Capítulo 1 - ALFREDO

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HENRIQUE HAUSER É MEU IRMÃO MAIS VELHO.
Prepotente como meu falecido pai, ele acredita piamente que é o homem da casa, o cabeça da família, o substituto de papai. Mas não é. Age como se realmente fosse um patriarca, um homem responsável pela sua família. Mas não passa de um mero estudante de Direito. Quem realmente sustenta a casa é mamãe. Se existe um "homem da casa" então esse "homem" é Carmem Hauser, e não ele. Patife.
Era madrugada e eu voltava de um motel, onde estive, devo ressaltar, com uma loira linda. Frágil, delicada, tímida. Um corpo escultural, parecido ter sido esculpido pessoalmente pelo próprio Deus. Era uma mulher e tanto, suas curvas fariam até mesmo o demônio derrapar. No entanto, era filha de pais cristãos tradicionais — e quase radicais, eu diria —, ultraconservadores. Rígidos deveria ser o sobrenome deles.
Mas eu sou Alfredo Hauser, aquele que não desiste dos seus objetivos e luta até o fim. Teatralizei a pose de bom moço, aqueles que seguem preceitos religiosos e temem qualquer coisa libidinosa. Desse modo, eu consegui conquistar não somente a garota, mas os pais dela, que eu tive o atrevimento — e a cara de pau — de ir conhecer. Depois de muito encenar meu papel, jantares românticos, presentes, demonstrações de carinhos e juras eternas, eu a havia convencido a consumarmos nosso "futuro casamento". Eu já não suportava mais me imaginar numa cama com ela e, principalmente, não aguentava mais me passar por um moço cristão ultraconservador.
Porém, cada esforço valeu a pena. Diana era uma loucura, uma perdição de mulher, uma obra divinamente perfeita. Depois do sexo, enquanto ela dormia sobre os lençóis da suíte de motel, eu levantei, juntei minhas coisas e sai de fininho. Eu não quero nem pensar o que irá acontecer à pobre garota quando os pais descobrirem que ela perdeu a virgindade com um cara que a abandonou assim que tiveram a primeira vez. Eu pagaria pra ver essa cena.
Assim que cheguei, percebi a casa toda silenciosa. Estacionei com cuidado e caminhei a passos cautelosos para não acordar a ninguém. No entanto, assim que abri a porta, me sobressaltei com a silhueta sentada no meio da escuridão. Acendi a luz rapidamente e me deparei com Henrique sentado na poltrona, a expressão nada amigável.
Ao ver meu irmão mais velho, revirei os olhos, pensando no discurso chato e tedioso sobre responsabilidade que partiria dele. Era sempre assim. Espelhava em mim as qualidades que ele têm, querendo que eu refletisse isso. Mas eu sou diferente. Não sou Henrique Hauser. Sou Alfredo Hauser. Não sou e nem quero ser igual a ele.
— Você me assustou – disse, finalmente, segurando uma bolsa transversal. Me vestia com uma camisa de colarinho, na cor azul clara de linho puro, um jeans escuro e sapatos pretos.
— Sabe que horas são? – pergunta Henrique, a voz firme e rígida.
Abri um sorrisinho de deboche.
— Por que você não olha no relógio? – devolvi mal-educado, sem me importar muito.
Henrique ignora minha resposta grosseira. Abaixa a cabeça, apertando os olhos com os dedos, como quem busca pela paciência. Ele levanta os olhos para mim, mas eu já estava subindo a elegante escada, em direção à minha suíte. Ele me interrompe, dizendo:
— São quase quatro da madrugada!
Virei-me, pouco me importando com a informação dada pelo meu irmão. Bufei, impaciente, me perguntando por que Henrique age como o patriarca da família. Ele não é nada. Nunca será. Tem que aceitar os fatos de que vive à sombra de mamãe. Às custas dela. Mas não, ele precisa agir como um homem responsável e de família, tentando demonstrar o que não é, ou o que, pelo menos, quer ser um dia. Henrique é uma cópia fajuta de meu pai Klaus.
Eu e ele nos encaramos de longe; Henrique no pé e eu quase no topo da escada. Desci os degraus que já havia subido, ficando frente a frente com ele, o olhando de cima abaixo e rindo cinicamente. Eu sempre achei o jeito de meu irmão meio cafona. Até mesmo na hora de dormir.
— Você não é meu pai – respondi com o rosto colado ao de Henrique, desafiando a autoridade que ele achava que tinha.
— Você diz como se não tivéssemos uma mãe! – protesta e eu sei que ele estava pensando na preocupação e na dor de cabeça que causo em nossa mãe Cármen sempre quando saio sem dar notícias – Era só dar uma maldita de uma ligação, Alfredo! Não te custaria um dedo! – continuou ele com seu sermão.
Eu pouco me importei com aquilo. Já sou adulto, maior de idade e vacinado, sei me cuidar e não preciso que todos fiquem se preocupando comigo, e eu já estava me cansando de dizer isso à mamãe, mas parece que ela não me ouve. Ignorei a réplica de Henrique. Pouco me importa se eles se preocupam comigo ou não. Eu não me preocupo com eles e isso é o suficiente.
Virei as costas para Henrique no intuito de seguir para meu quarto, mas no mesmo instante ele me segura pelo braço, apertando-o fortemente. Irado, tentei me desvencilhar, enquanto ele resmungava algo sobre eu não lhe dar mais as costas.
Nós dois não éramos o melhor exemplo de união entre irmãos. Sei que minhas atitudes envergonham e incomodam Henrique. Sempre fomos um extremamente diferente do outro. Henrique, tenho que admitir, é dedicado e amoroso; eu desleixado e rebelde, mas gosto de ser assim, de ter esse meu jeito; porém me incomoda muito quando todos a minha volta tentam explicar por que tenho essa personalidade. Minha mãe, por exemplo, acredita que isso se deve pela falta do reflexo de meu pai, que morreu quando eu ainda era criança.
Eu discordo e Henrique também. Temos, pelo menos, um ponto em comum. Ele sempre diz que é prova viva de que a morte de nosso pai não justifica minhas rebeldias, já que ele é um "homem exemplar", nas palavras dele.
— Pode me soltar, por favor – pedi, vendo que não me desvencilharia de suas mãos fortes e para não arrumar uma confusão ali, àquelas horas da manhã, e acordar mamãe, Karlita e todos os empregados da casa, resolvi pedir com educação.
Henrique enfiou aqueles olhos castanhos escuros nos azuis dos meus, fuzilando-me com o olhar. Ele sempre me dizia que eu sou um caso sem solução, e aquele seu olhar simplesmente deixava claro sua opinião, mesmo me considerando jovem demais, acreditava que eu jamais mudaria.
Depois de alguns segundos me encarando, me soltou, pois sabia que era inútil discutir comigo.
Esfreguei o lugar onde ele apertara com tanta força, sentindo a dor da pressão.
— Obrigado – agradeci cinicamente e pude ver um semblante de inconformismo em Henrique. Ele odiava o meu cinismo. — Não vai me mandar subir para meu quarto, papai? – debochei, provocando-o, enquanto subia os degraus, desaparecendo logo em seguida.
Entro no meu quarto e me jogo na cama, entediado em saber como esse patife tenta agir como se fosse meu pai, tentando me impor seus corretivos. Olhando para o teto, rebobino na minha mente o exato instante em que eu e ele começamos a nos odiarmos. Não me lembro com exatidão, mas acredito que tenha sido no colegial, por causa de uma garota. Eu apenas sei que nossa relação corrompida e delicada já perdura há anos; há tanto tempo, que eu mal consigo me lembrar de quando e por quê começamos a nos odiar.
Mas isso não importa mais. Henrique é um idiota, que não deixa de me atormentar com seus discursos sobre responsabilidade. Se ele quer responsabilidade, então que fique com ela toda pra ele. Eu quero minha vida boêmia, que é bem mais divertida e excitante que seu mundinho de livros, estudo, terno e gravata.
Meu irmão é o filho exemplar que se esforça para estudar e trabalhar na empresa da família. Não que eu não estivesse destinado a isso, minha mãe quer porque quer que eu curse uma faculdade para administrar a Hauser Alimentícia, já que, como sócio majoritário, meu pai Klaus deixou designado que um de seus filhos deveria assumir a presidência da empresa. Devo confessar que fiquei realmente surpreso quando Henrique decidiu cursar Direito para representar a Hauser Alimentícia juridicamente. Sempre acreditei que ele é quem teria a ganância de presidir a companhia. Mas eu estava enganado. Com essa sua (infeliz) escolha, a responsabilidade de ser o Presidente caiu sobre as minhas costas. No entanto, eu vinha contornando a situação e enrolando minha mãe para que pudesse adiar esse dia tedioso. Eu parara de cursar Administração e tudo que vinha fazendo era aproveitando a vida. Nada mais.
E acho que é por isso que Henrique me detesta tanto. Enquanto ele se esforça para estudar, trabalhar e dar continuidade ao império alimentício que, com muito custo e suor, nossos pais conseguiram erguer, eu nada mais faço do que curtir minha vida, gastar com mulheres, festas e bebidas. Eu sempre escuto a mesma ladainha de sempre. A história de que meu pai e meu tio — o velho e ranzinza Fritz Hauser — vieram da Alemanha tentar a sorte. Meu pai conheceu minha mãe, Cármen. Ela era a Contadora que eles queriam para abrirem a filial, eles se envolveram quando os negócios não estavam dando certo. Meu tio pulou fora no primeiro prejuízo exorbitante, meu pai parece que quase teve uma depressão, mas minha mãe, mesmo não recebendo um salário digno, ficou ao lado dele e o ajudou a reerguer a empresa. Acho que em algum momento desse episódio eles se apaixonaram.
Enfim, a questão é que minha mãe e meu irmão vivem querendo me dar lição de moral e de vida com essa história, com o intuito de que isso me comova e eu decida pôr meu juízo no lugar e assumir os negócios da pequena família Hauser.
Devo dizer que Henrique e minha mãe estão ingenuadamente enganados.
Dominado pelo cansaço, afasto meus pensamentos e fecho os olhos sem me importar em tirar a roupa do corpo e acabo cedendo ao sono.
Estava dormindo, estirado na cama, debruço, pés e mãos em partes para fora. Um lençol branco de algodão egípcio cobria meu dorso da cintura para baixo. O quarto era extramente espaçoso. A cama Box se misturava aos demais móveis do cômodo: uma poltrona luxuosa, sobre o raque na cor mogno um televisor de LED, uma estante com livros, um guarda-roupa embutido, e um tapete de couro bem centralizado.
Ouvi o celular tocar em cima do criado-mudo e ao tentar pegá-lo, ainda meio sonolento e de olhos fechados, quase derrubei o abajur. Ao atender, disse um alô em meio a bocejos.
— Alfredinho? – disse uma voz feminina e angelical. E eu conhecia bem aquela voz. Era Wanessa. Uma das poucas garotas com quem eu mantinha encontros casuais constantes.
Senti a irritação percorrer meu corpo. Eu odeio esse apelido que me segue desde que me conheço por gente. Até os meus dez anos era aceitável me chamarem assim. Já estou prestes a completar 22. Porém, continuo sendo o "Alfredinho" e isso me deixa demasiadamente irritado. A começar que meu nome já não me agrada. Al.fre.do. Com tantos nomes bonitos por aí, meus pais tiveram de escolher justo esse? Eu não o odeio cem por cento, é um nome forte, originado do inglês arcaico e significa "aquele que sabe", ou algo do gênero. No entanto, é um nome que me faz sentir como sua origem: arcaico. Eu não consigo pensar em outro Alfredo qualquer sem imaginá-lo de cabelos e cavanhaque grisalhos.
— Pode parar de me chamar dessa maneira? – pedi, deixando bem claro no timbre da minha voz a irritação que sentia por conta desse apelido. Cocei os olhos e me sentei na cama — O que você quer a essas horas da manhã?
— São quase duas da tarde, querido!
Revirei os olhos, impaciente. Para mim ainda era cedo.
— Diga o que quer! – exigi irritado por terem interrompido meu sono. Eu ainda estava sonolento, queria dormir mais, e se existia algo que me tirava a paciência era não poder dormir.
— Tem um filme novo em cartaz no cinema, queria convidá-lo para irmos juntos. E quem sabe depois damos um pulinho naquele motel que você tanto gosta, hein?! – disse, maliciosamente.
Praticamente eu dormia sentado. Mal ouvira o que Wanessa tinha dito. Exausto, não quis enumerar os vários motivos que tinha para não ir com ela ao cinema, mas preferi apenas concordar e logo depois que ela combinou o horário, tombei na cama, voltando a dormir profundamente.
Acordei no final da tarde. Caminhei até o banheiro e tomei um banho para despertar, e me enrolei em um roupão branco e felpudo. Desci as escadas e atravessei a sala. Precisava pôr algo no estômago. Cheguei à cozinha. Um lugar espaçoso e aconchegante. Era toda azulejada em cerâmica branca com pequenos detalhes que davam um toque de charme; uma geladeira enorme de inox, uma mesa redonda com três cadeiras delicadas, uma pia extensa, um fogão magnífico.
Peguei uma taça em um dos armários presos à parede e a apoiei sobre um balcão que dividia o cômodo. Caminhando até a geladeira, tirei uma jarra de suco de maracujá, e dispus um pouco na taça. Estava prestes a sorver o líquido quando uma mulher de cabelos longos e grisalhos entrou no recinto. Carregava consigo um cesto com roupas limpas e secas. Ao me ver, ela apoiou o cesto no chão, levando a mão à cintura.
Beberiquei o suco, indiferente a presença e a postura dela, apenas esperando pelo sermão. Eu a conhecia bem, e não sairia dali sem ouvir poucas e boas.
— Isso são horas, Alfredinho? – perguntou ela, um tom rígido e austero. Acho que papai quando morreu reencarnou na figura ali em minha frente. Ela era versão feminina de Klaus Hauser. Ah, era sim!
Por que diabos todos têm que me chamar assim? pensei, virando os olhos, incomodando com aquela alcunha que me perseguia desde o dia em que nasci. Quis protestar, mas decidi que não. Karlita era uma mulher dura. Trabalhava para minha família há vinte quatro anos, quando Henrique nasceu. Trocou as fraldas dele e dois anos depois trocava as minhas também. Ela não era apenas uma governanta, nem uma funcionária qualquer, mas era como uma segunda mãe para mim, e eu como um filho para ela. Se eu tivesse a audácia de respondê-la ou questionar de como deveria falar comigo, eu não me surpreenderia se ela abaixasse minhas calças e me estapeasse na bunda. Por isso, resolvi ficar calado.
— Não seja mal-educado e me responda! – ela exigiu, se aproximando a passos firmes.
— Estava dormindo – respondi jogando o braço pelo pescoço de Karlita, beijando-a no rosto logo em seguida.
— Eu sei disso – ela retirou o braço pesado – Mas isso não são horas, rapaz! Queria arrumar aquele muquifo e não pude durante todo o dia porque o doutorzinho estava dormindo!
Eu ri. As vezes achava graça no modo como Karlita falava, ela usava cada expressão! Mas mesmo assim tinha certa admiração por ela, por simplesmente não ter papas na língua. Ela falava tudo o que vinha em sua cabeça, e que doa a quem doer. E eu gosto de gente assim, gente de atitude e de opinião própria.
— Pode arrumar agora, se quiser. — provoquei.
A mulher soltou uma gargalhada irônica e, inevitavelmente, eu não me contive, rindo juntamente com ela. Mas parei subitamente quando ela me fuzilou com o olhar.
— Não vou arrumar porcaria nenhuma – ela respondeu com a voz exaltada e firme – Meu expediente já está acabando. Só vou levar essas roupas para a lavanderia e irei para os meus aposentos.
— Logo agora que eu ia te pedir que me preparasse um lanchinho? – outra provocação.
— Se vira – respondeu voltando e agarrando o cesto de roupas – Você não é aleijado – e sumiu pelos corredores.
Abri um pequeno sorriso para mim mesmo. Figura!
Terminei de beber o suco e levei a taça até a pia. Estava saindo da cozinha quando trombei com Henrique, que segurava algumas peças de roupa nas mãos. Respirei fundo, me lembrando da quase confusão que tivemos ainda naquela madrugada. Eu não queria dar continuidade àquilo, então, desvie-me para sair, mas Henrique me chamou.
— Onde está Karlita?
— Por que você não procura? – respondi.
— Por que sempre tem que ser mal educado? – rebateu Henrique, inconformado. O fato era que eu não o suportava por ser como ele era, por agir como meu pai, por querer me dar lição de moral e ética. E ele não me suportava porque eu vivia o provocando, saindo da linha, "desobedecendo" a ele.
Bufei. Eu não queria começar uma briga com meu irmão. Por mais que eu gostasse de vê-lo irritado e de ser mal educado com ele, naquele exato momento não estava afim de discutir.
Sem pedir desculpas pela minha má educação (porque não sou de engolir meu orgulho e me desculpar) informei que Karlita estava encerrando seu horário. Henrique soltou um "droga", me deixando curioso.
— Não é nada, só ia pedir que ela passasse essa roupa pra mim. – respondeu ele, que mesmo tendo a chance de me tratar como eu o trato, foi educado. E esse era o defeito de Henrique.
Olhei para as peças. Eram novas e elegantes. Ele ia se encontrar com alguém.
— Vai sair com quem? – quis saber. A pergunta saiu mais mecanicamente do que por interesse.
Henrique arqueou a sobrancelha.
— Com minha namorada.
— Você tem uma namorada? – perguntei, cético.
— Qual o problema? – indagou Henrique, curioso com minha interrogação
Dei de ombros, pois, bem, eu não queria dizer "não acredito que você, careta como é, tem uma namorada"
— Bom encontro – desejei, ignorando a pergunta de Henrique. Foi então que eu me lembrei que havia concordado em sair com Wanessa. Olhei no relógio. Seis da tarde. Corri para minha suíte e me troquei rapidamente. Vesti um jeans tingido preto, uma camiseta branca, jogando uma camisa xadrez de manga curta por cima. Amarrei o tênis, peguei as chaves do carro, a carteira e sai.
Eu e Wanessa já havíamos comprado os ingressos na bilheteria e agora nos preparávamos para entrar na sessão. Não que eu realmente estivesse interessado em assistir um romance melodramático, cheio de baboseiras. Eram sempre a mesma coisa: duas pessoas que se apaixonam, eles têm de enfrentar algum obstáculo para ficarem juntos, sofrem por amor, mas no final acabam juntos com uma grande família. Eu sabia que aquele tipo de filme quase me faria babar de tanto tédio e sono, contudo, ia ganhar uma boa transa depois. Então, era meio que compensador.
O que eu não esperava era pelos acontecimentos que viriam a seguir.
De repente senti alguém esbarrando nos meus ombros. Com a colisão, meu corpo foi arremessado para frente e no mesmo instante senti um líquido gelado e meloso molhar-me, escorrendo por minha pele. Olhei para baixo, o líquido atravessando ambas as peças que eu vestia. Resmunguei uma injúria quase inaudível quando ouvi Wanessa proferir:
— Sua estúpida! Não olha por onde anda? Olha o que você fez a ele!
— Ah, meu Deus, me desculpe – pedia a moça, sem jeito e envergonhada.
Levantei os olhos, meio irritado, provavelmente aquele incidente me faria virar nos calcanhares e voltar pra casa . Nunca que eu continuaria no cinema com a camisa — e parte das calças — empapadas de melado de cola. Não era de todo mal, visto que eu não estava mesmo com a mínima vontade de assistir aquela idiotice de filme romântico; porém, meus planos de ter uma transa boa no final da noite seriam atrapalhados, principalmente por conta do desânimo, e irritação, que me abateria em ter que voltar e trocar de roupa.
Mesmo que eu estivesse irritado, não seria hostil com a garota. Tudo bem, talvez eu fosse um pouco. Talvez eu resmungasse um "garota idiota" e a deixasse para trás procurado algo para me limpar.
Porém, no instante em que meus olhos toparam com os castanhos dela, no momento em que vi os lábios finos e vermelhos pelo batom, os cabelos louros caindo em ondas até seus ombros, o corpo todo perfeito e delineado dentro de uma calça jeans tingida e justa, os seios médios e perfeitos fazendo relevo sob a camisa amarela, eu contive qualquer hostilidade que pudesse me dominar e forcei um sorriso.
Wanessa continuava a injuriar e a garota insistia em me pedir desculpas.
— Está tudo bem, não se preocupe. — afirmei segurando uma ponta da camisa, evitando que o melado entrasse em contato com meu peito.
— Preste mais atenção da próxima vez — cuspiu Wanessa.
— Foi um acidente, eu juro. — murmurou.
— Se não fosse tão desligada...
— Já chega, Wanessa! — a interrompi antes que ela despejasse mais grosserias. Não que eu realmente me importasse, mas eu precisava me passar por bom moço se quisesse uma aproximação mais profunda até conhecê-la bem e conseguir o que desejei no momento que pus meus olhos nela.
Alfredo Hauser estava prestes a entrar em ação.
— Entre e me espere. Vou me limpar e já te encontro. — proferi com a voz firme a olhando por cima dos ombros e em seguida mirei a garota, dando-lhe um sorriso curto.
Wanessa bufou na minha nuca e saiu deixando-me a sós com ela.
— Sinto muito outra vez — tornou a pedir e começou a revirar uma bolsa que trazia consigo — Eu tenho um lenço aqui, se você quiser...
— Não há necessidade — aleguei e ofereci outro sorriso. — Com licença, irei tentar limpar isso aqui. — pedi e adentrei o corredor dos sanitários.
Primeiro de tudo eu precisava pôr minha cabeça no lugar, por isso resolvi ir até o banheiro. Uma água fria e uns segundos sozinhos me fariam pensar em uma estratégia de aproximação para conquistar a lindamente desastrada garota. Devo ressaltar que a belezura parece uma deusa grega de tão formosa.
Eu não tinha ideia de como ela se chamava ou em que sessão estava, mas eu daria o meu jeito. Sempre dava.
Abri a torneira e o barulho de água escorrendo foi abafado pela movimentação lá fora. Não havia ninguém além de mim nos sanitários e eu deduzi que as sessões já tinham se iniciado. Molhei um pouco a mão e a deixei em forma de concha.
Quando pretendia molhar o rosto, deu-se uma batida de leve na porta e eu me virei para encarar os olhos castanhos femininos e aturdidos. O lenço de pano que sacara da bolsa jazia em suas mãos, o trançando, nervosamente, entre os dedos finos e alongados, mas perfeitamente delicados.
Verdadeiramente fiquei atônito com sua presença e o sorriso que se curvou em meus lábios, forçadamente, expressou minha real surpresa por vê-la parada na entrada do banheiro masculino.
Pestanejei e tentei assimilar sua presença súbita.
— A sua camisa parece ser cara... Dessas de grife — se pronunciou de repente e eu olhei para o meu próprio dorso, encarando a mancha redondamente irregular e amarelada que se formou no tecido xadrez e, consequentemente, no branco.
— É só uma camisa. Não tem que se preocupar — tentei acalentar a situação.
Ela comprimiu os lábios em um sorriso tímido e esticou o lenço outra vez em minha direção.
— Eu insisto — disse — É o mínimo que devo fazer depois do meu desastre. — com um aceno nas mãos ela insistiu para que eu pegasse o pequeno tecido. Cedi, aproveitando a oportunidade que ela mesma estava me dando, me aproximei e segurei o lenço, meus dedos tocaram os dela rapidamente, e eu pude sentir, brevemente, a maciez de sua pele.
Voltei mais para dentro do banheiro, umedeci o lenço e comecei a esfregar na mancha, mas não estava surtindo muito efeito. Ergui os olhos para a porta e ela continuava parada no mesmo lugar me olhando. Esbocei outro riso e voltei a minha — quase árdua — tarefa de tentar tirar aquela mancha e de secar um pouco o molhado causado pelo refrigerante.
— Não está dando muito certo. — comentei com certo humor. Ela abriu um sorriso pequeno, mas encantador.
— Posso tentar te ajudar. — se prontificou e antes que eu negasse, ela estava entrando, encostando a porta e girando a chave.
Pisquei repetidas vezes. Ficar trancado com essa obra da natureza dentro de um banheiro não era o melhor a se fazer. Mas se os ventos sopravam a meu favor, eu aproveitaria o momento para conseguir a aproximação que eu estava, maquiavelicamente, tramando.
Próximo o bastante de mim, ela tirou o lenço das minhas mãos, segurou no tecido e começou a friccionar com delicadeza. Baixei meus olhos para ela, mirando-a diretamente nos lábios perfeitos. O perfume adocicado espalhou-se pelo local fechado e me atingiu como um soco, entrando pelas minhas narinas. Somente essa imagem dela estava começando a me deixar excitado.
— Conhece marcas de grife? — sussurrei ainda mirando para baixo, direto para sua boca avermelhada de forma sensual e tentadora. Apesar de ser alta, ela ainda é mais baixa que eu. Sua estatura deve estar perto de 1,70, comparando-se aos meus 1,88 metros de altura.
A garota levanta seus olhos pra mim, me olhando de baixo para cima, seus habilidosos dedos não parando um instante.
—Trabalho em uma loja de grife — respondeu e emendou antes que eu pudesse retorquir — E meu namorado também gosta dessa marca que está usando.
Separei os lábios, sem dizer palavra alguma. Com um namorado no meu caminho, minha conquista seria dificultada. Mas eu não pensava em desistir. Pra mim, quanto mais difícil de se conquistar uma mulher melhor, mais compensador é no final das contas.
E fitando estes lábios finos e delicados, já imaginando mil e umas maravilhas que eles poderiam fazer entre quatro paredes, eu sei, de alguma maneira, que cada esforço para levá-la para minha cama valerá a pena.
— Namorado? — inquiri realmente surpreso — O que ele vai pensar se souber que esteve em um banheiro masculino, sozinha com outro homem e com a porta trancada?
Graciosamente ela corou. Baixou os olhos e continuou a esfregar minha camisa.
— Ele não é ciumento, não é do tipo possessivo. E eu tranquei a porta para que outros homens não entrassem e vissem uma garota no banheiro masculino. — justificou — Tenho certeza que ela não se importaria. Só estou tentando te ajudar.
Acenei com a cabeça. Por mais que eu quase não tenha tido relacionamentos sérios, mesmo que eu não amasse nenhuma das garotas com quem já tentei namorar, eu não ia gostar de saber que ela esteve presa num banheiro com outro macho. Não mesmo.
Esse namorado dela, penso eu, deve ser do tipo certinho, que confia cegamente. Já até o imagino: óculos fundos de garrafa, cabelos pretos escovados de lado no melhor estilo "vaca lambeu", calças sociais na altura das canelas, camisa de flanela e gravata borboleta.
Senti vontade de rir somente em imaginar a cena. Ela é muito areia pra um cara como esse.
— E como ele se chama? — perguntei, apenas querendo manter a conversa.
— Henrique. Henrique Hauser. — respondeu e parou de esfregar a camisa, colocando a mão na cintura e suspirando. No mesmo momento eu arregalei os olhos, engolindo em seco.
Por um segundo imaginei ter ouvido errado. Simplesmente era inacreditável pra mim que meu irmão estivesse pegando um mulherão daqueles. Minha surpresa se tornou maior ainda ao saber que seria mais fácil uma aproximação com ela. Tirá-la dos braços de Henrique ia ser como arrancar doce de criança.
Forcei outro sorriso, intentando não demonstrar que fiquei momentaneamente aturdido com a notícia.
— Saiu um pouco — ela disse avaliando a mancha —, dá pra você voltar para a sua sessão. Depois é só lavar com um tira manchas, deve sair.
Assenti um pouco e, sem avisar, tirei camiseta e camisa, deixando o peito desnudo.
A garota pestanejou, corando exageradamente e eu não deixei de sorrir interiormente. Não que eu me gabasse do meu corpo. Meu físico era normal, sem exageros, eu não tinha nada daqueles caras capas de revistas com uma barriga super definida, mas também não era uma tábua. Eu tinha um corpo legal; bonito, há alguns anos eu frequentava a academia e consegui um músculo aqui ou ali. A linha das minhas virilhas eram bem marcantes e era nessa parte que ela olhou fixamente antes de virar-se de costas, envergonhada.
— Me desculpe, que desligado eu sou. Mas é que preciso tirar esse melado da minha pele — expliquei numa falsa vergonha, já pegando um pouco de sabonete líquido e passando pelo peito.
—Tudo bem, não se preocupe. Tecnicamente a invasora sou eu. — enunciou e eu ri baixinho. Terminei minha rápida limpeza e vesti a camisa de volta, mesmo que eu não estivesse cem por cento satisfeito.
— Já pode se virar. — disse e lentamente ela se voltou a mim, um sorriso meio desconsertante.
Entreguei o lencinho dela e agradeci pela gentileza.
— Imagina, não foi nada. Ah, antes que eu me esqueça — objetivou e revirou a bolsa outra vez. Dali a um segundo retirou um pequeno cartão de visitas e me entregou.
Avaliei-o enquanto a ouvia dizer:
— Se por acaso a mancha não sair, me procura nessa loja. Acho que posso te compensar com uma nova.
— Não há necessidade, por favor — neguei e direcionei o cartão para ela de volta — É só uma camisa.
— Então guarde pra você. Quando precisar de alguma coisa, pode ir lá.
— Você é uma vendedora muito empenhada — comentei rindo e ela riu também. — Acho que você tramou tudo isso só pra uma jogada de marketing.
— Oh, sim — concordou balançando a cabeça freneticamente e rindo —, eu bolei isso tudo só pra fazer uma propaganda. — rimos um pouco antes de ela continuar dizendo: — Bom, eu tenho que ir agora. Antes que comecem a esmurrar a porta e me vejo em uma saia justa.
Sorri largamente e concordei acenando. Andei até a porta e a destranquei. Antes de ela sair, dei uma espiada pelo corredor. Por sorte estava vazio. Dei passagem a ela e, juntos, saímos do banheiro, caminhando de volta para as sessões. Fizemos o rápido percurso em silêncio, mas minha mente trabalhava a todo vapor, recordando-me de cada momento nos últimos cinco minutos dentro daquele banheiro. Além de, claro, imaginar cenas extremamente eróticas e das coisas que eu poderia ter feito com ela sobre a bancada da pia.
— Então, até mais... — ela me tirou dos meus devaneios libidinosos e eu me voltei a ela, que me encarava com um singelo sorriso curvado.
Percebi que ainda não havíamos trocado nomes.
— Enzo Bitencourt. — falei o primeiro nome e sobrenome que me veio à mente e estiquei a mão para um cumprimento.
Sua palma branda tocou a minha, sua pele sedosa me deixando em um êxtase quase enlouquecedor.
— Lívia Diniz. Foi um prazer, Enzo. — disse já despedindo-se. Cessou seu toque em mim e sumiu sem demora, adentrando em uma das salas.
Mordi o lábio inferior e olhei de volta para o cartão de visitas.
Tudo estava sendo mais fácil do que eu imaginava.


Amor à Segunda Vista - LIVRO 1 (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora