santo têm compartilhado ao longo da eternidade. Ele não
deseja nada mais além disso! Você sabe que Deus não é um ser imponente e
distante que enviou seu Filho com uma lista de regras a obedecer e rituais a
praticar. A missão de Jesus era nos convidar para o amor, para a relação
com Deus Pai descrita por ele. Mas o que fizemos? Transformamos a
mensagem fundamental de amor em uma instituição, em poder, em trabalho,
em culpa, em conformismo e manipulação. Tudo isso soterrou o verdadeiro
amor. Em Éfeso, a Igreja estava formando falsos professores. Na Galácia,
conseguiu que todos observassem os rituais do Antigo Testamento.
Atualmente vem convencendo as pessoas a cooperarem com seus
programas, sem perceber quanto essas práticas as distanciam da vida com
Deus. É mais fácil perceber o problema quando se trata da circuncisão em
Éfeso do que quando se trata de ir à igreja aos domingos. Mas ambas as
práticas podem levar à mesma coisa: crentes entediados e desiludidos,
repetindo gestos e rituais vazios da vida com o Pai.
Eu não sabia o que dizer. Não me sentia seguro sequer para concordar
com ele.
- Vou lhe fazer uma pergunta, Jake. Quantas telhas cobrem o telhado
do seu santuário?
Eu nem precisei pensar.
- Trezentas e doze completas e 98 pedaços.
- E como é que você sabe disso?
- Eu as conto quando me sinto entediado.
- Então você deve ficar entediado com bastante freqüência. Sabe quantos
outros mais fazem o mesmo? Certa vez conheci um rapaz que somava os
números dos salmos na máquina de calcular para ver se totalizavam 666.
Você não acha que isso é sinal de que algo está errado? - Bom, concluí, ele
devia ter razão. - O que é que você pensou ao chegar à igreja no domingo
passado de manhã? O que você falou para si mesmo enquanto estacionava o
carro?
Precisei pensar mais um pouco. Ri ao me lembrar.
Pensei: vou gostar quando tudo estiver terminado e eu puder voltar para
casa. Como é que você sabia?
- Não sabia, mas não me surpreende. Sabe quantas pessoas pensam
assim, mesmo aquelas que presidem o culto, como você? A rotina acaba
secando a vida, mesmo que seja muito boa.
- Quer dizer que a desilusão de Davis é uma coisa boa? - perguntei,
incrédulo.
- Tal como a sua. Quando você chega à conclusão de que a rotina que o
consome não contribui substancialmente para o seu desejo de conhecer
melhor a Deus, algumas coisas incríveis podem ocorrer. Agüentar o mesmo
programa, semana após semana, é duro. Você não está cansado de se ver,
ano após ano, caindo nas mesmas tentações, fazendo as mesmas orações não
atendidas e não vendo provas de que está reconhecendo a voz de Deus com
uma clareza crescente?
- Estou cansado, sim. - Eu mesmo fiquei surpreso com a rapidez com que
a resposta me saltou dos lábios e com a frustração que acompanhou as
palavras. - Então por que todos nós fazemos isso?
- Essa resposta, Jake, vai fazer você se conhecer melhor. Por enquanto,
seja honesto em relação ao seu tédio e à sua desilusão. E tenha a certeza de
que o Pai nunca desistiu do desejo de compartilhar da amizade que você
experimentou aos 13 anos.
- Esse desejo apareceu outras vezes no decorrer da minha vida.
- Claro, mas não resistiu muito tempo, não foi? Se tivesse resistido, você
não precisaria tentar animar gente como Davis, dizendo chavões bem-
intencionados mas ocos. Pessoas como ele não podem ser silenciadas, e é
melhor aplaudi-las pela coragem de expressar claramente seu sentimento.
Para dizer a verdade, a honestidade de Davis demonstra mais fé do que a
resposta que você lhe deu.
- O que é que eu faço, João? Quero essa vida da qual você tanto fala.
- Isso não vai exigir muito de você, Jake. Apenas seja verdadeiro com o
Pai e resista aos apelos para se recolher à sua concha e silenciosamente
suportar o desânimo e a desesperança. Sua luta brota do chamado que vem
do Espírito Divino. Peça-Lhe que lhe mostre como todos os seus esforços
para realizar boas obras podem estar obscurecendo a consciência do amor Dele por você. E deixe que Deus faça o resto. Ele irá
conduzi-lo até Ele.
Olhei o relógio e vi que tinha que ir.
- Desculpe-me, tenho que correr. Talvez demore algum tempo, João, mas
vou tentar!
- Ótimo. Não vai ser uma alegria poder acordar todos os dias com a
certeza de ser amado por Deus gratuitamente, sem ter que obter esse amor
com suas ações? Este é o segredo para o amor original: não tente obtê-lo.
Entenda que você é aceito e amado não pelo que pode fazer para Deus, mas
sim porque o que Ele mais deseja é tê-lo como um de Seus filhos. Jesus veio
para remover todos os obstáculos capazes de impedir que isso aconteça.
Quando me levantei para ir embora, segurei a mão de João. Ele apertou a
minha e a reteve por um instante.
- Isso não é difícil, Jake. Neste mundo você só consegue o que procura.
Eis o segredo de tudo. Se você está procurando uma relação com Deus,
haverá de encontrá-la.
- Mas eu acho que é o que tenho procurado o tempo inteiro. Então por
que eu não a encontro?
- Talvez você a tenha procurado no início. Mas a coisa também funciona
de outra maneira. Se você analisar bem aquilo que acaba de acontecer,
saberá o que de fato andou buscando! - Ele soltou minha mão.
Suas palavras foram um fecho tão definitivo, e eu estava de tal modo
apressado para voltar aos meus compromissos, que me limitei a fazer que
sim com a cabeça. Naquela hora não tinha idéia do que João queria dizer.
- Espero poder vê-lo outra vez.
- Oh, acho que sim... na hora certa.
Agradeci e acenei me despedindo. Como estava bastante atrasado para a
reunião, saí correndo pelo parque. Mais tarde me surpreendi pensando que
as maiores jornadas das nossas vidas começam de forma tão simples que só
percebemos que embarcamos nelas quando nos vemos em plena estrada
olhando para trás. Foi o que aconteceu comigo.

por que você nao quer mais ir à igreja?Onde histórias criam vida. Descubra agora