O início

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Atravesso o parque em direção ao rio espelhado à minha frente. Os meus movimentos são leves, descontraídos, não quero chamar atenções desnecessárias. Se estivesse sozinha teria corrido rapidamente até à muralha, antes que qualquer olho humano conseguisse pestanejar. Se alguém me visse a correr dessa forma, estaria a expor-me e teria de fazer aquilo para o qual fui criada: matar. Não, hoje não. Não estou com disposição para matar ninguém. Além disso, prometi-lhe que tentaria contrariar a minha natureza, que evitaria ceifar uma vida, que me esforçaria por ser mais humana. Encolho-me perante este pensamento. Como pode uma vampira como eu conseguir tudo isto? Continuo a minha caminhada, o rio cada vez mais perto, coberto pelo tom alaranjado do pôr-do-sol. Daqui a pouco vou poder tirar os óculos escuros, que protegem os meus olhos cor de violeta. Uso sempre óculos nos dias de sol, pois a luz dá-lhes uma tonalidade quase avermelhada, o que pode assustar os humanos com quem me cruzo na rua. Nos dias em que o sol se esconde, posso exibi-los ao mundo, pois a sua cor, apesar de rara, é perfeitamente aceitável para os padrões das pessoas. Para além dos meus olhos, nada mais na minha aparência pode denunciar a minha natureza vampírica, chamemos-lhe assim. Segundo ele, tenho uma beleza exuberante, mas para falar a verdade, nunca dei muita importância ao meu rosto seráfico oval de uma palidez excessiva, nem aos meus lábios cor de cereja cuidadosamente delineados até ele mos elogiar. Quando nos conhecemos, o Gabriel disse-me que o meu sorriso era capaz de lhe iluminar o coração. Eu ri-me, sem conseguir conter o nervosismo e respondi-lhe que isso só seria possível se ele tivesse um. Ele olhou para mim, muito sério, sem traços de riso nos olhos escuros e acariciou-me a face com a palma da sua mão. Posso não ter um coração, Lara, mas tento agir como se tivesse.

Chego finalmente ao meu destino. Num salto, talvez rápido de mais, mas às vezes é muito difícil conter a minha agilidade natural, sento-me em cima das pedras escuras, que guardam ainda o calor do sol que agora se põe sobre as águas calmas. À medida que a luz vai desaparecendo e que as trevas invadem as árvores, os relvados e os caminhos, as pessoas começam também a desaparecer. Têm medo do escuro, receiam tudo aquilo que não podem ver. Contenho uma gargalhada irónica. Se elas sonhassem que o perigo caminha nas ruas à luz do dia... Abano a cabeça. Não posso ter estes pensamentos. Se quero ser uma vampira boa, como o Gabriel, tenho de me esforçar por reprimir a minha natureza. Ele diz que tudo depende da força de vontade. Que tudo é possível quando o desejamos verdadeiramente. E eu quero ser como ele, quero mesmo, mas está a ser muito difícil. Principalmente agora, em que o odor doce e mágico dos humanos percorre as minhas narinas abrindo-me o apetite, é quase insuportável. Encolho as pernas esguias e rodeio-as com os meus braços. O Gabriel tem razão. Ser vampiro tem de ser mais do que perseguir pessoas para lhes beber o sangue. Não pode resumir-se a predador e presa, indefinidamente, eternamente. Não me tinha apercebido do vazio que era a minha existência até conhecer o Gabriel, esse anjo em corpo de vampiro, tão belo como bondoso. Até o encontrar naquele dia, no beco escuro e malcheiroso, os séculos tinham passado por mim, uns iguais aos outros. Durante décadas vagueei pelas ruas, tendo apenas duas preocupações: manter-me no anonimato e alimentar-me. Atravessei os corredores do tempo matando indiscriminadamente sempre que tinha sede, sem prestar atenção aos humanos que viviam à minha volta, sem entender os seus sentimentos ou mesmo os seus direitos. Quando fui transformada, o meu criador soltou-me no mundo apenas com uma recomendação: procura bons pescoços. Não me recordo bem dele, assim como não me recordo dos meus anos como humana. Nós, os vampiros, não envelhecemos, mas a nossa memória começa a ser seletiva ao fim de alguns séculos e há muitos pormenores que se perdem para sempre. Aceitei sem me revoltar o presente que me tinha sido oferecido: a juventude eterna. A ideia de não morrer era reconfortante e juntamente com os meus instintos predatórios, uma arma letal. Quando matava alguém, parecia-me a atitude certa. Eu era um predador, tinha de me alimentar e para que isso acontecesse, era imprescindível que alguém morresse. E depois? Não era assim que a Natureza se organizava à minha volta? A aranha come a mosca; o pássaro come a aranha; o leão come a gazela; eu caçava pessoas e bebia-lhes o sangue para não enfraquecer! Dois séculos passaram e percorri, solitária, este caminho, com a superioridade de quem se julga dono da verdade absoluta. Saltava de cidade em cidade, qual nómada, na busca incessante de sangue fresco, encontrando de vez em quando outros da minha espécie, que conduziam existências semelhantes à minha. Sendo predadores não convivíamos durante muito tempo, porque na prática éramos adversários e a coexistência no mesmo sítio implicava concorrência. Evitava a companhia dos outros nómadas, não sentia qualquer interesse em conviver com eles, não sentia a necessidade de me relacionar ou de criar laços afetivos. Na verdade, não sentia nada. No entanto, tudo isso mudou no ano passado quando o Gabriel entrou na minha vida. Quando olho para trás tudo me parece vazio e sem sentido. Como consegui suportar os dias, as noites, os anos, os séculos na mais completa solidão?

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