Enquanto lasso e grave Ulisses dorme, Corre Minerva ao povo dos Feaces, Que antes moravam na espaçosa Hipéria. De arrogantes Ciclopes infestada.
À Esquéria os trouxe o divo Nausítoo, De homens cultos remota; ali fez muros, Casas e templos, dividiu seus campos. Desce a Dite, e por numes instruído O substitui Alcino: aos paços deste Palas de Ulisses foi dispor a entrada.
Na câmara dedálea de Nausica, Na beleza e no porte sobre-humana, Régia virgem, como aura introduziu-se, Bem que, êmulas das Graças, duas servas Lá de uma e outra banda repousassem Às reluzentes e cerradas portas. A eqüeva amiga da princesa, filha Do marítimo Dimas afamado, Ela imitando, à cabeceira clama: "Lenta a mãe tua te pariu, Nausica? Descuidas-te da roupa, e as núpcias instam; Para ti mesma e a comitiva toda,
Hás mister os vestidos mais formosos: Ganhas assim renome, dás contento Aos genitores teus. N'alva, a caminho, O mais depressa lavaremos juntas; Pois longo tempo não serás donzela: Pretendem-te os melhores dos Feaces, Da mesma estirpe tua. Ao rei mus pede, Carroça que amanhã transporte os cintos, Peplos e mantos: ir a pé mau fora; Distam muito os lavacros da cidade."
Advertida a princesa, a déia ascende À beata mansão, que deleitosa
Nunca ventos açoutam, regam chuvas, Ou neve asperge; onde ar sereno e limpo, Onde vivo esplendor eterno brilha.
A Aurora apoltronada esperta a jovem,
Que, atravessando as casas, vai comota Ao pai contar o sonho e à mãe augusta: Ela, ao fogão, fiava lã purpúrea Entre as servas; tardio, ele à soleira, Para o grande conselho ia saindo. A filha o atalha: "Genitor amado, Mandas-me aparelhar carroça leve, Onde carregue à fonte as pulcras vestes Que cujas guardo? Em conferências cumpre Estares com asseio ante os senhores; De cinco filhos teus, são dous casados, Mas lépidos os três querem solteiros De lavado ir à dança: eu tudo avio".
Cala as núpcias ao pai, que assaz percebe: "Nada, filha, te nego; ágil carroça
Terás de taipas cinta". Ao mando, os pajens Tiram-na fora e os mus, que ao jugo prendem.
Ela do plaustro ao leito a roupa desce; Vários manjares traz a mãe num cesto, Com sobremessa e um odre bom de vinho; À filha, já montada, uma áurea entrega Redoma de óleo, que as perfume. A jovem Brida flagela os mus, que estrepitosos A carga e o flóreo bando arrebatavam.
Junto ao rio, onde há poças de água pura Que a sordidez expurga, os brutos soltam Nas margens a pascer melosa grama Tiram a roupa, acalcam-na à porfia Dentro das covas, torcem-na, enxaguada A estendem pela praia, onde os seixinhos Tinha alvejado o mar. Enquanto a enxugam Ao Sol fulgente, banham-se elas mesmas, E de óleo ungidas à ribeira jantam. Fartas já de comer, as toucas despem E à pela jogam; doce cantilena Entoa a bracicândida Nausica. Se, no excelso Taígete cu no Erímanto, Javalis a caçar e gamos leves,
Das de Jove escoltada agrestes ninfas, Se diverte a frecheira irmã de Febo; Com prazer de Latona, alta cabeça, Entre as belas belíssima se estrema: Tal as outras supera a intacta virgem.
Mas, jungida a parelha para a volta
A roupa elas dobravam, quando Palas Traça a maneira por que veja Ulisses A que aos Feaces conduzi-lo deve. Eis a princesa a uma atira a pela, Que errada cai no pego; as moças gritam, E Ulisses, despertando, em si discursa: "Ai de mim! que mortais aqui se alvergam? Bárbaros são, injustos e ferozes,
Ou tementes aos deuses e hospedeiros? Senti femínea voz, talvez de ninfas Que habitem nestes coles, nestas fontes, Nestes ervosos lagos. Inquiramos
Se homens são porventura e conversáveis".
Com mãos inchadas quebra um denso ramo Que os genitais encubra, e da espessura Sai qual montês leão, que, em si fiado, Arrosta o vento e a chuva, e de olho em brasa Cães e ovelhas comete e agrestes corças; Mesmo a curral seguro o ventre o impele: Tal, em nudez forçada, à companhia Pulcrícoma o varão se apresentava Horrível da salsugem, dele fogem Por entre as ribas: só de Alcino a jovem, Por Minerva animada, o encara afouta.
Reflete o sábio se lhe abrace as plantas, Ou rogue-lhe de longe que um vestido Preste e a cidade ensine: e, receoso De lhe ofender o pejo, este segundo Meio prefere e brandamente implora: "Deusa ou mulher, suplico-te, ó rainha. Se és íncola do Olimpo, representas Em talhe e porte esbeíto a grã Diana, Prole de Jove sumo; se és terrestre, Oh! três vezes teus pais e irmãos felizes, Que alegras nas coréias graciosas! De todos felicíssimo o que à cheia Casa te guie bem dotada e rica! Nunca de sexo algum meus olhos viram Tão formoso mortal: admiro e pasmo. Nesta rota sinistra, eu fui-me a Delos Com boa gente, e ao pé crescia da ara Apolínea um renovo de plameria, Cujo aspecto assombrou-me; eu não pensava Que maravilha tal brotasse a terra:
Assim, mulher, me espantas, nem me atrevo Nesta grave miséria, os pés tocar-te. Pós dias vinte que da ilha Ogígia Flutuava em borrascas, enfim ontem Um deus cá me aportou, para outros males; Inda os Céus não cansaram de afligir-me. De mim tem dó, rainha, a ti primeira Na desgraça recorro; uma alma viva Eu não conheço: aponta-me a cidade; Se o tens acaso, um roto ou velho pano Dá que me esconda as carnes. Justos numes Te concedam, senhora, o que desejas, Marido e paz doméstica e família: Do acordo conjugal nasce a ventura; Tudo medra, os consortes são ditosos; Causa prazer aos bons e aos maus inveja".
E a cândida Nausica: "Hóspede, ignóbil Nem insano te julgo. A seu falante Aquinhoa os mortais o Olímpio Jove: Se te coube o infortúnio, a fronte acurva. Já que abordaste aqui, terás vestidos
E o que pede um mesquinho suplicante. Vou guiar-te à cidade; habito nela
E em seu distrito o povo dos Feaces. Filha me honro de Alcino generoso, Que tem do império o cetro soberano". Vira-se à comitiva: "Olá! criadas, Fugis deste varão, como inimigo? Ninguém nos hostiliza; aqui num cabo Do undoso campo, sem comércio externo, São dos deuses validos os Feaces. Um triste peregrino, o envia o Padre, Aos pobres compassivo; a contentá-lo Tênue dom basta. Ao nosso, ó companheiras, Dai bebida e comer; do rio em parte Ide-o banhar dos ventos abrigada."
Param; mútuo exortando-se, o conduzem Ao prescrito lugar, e apõem-lhe e entregam Manto, as mais vestes, a redoma de ouro, E a meter-se o convidam na corrente. Mas o divino Ulisses: "Apartai-vos, Quero mesmo limpar-me da salsugem, E o que há muito não faço, ungir-me de óleo: Temo lavar-me todo nu, de moças
Ofendendo o pudor." - Elas se afastam
E o contam à contam à senhora. Imundas costas, Cabeça e largos ombros, ele esfrega;
Veste o que a virgem dera, enxuto e ungido. Maior o torna e mais robusto Palas, Solta-lhe a coma ondada e semelhante À jacintina flor; qual fabro exímio, Que ela mesma adestrara e o coxo mestre, Graça lhe imprime na pessoa a déia.
Marcha, e à praia sentado, em gentileza Resplandecia; às aneladas servas Diz absorta a senhora: "Albinitentes Companheiras, ouvi-me: sem mistério Não veio o herói; vulgar primeiro o cria; E aos numes o comparo. Oh! se eu tivesse Tal marido, e na Esquéria nos ficasse! Vós do que houver servi-o." Assim fizeram. Por tão longo jejum, sôfrego Ulisses Come e bebe; e Nausica bracinívea Na carroça depõe dobrada a roupa, Os ungüíssonos ata, monta, amoesta O alto varão: "Sus, hóspedes, à cidade; Ao paterno palácio te encaminho, Onde os magnatas acharás Feaces. Razoável te suponho, isto executes: Por agros e plantios, eu diante, Com minhas servas anda após o carro; Mas retém-te às muralhas da cidade, Que dous portos possui de estreita boca Lá vara cada um na sua estância
O açoutado baixel. Medeia aos portos Largo foro, com lajes das pedreiras Dos contornos calçado, e nele o templo Alteia de Netuno. Ali conservam Mastros, cabos, maçame, e remos talham; Que os Feaces não curam de arco e aljava, Sim de antenas e velas, que bizarros Pelo espumoso pélago os naveguem. O pé digo reprimas; que, insolente Como é do bairro a plebe, a desluzir-me Algum pode morder-me: - "Olhai Nausica; Segue-a gentil estranho apessoado; Será marido? Perto nenhum mora; De um navio errabundo o ajuntaria?
Ou deus será do Olimpo que, a seus rogos Baixe e lhe assista sempre? É bom que fora Fosse-o tomar; que os muitos que a desejam Da Feácia nobreza, ela os despreza." Desta afronta e censura hei de correr-me; E em caso igual censurarei aquela
Que, a despeito dos pais, antes das núpcias, Com homens se mostrasse. Hóspede, à risca Preenche o meu conselho, a fim que obtenhas Do rei gente e socorro e pronta volta. No caminho, alameda encontraremos, Luco Paládio, e fonte e em roda prados, Onde meu pai tem quinta e flóreos hortos, E dali à cidade em grito alcança: Neste lugar espera, e quando penses Que é tempo já de estarmos recolhidas, Entra no muro, indaga onde o palácio Do magnânimo Alcino; outra morada Os Feaces não têm que a rivalize,
E um menino qualquer pode ensinar-ta. Do átrio penetres velozmente à sala,
E busques minha mãe: sentada ao lume Do aceso lar, é maravilha vê-la E detrás dela escravas; encostada Ao pilar, volve um fuso purpurino. Próximo está meu pai qual deus, no sólio Almo vinho gostando: o rei pretiras, E os joelhos abraces da consorte, Para que da partida a luz te raie; Por distante que habites, se a comoves, Ver conta a celsa casa e a doce pátria."
Ei-la verbera os mus, que o rio deixam À desfilada, airoso o passo alternam; Mas de jeito regia o açoute e as rédeas, Para os a pé de vista a não perderem. Cai o sol; ao delubro de Minerva Demorando-se Ulisses, a depreca: "Do aluno de Amaltéia, ouve-me, ó filha! Se tu não me atendeste quando jogo Fui do ínclito Netuno, atende-me ora, Dá que os Feaces mísero me amparem."
Palas o escuta, sem que lhe apareça, Com temor de seu tio, que iracundo Até Ítaca mesma há de vexá-lo.