Carta 27. Último capítulo. Fim.

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            Os anos passaram e eu nunca escrevi a carta a Freya. Sessenta e sete anos passaram e eu ainda sinto a ausência de Freya. As rugas começaram a habitar na minha pele à medida que os anos passaram e eu posso ter perdido a força, mas não perdi a memória e ainda recordo-me da rapariga que sempre amei.

Nunca casei, mas uso um anel no dedo anelar esquerdo e eu mesmo pedi para colocarem o nome da rapariga amada. Não engravidei alguém, mas adotei um rapaz e, ironicamente, ele tem o pensamento parecido com o de Freya e talvez seja essa a razão de o ter escolhido logo depois da primeira conversa com ele, aos vinte e seis anos.

Sempre lhe falei de Freya e mostrei-lhe fotos e contei-lhe a história inúmeras vezes e como fui idiota por tê-la deixado ir. Falava das suas manias e como ela me chamava nomes. Falava como nos dias de chuva ela esticava a mão como se chegasse ao céu e deixava a água bater na mão e no seu corpo e não se importava se ficasse doente. Ela esticava como se chegasse ao céu e apertasse as nuvens para que elas conseguissem chorar tudo o que quisessem.

Depois de tanto tempo, ainda me lembro das manias dela e das coisas que ela repetia, mas que eu não me importava e ficava a ouvi-la durante horas.

Os meus olhos ficaram cansados, mas eu nunca deixei de ver o Mundo da maneira que Freya via. Nunca deixei que isso alterasse tudo o que era. Alterou muito, alterou o espaço no meu coração que se tornou num vazio e num buraco negro tão grande que nem eu próprio sei como foi possível criar.

Agora, à luz do candeeiro com a caneta que não para de tremer –ou talvez seja eu – não sei por onde começar e voltar a falar com a rapariga que tanto amei. Ela esperou sessenta e sete anos por isso. Eu também esperei e quantas vezes tive vontade de lhe escrever. Cumpri a minha promessa. Estar com ela até ao fim. Apenas contaria todas as coisas que passei no fim, tudo o que senti e tudo o que pensei.

Tudo o que vivi com Freya no meu coração.

"Querida Freya,

Talvez já tivesses desistido da ideia de eu te escrever. Imagino-te surpreendida.

Peço desculpa pela demora. Talvez esteja a pedir desculpa a nada, mas isso assusta-me. Pensar que nunca mais te verei, pensar que nunca mais te encontrarei e abraçar. Não quero aceitar isso e eu continuo a pensar que o melhor acontecerá.

Irei começar desde há sessenta e sete anos atrás. Como o tempo passou? Posso dizer que o meu cabelo já não está colorido e que eu estou velho e feio.

Lidar com a tua morte, minha pequena, foi das coisas mais destrutivas. Saber que a pessoa que mais amo ter parado de respirar é tão doloroso... É quase homicida. A morte traz a morte a outras pessoas. A tua melhor amiga – a prazenteira e sarcástica morte – quase que me deu o mesmo destino. Não sei se ela te contou. Eu não falei durante dez dias depois do dia do teu funeral. Deixa-me dizer-te que esse dia foi terrível para mim e imagino também para a tua família.

Eu sonhei contigo na noite anterior ao dia do funeral. Eu estava num lugar aleatório que eu não recordo, mas eu recordo-me de me apareceres à frente, de me sorrires, pegares na minha mão e depois o teu sorriso desapareceu. A tua expressão ficou neutra, a tua face ficou sem cor, quase como se tivesses sido apunhalada por alguém. Eu vi uma sombra. É tarde demais, disseste tu. Consegui ver a cara da sombra e eu vi-me a matar-te. Eu gritei e a minha mãe entrou no quarto e ela juntou-se a mim e eu chorei alto como uma criança perdida numa floresta ou abandonada pelos seus pais.

Podes imaginar como foi macabro e como partiu tudo à minha volta...

Quando te vi no caixão talvez tenha sido quando realmente percebi que tu tinhas ido e que era realmente tarde demais. Não me lembro da última vez que beijei os teus lábios com cor, peço desculpa. Tenho a certeza que tu te lembras disso, porque tu lembraste sempre das coisas mais simples, mas que são importantes. Todos os nossos momentos foram importantes, mas a velhice não me deixa guardá-los. 

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