Recordações

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Corremos juntos, rápidos como setas, pela colina acima. Passamos rente às árvores centenárias que se arrepiam com a deslocação de ar provocada pelos nossos corpos velozes em movimento. Aqui não tenho de fingir que os meus membros são lentos e torpes como os dos humanos, que continuam tão apetitosos. Aqui, na floresta, podemos mostrar a nossa natureza, não toda, claro, pois isso significaria termos de caçar as nossas presas favoritas... e eu já deixei de as perseguir há dois anos, tarefa que ainda se revela difícil.

Atravessamos o bosque num instante com o vento a fustigar-nos a cara e os braços despidos. Gabriel olha para mim com um sorriso largo, radioso, como se dissesse "vou ganhar" e eu aumento a velocidade, ultrapassando-o. Ele sabe no fundo que não consegue vencer-me, pois sou extremamente rápida, mesmo para uma vampira. Quando chego ao topo, paro subitamente, embora no solo arenoso não fique qualquer marca da minha travagem. Uns escassos segundos depois, chega o Gabriel, ainda a sorrir.

- És mesmo veloz, Lara! - diz ele, abraçando-me - Acho que ninguém te consegue apanhar!

- Isso eu não sei. Foste o único vampiro com o qual fiz uma corrida.

- E o único por quem te apaixonaste - acrescenta ela, encostando o nariz ao meu ouvido.

Eu solto uma gargalhada.

- Mas que autoconfiança!

Ele afasta-se de mim e observa-me atentamente, tentando descobrir se estou a falar a sério ou não. Eu sacudo o cabelo com a mão, como se estivesse a penteá-lo. Na verdade, é só uma artimanha para esconder o nervosismo.

- Já tinhas gostado de alguém antes de mim, Lara? - interroga ele, perfurando os meus olhos com os seus.

Eu respondo rapidamente:

- Sabes que não. Eu estava a brincar contigo.

- Nem mesmo quando eras humana?

- Não me recordo muito da minha vida antes de ser transformada. - respondo, ficando pensativa por uns instantes, percorrendo as estantes das minhas memórias - Restaram apenas algumas imagens enevoadas: uma casa com alpendre por onde as trepadeiras subiam, a minha mãe e os seus olhos azuis brilhantes, uma criança a chorar - seria meu irmão ou irmã? Não me lembro. A única memória mais vívida é a do dia em que me tornei vampira.

Ele agarra as minhas mãos e puxa-me para baixo, para que nos sentemos. Incrível como a terra está quente em comparação com os nossos corpos!

- Conta-me como foi. Nunca disseste quem te transformou.

Eu aperto as suas mãos e solto um suspiro profundo. Embora não me lembre da minha vida como humana, custa-me recordar o último dia como frágil criatura, pois tenho a certeza de que era uma pessoa feliz. Além disso, trazer de volta a imagem daquele dia faz-me pensar em tudo aquilo que perdi e em tudo o que podia vir a ter.

- Nunca te contei - começo, falando num sussurro - porque ainda me magoa.

Ele pestaneja, não parece compreender a minha afirmação. Afasto os olhos para a paisagem que se estende à nossa frente: um vale encantador, verde e florido, banhado pelo sol.

- Não estou a perceber, Lara. Doeu-te assim tanto a transformação? Comigo foram apenas algumas horas de dor após a dentada e depois tudo passou.

Abano a cabeça negativamente.

- Não, meu tonto, não é nada disso! - respondo, fazendo-lhe uma festa na cara.

- Então? O que te magoou tanto nesse dia?

- Na altura não me doeu nada, exceto fisicamente, óbvio. Eu nem sequer percebi muito bem o que me estava a acontecer. Acreditava que os vampiros eram personagens míticas. Fui surpreendida a caminho de casa por um homem alto, que apareceu à minha frente, vindo do nada. Eu regressava da casa de tecidos, a minha mãe tinha-me pedido que fosse buscar uma encomenda de fazenda - ela era costureira - e subitamente um estranho de olhos faiscantes se materializou quando dobrei a esquina da rua. Era um ser fantástico. Hoje percebo que a imortalidade nos confere este ar etéreo, quase angelical. No entanto, nessa época ignorava completamente o mundo vampírico.

Outro suspiro sai dos meus lábios. Que feliz era eu nessa altura no meio de toda a minha ignorância!

- Continua - incita Gabriel, empurrando com suavidade uma madeixa do meu cabelo encaracolado, que teima em cair para a minha cara.

- Ele olhou para mim e eu reparei que as suas retinas eram vermelhas, muito brilhantes. Nem tive tempo de me espantar com esse facto porque no segundo seguinte ele desceu sobre o meu pescoço e as suas presas - uns caninos afiados - espetaram-se na minha carne. A dor que senti foi horrível, mas não é a sua recordação que me faz ficar triste, Gabriel.

- Se não queres falar disso, eu compreendo. - responde ele, depositando um beijo suave como a brisa de verão sobre a minha boca.

- Não, tudo bem - respondo, quando ele se afasta de mim, provocando-me uma sensação de saudade extrema. - O meu criador deixou-me sozinha depois de saciar a sua sede, julgando-me morta. Mas eu não tinha morrido. Arrastei-me até casa, ensanguentada, pensando na minha mãe, que prontamente me ajudaria. Como me enganei, Gabriel! Quando ela me viu, abriu muito os olhos, fez o sinal da cruz e começou a entoar uma ladainha para se proteger de mim. Quando tentei aproximar-me e explicar-lhe que era eu, a sua filha, ela desatou a gritar, dizendo que eu era um demónio vindo das profundezas do Inferno para a matar.

Sinto os meus ombros descaírem com o peso da recordação. Durante séculos tentei esquecer o horror com que a minha mãe me olhou nessa noite; durante anos não percebi porque o fizera, obrigando-me a fugir para longe... Se eu me tivesse visto ao espelho na altura, teria entendido. Quem não teria medo de uma mulher cheia de sangue, com os olhos vermelhos e os caninos salientes?

- Desculpa se te causei sofrimento ao relembrares esse dia - diz Gabriel, agarrando na minha mão, os nossos dedos entrelaçando-se como que por instinto - Não era essa a minha intenção.

- Eu sei. Eu estou bem. Além disso, se eu não me tivesse tornado vampira, nunca te teria conhecido.

Gabriel sorri, aquele sorriso luminoso que me aquece e preenche como nenhum outro.

- Oh que momento ternurento! - exclama uma voz estranha atrás de nós.

Voltamo-nos num abrir e fechar de olhos e num salto, pomo-nos de pé, de frente para a voz.

Um vampiro alto e esguio fita-nos, com a cabeça ligeiramente descaída para um dos lados, os braços cruzados sobre o peito tapado por uma camisa negra, o cabelo liso e negro como asa de corvo esvoaçando atrás de si. Os olhos brilham, vermelhos como rubis e prendem-se aos meus. Aqueles olhos! Aqueles olhos! Não, não pode ser! Tapo a boca com a mão, tentando esconder o espanto.

- Alex? - ouço o Gabriel perguntar a meu lado.

Olho para o recém-chegado, que continua a olhar para nós, com um sorriso malicioso, onde reluzem uns dentes brancos e uns caninos alongados.

- Quem diria que tu e a Lara se iriam cruzar? - questiona ele, sem nunca perder o sorriso.

Gabriel vira-se para mim, a confusão estampada na sua face perfeita.

- Vocês conhecem-se?!

Olho para ele e depois para o ser que ganhou finalmente um nome.

- Não propriamente. - respondo num tom neutro - O meu criador, de quem te falava há pouco, é ele.


Gabriel procura a minha mão, apertando-a com força quando a encontra e algo me diz, na sua urgência, que o nosso tempo de paz terminou.

(continua) 





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