33-65 — Diz Pindemonte ser de mármore a soleira da choupana de Eumeu; é sobeja riqueza para a casa de um porqueiro: Homero só diz que era de pedra. — A passagem vertida no meu verso 65 faz conjeturar que certos escravos em Ítaca tinham alguma cousa de seu, que nem tudo pertencia exclusivamente aos senhores; pois, a ser tudo dos senhores, Telêmaco não dissera que ia mandar a Eumeu com que sustentar o mendigo, para este não lhe ser pesado. Nas fazendas do Brasil, os senhores permitem aos escravos cultivar para si um pequeno terreno, ou também criar seus porcos e galinhas etc, e tais produtos são inteiramente dos escravos; para o que há um dia da semana em que eles trabalham no dito terreno, e se lhes dá o tempo necessário ao trato dos seus animais: os econômicos e ativos não raramente adquirem dinheiro e com ele conseguem a sua alforria. Parecia que havia quer que seja de semelhante, ao menos em alguns lugares da Grécia.
85 — Anêmustõ epi ergõ, M. Giguet traduz assim: pour une entreprise qui ne s'accomplira pas. Este modo de falar indicaria em Ulisses uma confiança no futuro, não própria da sua habitual cautela. Sou com Pindemonte, que interpreta: indarno e senza fine o frutto.
89-91 — Rochefort, louvando este lugar, afirma que a repetição de mounon, que significa só, ne saurait guère passer dans une traduction. E não se limita à sua língua, decide logo de todas, como se ele as tivesse examinado: é defeito de não poucos tradutores franceses, quando não acertam com frase que bem traslade o original afirmar que nenhuma outra língua o pode conseguir. Ora, se Homero não oferecesse outras dificuldades, a que nota Rochefort não embaraçara nem embaçaria a tradutor nenhum: Pindemonte verteu a repetição do mounon, eu também o fiz; e qualquer francês, querendo, o pode fazer, pois que a sua língua a isto se presta otimamente.
136 — Desta passagem vê-se que Ulisses era trigueiro e de barba negra: o adjetivo melagchroiês refere-se à tez; kuaneai refere-se à barba, que, se é negra e feita, azul parece. Em um dos livros antecedentes, se diz que Ulisses tinha os cabelos da cabeça louros, o que não é contradição, pois há muitos homens de barba negra e de coma alourada ou mesmo loura. Combinado porém tudo que vem neste poema, antes se deve pensar que Ulisses tinha os cabelos da cabeça da cor dos que dizemos castanhos.
167-169 — Belíssima comparação: os dous heróis a chorar, principalmente Ulisses, a quem o poeta chama tantas vezes o destruidor de cidades, eram como águias ou abutres a grasnar pelos filhos perdidos. Por esta ocasião, Rochefort lembra a imitação de Virgílio na Geórgica, principiada por aquele verso nunca excedido: "Qualis populea moerens Philomela sub umbra." Acrescenta porém: "Je ne pense pas, comme Pope, que Virgile ait judicieusement substitué le rossignol à 1'aigle. Le rossignol, que chante toujours au commencement du printemps, ne forme pas de sons plus touchants lorqu'on 1ui a enlevé ses petits, que lorqu'on a respecté son nid; au lieu que 1'aigle, ou 1'autour, passait, réellement, chez les Anciens, pour déplorer amèrement la perte de ses petits lorsqu'on les lui enlevait; et c'etait peut-être pour cette raison que dans les hiéroglyphes Eypiens, l'autour representait la douleur. Ainsi, il y a ici dans Virgile une faute contre l'imitation exacte de la Nature, et en voulant embellir Homère, il s'est écarté de la verité". Antes de combater essa opinião, direi que Rochefort sem dúvida era habilíssimo em distinguir os diferentes sons das aves, e que, a ter vivido na antiguidade, fora talvez um excelente adivinho. Donde tirou ele que o rouxinol, cujo canto é variadíssimo, não tenha sons mais ternos e maviosos para carpir os filhinhos perdidos? em que observações funda a sua sentença? Não há naturalista que tal assevere: ao contrário, não é de crer-se que o rouxinol seja uma exceção, quando os animais, ao menos os que têm sido observados, usam de sons diversos em diversas ocasiões. Já Lucrécio o havia notado a respeito dos cães; e é indubitável que o naturalista Virgílio com pleno conhecimento da matéria adotou a mudança. Homero com razão compara o prantear dos heróis aos gemidos da águia e do abutre; mas o Latino judiciosamente, como o notou o poeta inglês, serviu-se do rouxinol. E por quê? porque Orfeu, que era um suave cantor e não um guerreiro, com mais propriedade é comparável em seus queixumes à ave mais conhecida pela doçura da sua voz. Podia Virgílio, sem incorrer em censura servir-se de outra ave canora, mas escolheu o rouxinol para exaltar a música de Orfeu e a ternura dos seus gemidos. — Fora melhor que Rochefort se contentasse de ser um dos péssimos tradutores de Homero, e fugisse de criticar miúdas vezes, do que ele mesmo se gaba, as imitações em que o poeta do bom gosto, por consenso dos imparciais, não raramente excede a seu grande mestre.
211 — Pensam, muitos que Ulisses diz que Telêmaco dissimule, ainda que seu pai seja arrastado pelos pés fora da sala; isto supõe que, para o enxotarem, o derribariam e o puxariam pelos pés; o natural porém, quando se quer fazer outrem sair de uma casa, é levá-lo a empurrões, ou a pontapés, se a violência é maior. Eu não me contentava com o sentido que se tem dado às palavras de Homero; e havendo em Pisa, na mesma casa que habitei, um estudante Grego instruído na sua língua tanto moderna como antiga, pedi-lhe que me traduzisse literalmente a passagem do poeta, sem declarar qual fosse a minha opinião: com prazer o ouvi traduzir que Telêmaco dissimulasse, ainda que Ulisses fosse levado a pontapés; e o moço acrescentou que parecia-lhe impossível outra interpretação. Ora, não obstante ser eu contrário aos que opinam que a pronúncia do grego moderno seja em tudo conforme à do antigo, estou convencido de que bem conhecer o moderno é grande vantagem para conhecer o antigo; sendo, como é certo, que as modificações e alterações são muito menos consideráveis que as dos idiomas de origem latina em confrontação com a língua mãe.
224-225 — A meu ver, diz Ulisses ao filho que deixe dois escudos maneiros; porque uma sala, por maior que fosse, era estreita para um combate, e nela mais convinham escudos não muito grandes, para melhor se manejarem. As espadas eram também curtas, phasgana; sós as lanças eram das ordinárias, dourê.
277 — Ocaso adjetivo, por cadente, se é latinismo, já o foi de Francisco Manuel nos Mártires, na descrição do Paraíso.