O ruído estridente de uma sirene tresloucada reverbera pelas paredes e muros de cada edifício e casa por todos os quarteirões pelos quais a ambulância branca trêmula passa. Nós aqui dessa vizinhança estamos acostumados com seu som, deveras familiar. Há dias em que senhoras infartadas são levadas, idosos com a bacia quebrada, acidente vascular cerebral, derrame, parada cardíaca, ataque epiléptico, eis um bairro adoentado. Mas há dias que os paramédicos apanham jovens baleados caídos de qualquer jeito no meio-fio, há noites em que crianças esqueléticas são reanimadas na traseira da ambulância e por pouco não morrem de overdose. Algumas até morrem. Por sorte, não é você quem estão levando agora. Você continua aqui comigo.
Aqui, comigo.
Lá vem você com uma pizza na mão direita e um baseado entre os dedos da mão esquerda. Você acabou de cheirar não sei quantas carreiras de coca, mas eu seria muito tolo se achasse que você ia parar por aí. Um evento desastroso e caótico de proporções fenomenais que, por mais terrível e trágico que seja, se grava permanentemente na memória da gente; tem ares de sonho, não de trauma. Aí está, Louis. Eu acabei de dar a sua definição. Vamos colocar seu nome no dicionário agora, e ao lado, a título de referência: ver hecatombe, ver milagre. Isso é para todo mundo que diz não compreender você. Eu compreendo, inteiramente, mas não vou dividir meu conhecimento na íntegra com o resto do mundo, não. Sou egoísta demais para isso. Daí o porquê de eu tentar te conter numa única frase, num conceito meio vago. Estou só suspirando verdades superficiais.
Agora mesmo eu devia tentar te colocar para dormir, por que essa é uma das coisas que eu posso fazer por você, mas eu te quero acordado, eu quero olhar nos seus olhos, e continuar olhando até que veja faíscas saltando deles. Você sabe, como quando a gente junta dois gravetos e os fricciona até que, do atrito, surja o fogo? Se eu te olhar fixamente e por tempo o suficiente, é isso o que acontece. Você já percebeu? Eu sim. Eu me sinto um dobrador de fogo nessas horas. São tesouros, Louis, pequenas riquezas que só eu e você compartilhamos. Enfio uma fatia de pizza inteira na boca antes que eu termine falando o que não devo. Penso em seringas e em desfibriladores e em máscaras cirúrgicas. Em belas efêmeras de asas coloridas, néon e tecnicolor, que a despeito de toda a beleza e poesia, só duram vinte e quatro horas. Mordo os lábios e me recuso a sair daqui, de perto de você. Porque eu realmente poderia estar tão, mas tão longe.
Aurora dos dias, mapa do apocalipse nos hematomas que você exibe na pele coberta por um moletom, uma samba-canção, um par de meias descasadas e nada mais. Eu poderia vasculhar seu corpo e calcular quantos dias ainda temos pela frente, no entanto, prefiro a surpresa. Você estoca entorpecentes no próprio organismo, e eu gostaria de acompanhar seu ritmo tanto quanto gostaria de cessá-lo de vez. Afinal, de que lado eu estou? Você passa o beck pra mim. Não devia. Assim o verde das minhas íris se derrama e eu tenho que me controlar para não me enrolar aos seus pés e ronronar. Ou então eu fico sério e circunspecto, o teto me segredas tantas epifanias que eu não consigo prestar atenção a mais nada. Eu sei que eu te vi tingido de azul. Como Vênus que emerge de águas profundas, rodeada por ninfas e com cheiro de maresia, pura magnificência, mas ninguém imagina que sua cabeça está embotada com as coisas que você viu no oceano abissal. Tão belo, tão cheio de segredos e visões, meu jovem Adônis. Te trazer pra superfície é uma maldade necessária. Me conta das maravilhas que você viu, eu peço. Meus olhos elétricos imploram.
Você me olha, a cabeça apoiada no ombro, e eu me pergunto o que você vê. Tatuagens demais num garoto que se faz homem pela força das circunstâncias, esse junkie malsucedido no próprio estilo de vida, que de café da manhã cheira cocaína e bate suco detox no liquidificador, esse cara confuso pra caralho, pensamentos espalhados pelo chão da cozinha, você reclama que alguém vai acabar tropeçando neles, um menino, somente, que você abrigou porque é tão bom, lá no fundo você é a melhor pessoa que já pisou nesta terra, e será isso o que você vê em mim? Alguém que você ajudou a moldar? Talvez de tudo um pouco do que eu acabei de citar? Me enxergue como seu igual.
Fecho os olhos como se entoasse uma prece silenciosa. Nos transporto a um lugar distante, que não pode existir na realidade em que vivemos. Você se aproxima, lentamente, pouco a pouco, contando os centímetros até nós estarmos lado a lado. Uma sutileza que me enerva ao mesmo tempo em que me causa arrepios. Você enfim me abraça. Há tantas coisas que eu queria dizer, mas eu permaneço quieto. Você sabe o que eu estou pensando. Não sabe? Todos os segredos que fingimos esconder um do outro não são de fato segredos porque eu te sondo e você faz o mesmo comigo. Mas vamos fingir que meu punho cerrado contem algo que você jamais vai descobrir o que é.
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Everything is Blue
Fanficlouis: um evento desastroso e caótico de proporções fenomenais que, por mais terrível e trágico que seja, se grava permanentemente na memória da gente. tem ares de sonho, não de trauma. ver hecatombe, ver milagre. larry stylinson a fanfic também fo...