Pedra Mais Alta

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Antes do sol nascer ele já estava correndo pela orla da praia de São Marcos. Quando o astro rei despontava no céu ele fazia alguns exercícios de yoga, meditava por vinte minutos e caía no mar. Mais tarde, três vezes por semana, chegavam suas crianças. Se a fome batesse antes disso, ele parava em um dos quiosques da beira da praia e comia por ali mesmo, algo que fosse barato e bem leve para aguentar a energia da garotada.

Meninos e meninas com idades entre oito e quatorze anos, vindos das regiões carentes de São Luís, chegavam quase ao mesmo tempo para aprenderem a surfar. Nunca atrasavam, muito menos faltavam. Alguém contou-lhes a historia que ingleses não gostam de atrasos e nenhum deles gostariam de contrariar o tio Liam. Curioso foi quando ele lhes contou que um atraso aqui ou ali não fazia mal, acontece. Por que se ater a hora de inicio se ele que era professor respeitava a hora do fim? Mesmo depois disso não houve atrasos na chegada.

Era uma turma e tanto, pra mais de vinte crianças e adolescentes, todos eufóricos e que não gastavam um centavo pelas lições, tampouco pelas pranchas que traziam consigo. Liam tinha montado um barração ao lado do quiosque de um amigo, onde ensinava as crianças a confeccionarem suas próprias pranchas e consertá-las quando preciso.

Quinze minutos de corrida, mais dez de alongamento, treinos com a prancha na areia para só então entrarem no mar. Os mais velhos ajudavam os mais novos e assim a aula seguia. Liam os adorava. Até quando danavam a rir de seu sotaque e quando ele não entendia uma expressão ou palavra e as crianças primeiro brincavam para depois explicar do que se tratava. Estar com eles era um presente que o rapaz gostava de apreciar cada instante.

Não se limitava a ensiná-los a se equilibrar na prancha, mas queria saber mais sobre eles, sobre suas famílias, amigos, seus sonhos, seus medos. Ouviu histórias tristes, engraçadas, terríveis e inspiradoras. Conhecia cada um pelo nome e se alguém faltasse, era certo que receberia uma visita do tio no dia seguinte, às vezes na mesma tarde. O moço era apegado àquela molecada que de tão numerosa precisou dividir as aulas em turnos para que ninguém ficasse de fora e nem acidentes acontecessem. Quando terminavam as férias e as aulas eram encerradas, era um tremendo chororô da qual nem o adulto estava livre.

Quando chovia as aulas aconteciam no barracão e não eram menos proveitosas. Faziam brincadeiras, exercícios de yoga e alongamento, aprendiam mais sobre fazer pranchas, passavam o tempo conversando, contando as histórias e lendas da região ou até mesmo piadas que ora Liam entendia, ora não.

Num desses dias chuvosos, entre uma conversa e outra, Liam perguntou casualmente como era o tipo físico do boto:

- É moreno com cabelo liso e preto igual índio. - disse um menino.

- É nada, é nada! Ele é branquinho igual leite e o olho todo preto. Até a parte branca é preta.

- Que nada! Ele é pretinho tipo Zé Pilintra. - outro se manifestou.

- Tá doido, é? - disse uma menina - O boto assume a forma que a moça mais deseja. Por isso nenhuma resiste a ele.

- Mas é verdade que aqui não tem boto, certo? - o adulto perguntou.

- Tem nada.

- Mas tem só mãe d'agua, Iara e Iemanjá.

- Isso é tudo demônio!!

- Cale essa boca, Thiago! Só fala merda!

- Calo não! Meu pai disse que essas coisa é tudo demônio e é mesmo.

- Seu pai sabe é de nada, vá...

- Ok, pessoal. - Liam interviu se colocando entre as crianças - Vamos esquecer o assunto. Que tal me ensinarem umas palavras novas daqui, uhn? - o rosto de alguns se iluminou com malícia - Menos palavrão e ofensas. - ressalvou Liam, tirando a felicidade de muitos.

Menino do rio (Niam)Onde histórias criam vida. Descubra agora