Capítulo 1

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Em 1958, Beaufort, na Carolina do Norte, situada na costa perto de Morehead City, era uma pequena cidade, igual a tantas outras do Sul. Era o gênero de lugar onde a humildade subia tanto no Verão que sair de casa para ir buscar o correio dava-nos logo vontade de tomar uma ducha, e as crianças andavam descalços de Abril até Outubro sob os carvalhos ornados de barbas-de-velho. As pessoas acenavam de dentro dos carros sempre que viam alguém na rua, quer conhecessem ou não, e o ar cheirava a pinheiros, sal e mar, um aroma único das Carolinas. Para muitas daquelas pessoas, pescar no Pamlico Sound ou apanhar caranguejos no rio Nele era um modo de vida, e ao longo de toda a Intercostal Waterway viam-se barcos atracados. A televisão transmitia apenas em três canais, mas a televisão nunca fora importante para os que ali cresceram. As nossas vidas centravam-se, em vez disso, à volta das igrejas, que só dentro dos limites da cidade eram dezoito. Tinham nomes como Igreja Cristã da Assembléia da Amizade, Igreja do Povo Perdoado, Igreja da Expiação de Domingo e depois,
claro, havia as igrejas baptistas. Na minha juventude, a Igreja Baptista era de longe a congregação mais popular das redondezas e havia igrejas baptistas praticamente em cada esquina da cidade, cada uma delas considerando-se superior às outras. Havia igrejas baptistas de todas as variedades - Baptistas da Livre Vontade, Baptistas do Sul, Baptistas Congregacionistas, Baptistas Missionários, Baptistas Independentes... bem, já devem ter ficado com uma idéia.
Naquele tempo, o grande acontecimento do ano era promovido pela igreja baptista do centro da cidade - a Sulista - juntamente com a escola secundária local. Todos os anos encenavam uma peça de Natal na Beaufort Playhouse, que na verdade, era uma peça escrita por Hegbert Sullivan, um pastor que pertencia àquela igreja desde que Moisés abriu o mar Vermelho. Está bem, talvez não fosse assim tão velho, mas era tão velho que quase se podia ver através da sua pele. Tinha a pele sempre meio pegajosa e translúcida - as crianças juravam que conseguiam mesmo ver o sangue a correr nas suas veias e o seu cabelo era tão branco como os coelhinhos que se vêem nas lojas de animais por altura da Páscoa.
Pois bem, ele escreveu uma peça chamada O Anjo de Natal, porque não queria continuar a encenar aquele velho clássico de Charles Dickens, Cântico de Natal. Na sua opinião, Scrooge era um pagão que alcançou a sua redenção apenas por ter visto fantasmas, não anjos e, de qualquer maneira, quem poderia garantir que eles tivessem sido enviados por Deus? E se os fantasmas não tinham sido enviados diretamente do céu, quem poderia dizer que Scrooge não iria voltar à sua conduta pecaminosa? A peça não o dizia propriamente no final de certa maneira, falava-se da fé e tudo isso mas Hegbert não confiava em fantasmas se eles não fossem de fato enviados por Deus e tal não era explicado numa linguagem clara. Esse era o grande problema da peça. Alguns anos antes, ele tinha alterado o final, fazendo a sua própria versão, com o velho Scrooge a transformar-se em padre e tudo, partindo para Jerusalém a fim de encontrar o lugar onde Jesus em tempos ensinara os escribas. Não foi muito bem recebida nem sequer pela comunidade de fiéis, sentados na platéia assistindo ao espetáculo com os olhos arregalados e o jornal local disse coisas do gênero: "Embora, sem dúvida, interessante, não é exatamente aquela peça que todos nós aprendemos a conhecer e a amar...".
Hegbert decidiu então tentar escrever a sua própria peça. Tinha escrito sermões a vida inteira, e alguns deles, tínhamos de admitir, eram realmente interessantes, especialmente quando falavam da "ira de Deus caindo sobre os fornicadores" e desse gênero de coisas. É que lhe fazia mesmo o sangue ferver, digo-vos, quando falava dos fornicadores. Essa era a sua verdadeira paixão. Quando éramos mais novos, eu e os meus amigos escondíamo-nos atrás das árvores e
gritávamos "O Hegbert é um fornicador!" quando o víamos descer a rua. Ríamo-nos como idiotas, como se fôssemos as criaturas mais espirituosas que já tinham habitado o planeta.
O velho Hegbert parava de repente, as suas orelhas levantavam-se - juro por Deus, elas mexiam-se mesmo - e o seu rosto ganhava um tom vivo de vermelho, como se tivesse acabado de beber gasolina, e as veias grandes e verdes do pescoço começavam a dilatar-se, como o rio Amazonas naqueles mapas da National Geographic. Olhava de um lado para o outro, os
olhos muito cerrados tentando descobrir-nos e, em seguida, de modo igualmente repentino, começava a ficar pálido novamente, voltando àquela pele de peixe, mesmo diante dos nossos olhos. Bem, era digno de ser visto, disso não há dúvida.
Então ficávamos escondidos atrás de uma árvore e Hegbert (mas quem são os pais que dão o nome de Hegbert a um filho?) permanecia ali à espera que nos rendêssemos, como se achasse que éramos assim tão estúpidos. Tapávamos a boca com as mãos para evitar rir alto, mas, de alguma maneira, ele conseguia sempre perceber quem éramos. Ficava a olhar de um lado para o outro e, de repente, parava, os olhos pequenos e brilhantes apontados na nossa direção, atravessando diretamente a árvore. "Sei que és tu, Landon Carter", dizia, "e Deus também o sabe." Deixava que pensássemos nisso durante um minuto ou dois e, por fim, seguia
o seu caminho. Durante o sermão desse fim-de-semana, fixava-nos com o olhar e dizia qualquer coisa como "Deus é misericordioso com as crianças, mas as crianças também têm de ser merecedoras da sua misericórdia". E nós encolhíamo-nos nos bancos, não por vergonha, mas para esconder um novo ataque de riso. Hegbert simplesmente não nos compreendia, o que era muito estranho, uma vez que ele até tinha uma criança. Mas era uma menina. Sobre isso, porém, falaremos mais tarde.
Como já disse, houve um ano em que Hegbert escreveu O Anjo de Natal e decidiu encenar essa peça em vez da outra. Na verdade, a peça em si não era má, o que surpreendeu toda a gente no primeiro ano em que foi representada. Era, basicamente, a história de um homem que tinha perdido a mulher há alguns anos. Esse homem, Tom Thornton, era muito religioso, mas teve uma crise de fé depois da mulher ter morrido ao dar à luz. Tom Thornton acaba por cuidar da filha sozinho, mas não é o melhor dos pais. Surge um Natal em que o que a menina quer mesmo é uma caixinha de música especial com um anjo gravado na tampa, que ela vira num velho catálogo e cuja fotografia havia recortado. Durante muito tempo, o homem procura o presente por todo o lado, mas não o consegue encontrar em lugar algum. Chega então a véspera de Natal e ele continua à procura, e enquanto está na rua a olhar para as lojas depara com uma mulher estranha que nunca tinha visto e que promete ajudá-lo a encontrar o presente para a filha. Primeiro, porém, ajudam um sem-abrigo (naquela altura chamávamos- lhes vagabundos), depois passam por um orfanato para visitar algumas crianças, em seguida visitam uma mulher velha e sozinha que queria apenas alguma companhia na véspera do Natal. Nesse ponto da história, a mulher misteriosa pergunta a Tom Thornton o que deseja para o Natal e ele responde-lhe que quer a sua mulher de volta. Ela leva-o ao chafariz da cidade e diz-lhe que olhe para a água, pois ali encontrará aquilo que procura. Quando ele olha para a água, vê o rosto da sua filhinha e desata a chorar ali mesmo. Enquanto isso, a mulher misteriosa desaparece e Tom Thornton procura-a mas não a consegue encontrar. Por fim, dirige-se a casa. As lições que aprendera durante o dia davam-lhe voltas à cabeça. Entra no quarto da filha e a sua figura adormecida fá-lo perceber que ela é tudo o que lhe resta da mulher. Começa a chorar de novo, pois sabe que não tem sido um bom pai. Na manhã seguinte, como por magia, a caixinha de música surge debaixo da árvore de Natal e o anjo gravado na tampa parece exatamente a mulher que ele vira na noite anterior.
Assim, de fato, a peça não era tão má. Para dizer a verdade, as pessoas vertiam rios de lágrimas sempre que a viam. Esgotava todos os anos em que era levada à cena e, devido à sua
popularidade, Hegbert acabou por ter de transferi-la da igreja para a Beaufort Playhouse, que tinha muito mais lugares. No meu último ano de escola secundária, faziam-se já dois espetáculos com casas cheias, o que, para aqueles que interpretavam a peça, era já por si um grande acontecimento.
É que Hegbert queria que fossem jovens a representá-la - os alunos do último ano, não o grupo de teatro. Suponho que ele julgava que era uma boa experiência de aprendizagem antes de os alunos seguirem para a universidade e se defrontarem com todos os fornicadores. Ele era esse gênero de pessoa, querendo sempre salvar-nos da tentação. Queria que soubéssemos que Deus estava sempre a vigiar-nos, mesmo quando estávamos longe de casa e que, se confiássemos Nele, tudo acabaria bem. Foi uma lição que, por fim, aprendi, embora não tivesse sido Hegbert a ensiná-la.
Como já disse, Beaufort era bastante típica como cidade do Sul, embora tivesse uma história interessante. O pirata Blackbeard teve ali em tempos uma casa, e diz-se que o seu navio, o Queen Anne's Revenge, se encontra enterrado algures na areia ao largo da costa. Recentemente, uns arqueólogos, ou oceanógrafos, ou quem anda à procura de coisas desse gênero, disseram que o tinham localizado, mas de momento ninguém tem ainda a certeza, uma vez que se afundou há mais de duzentos e cinqüenta anos e não há documentos que possam servir como provas de ser esse barco. Beaufort mudou muito desde os anos 50, embora ainda não seja exatamente uma grande metrópole. Beaufort era, e sempre será, uma comunidade pequena, mas quando eu era ainda criança mal justificava um lugar no mapa. Para melhor se perceber, o distrito que incluía Beaufort abrangia toda a parte oriental do estado - alguns cinqüenta mil quilômetros quadrados - e não tinha uma única cidade com mais de vinte e cinco mil habitantes. Mesmo comparada a essas cidades, Beaufort era considerada pequena. Toda a zona a leste de Raleigh e a norte de Wilmington, até à fronteira com a Virgínia, fazia parte do distrito que o meu pai representava.
Suponho que já tenham ouvido falar dele. Ainda agora ele é uma espécie de lenda. Chamava-se Worth Carter, e foi membro do Congresso durante quase trinta anos. A sua palavra de ordem, ano sim ano não, durante a época das eleições era "Worth Carter representa e a pessoa devia preencher o nome da cidade onde vivesse. Lembro-me que durante as viagens que fazíamos, quando eu e a minha mãe tínhamos de aparecer em público para mostrar às pessoas que ele era um verdadeiro chefe de família, costumávamos ver esses autocolantes preenchidos a stencil com nomes como Otway, Chocawinity e Seven Springs. Hoje em dia, essas coisas já não resultariam, mas naqueles tempos era uma forma de publicidade razoavelmente sofisticada. Imagino que, se ele fizesse isso agora, os seus adversários introduziriam todo o tipo de palavrões no espaço em branco, mas nós nunca vimos isso. Bem, talvez uma vez. Um agricultor de Dupím County escreveu a palavra merda no espaço em branco, e quando a minha mãe a viu, tapou-me os olhos e disse uma prece pedindo perdão para aquele pobre e ignorante patife. Ela não proferiu exatamente essas palavras, mas eu percebi o sentido.
Portanto o meu pai, o Sr. Congressista, era o manda-chuva local, e todos, mas todos, sabiam isso, incluindo o velho Hegbert. Pois bem, os dois não se davam lá muito bem, não se entendiam de todo, apesar de o meu pai visitar a igreja de Hegbert sempre que ia à cidade, o que, para ser franco, não acontecia assim com muita freqüência. Hegbert, para além de pensar que os fornicadores estavam destinados a limpar os urinóis no Inferno, também acreditava que
o comunismo era "uma doença que condenava a humanidade ao heregismo". Apesar de heregismo não existir como palavra - não
consigo encontrá-la em dicionário algum - os fiéis sabiam o que ele queria dizer. Sabiam também que dirigia aquelas palavras em particular ao meu pai, sentado de olhos fechados e fingindo não ouvir. O meu pai pertencia a uma das comissões da Câmara dos Representantes que estudava o "perigo vermelho" que, supostamente se estava a infiltrar em todas as esferas do país, incluindo a defesa nacional, o ensino superior e até a cultura do tabaco. Não se esqueçam que isto se passou durante a Guerra Fria; as tensões estavam ao rubro, e nós, os da Carolina do Norte, precisávamos de alguma coisa que trouxesse tudo aquilo para um nível mais quotidiano. O meu pai, de forma coerente, tentava procurar fatos, os quais eram irrelevantes para pessoas como Hegbert.
Depois, quando chegava a casa após a missa, dizia qualquer coisa como "O reverendo Sullivan esteve muito bem hoje. Espero que tenhas prestado atenção àquela parte do Evangelho em que Jesus fala dos pobres...".
- Sim, claro, pai...
O meu pai tentava relativizar as situações sempre que possível. Penso que foi por isso que se manteve no Congresso durante tanto tempo. Ele podia beijar os bebês mais feios à face da terra e ainda inventar algo de simpático para lhes dizer. "Que criança tão amorosa", comentava, quando o bebê tinha uma cabeça gigantesca, ou "Aposto que é a menina mais querida deste mundo", se a bebê tivesse uma marca de nascença que lhe cobria o rosto inteiro. Uma vez apareceu uma mulher com uma criança numa cadeira de rodas. O meu pai olhou para ele e disse: "Aposto dez contra um em como és o melhor aluno da tua turma." E era! Pois é, o meu pai era o máximo neste gênero de coisas. Estava à altura dos melhores, disso não há dúvida. E não era assim tão mau, na verdade, especialmente levando em conta que não me batia, nem nada disso.
Mas não esteve presente durante a minha infância. Detesto dizer isto, porque hoje em dia as pessoas falam muito dessas coisas, mesmo quando os pais estiveram de fato presentes, e usam-nas como desculpa para o seu comportamento. O meu pai... não me amava... foi por isso que me tornei numa stripper e apareci no Jerry Springer Show... Não estou a usar isto para desculpar a pessoa em que me tornei, estou apenas a constatá-lo como um fato. O meu pai estava ausente nove meses durante o ano, vivendo num apartamento em Washington, D.C., a quase quinhentos quilômetros de distância. A minha mãe não ia com ele, porque ambos queriam que eu crescesse "da mesma maneira que eles tinham crescido".
Claro, o pai do meu pai levava-o a caçar e a pescar, ensinou-o a jogar à bola, aparecia nas festas de aniversário, aquelas pequenas coisas que, todas juntas, são muito importantes antes de nos tornarmos adultos. O meu pai, pelo contrário, era um estranho, alguém que eu mal conhecia. Durante os primeiros cinco anos de vida pensei que todos os pais vivessem fora de casa num outro lugar qualquer. Foi só quando o meu melhor amigo, o Eric Hunter, me perguntou no jardim de infância quem era aquele homem que aparecera em minha casa na noite anterior que percebi que havia algo de errado naquela situação.
- É o meu pai - respondi, orgulhoso.
- Ah - disse Eric, vasculhando na minha lancheira, à procura do meu Milky Way. - Não sabia que tinhas pai.
Foi como se me tivessem dado um estalo na cara.
De maneira que cresci sob os cuidados da minha mãe, uma senhora simpática, meiga e gentil,
o gênero de mãe com quem a maioria das pessoas sonha. Mas ela não foi, nem podia ter sido, uma influência masculina na minha vida e, esse fato, juntamente com a desilusão crescente em relação ao meu pai, fez com que me tornasse meio rebelde, mesmo quando era ainda muito novo. Não um rebelde dos maus, atenção. Eu e os meus amigos podíamos sair às escondidas de casa à noite e ensaboar os vidros de automóveis de vez em quando, ou comer amendoins cozidos no cemitério por trás da igreja, mas nos anos cinqüenta eram coisas que levavam os pais a abanar a cabeça e a sussurrar para os filhos: "Não queiram ser como o filho dos Carter. Não tarda nada, vai parar à prisão."
Eu. Um mau rapaz. Por comer amendoins no cemitério, imaginem.
Bem, adiante, o meu pai e Hegbert não se davam bem, mas não era só por causa da política. Não, parece que o meu pai e Hegbert se conheciam há já muito tempo. Hegbert era cerca de vinte anos mais velho do que o meu pai e, em tempos, antes de ser pastor, costumava trabalhar para o pai do meu pai. O meu avô apesar de ter passado muito tempo com o meu pai era, sem dúvida, um verdadeiro filho-da-mãe. A propósito, foi ele quem fez a fortuna da família, mas não quero que o imaginem como um homem diligente que se matava a trabalhar, assistindo tranquilamente ao crescimento do seu negócio, enriquecendo aos poucos com o tempo. O meu avô era muito mais esperto do que isso. O modo como ganhou o seu dinheiro foi simples - começou como contrabandista de bebidas alcoólicas, acumulando riqueza durante o período da Lei Seca, trazendo rum de Cuba. Depois, começou a comprar terras e a contratar rendeiros para trabalharem nelas. Ficava com noventa por cento do que os rendeiros faziam com a colheita do tabaco, depois lhes emprestava dinheiro sempre que eles precisavam, com taxas de juro absurdas. Claro, nunca fazia tensão de receber o dinheiro, em vez disso, impedia-os de liquidarem as hipotecas acabando por ficar com qualquer pedaço de terra ou equipamento que lhes pertencesse. Depois, no que ele chamava o seu "momento de inspiração", fundou um banco chamado Carter Banking and Loan. O único banco que existia num raio de dois conselhos tinha ardido misteriosamente e,
com o começo da Depressão, nunca mais reabriu. Embora toda a gente soubesse o que realmente acontecera, jamais alguém disse uma palavra com medo de represálias, e esse medo tinha razão de ser. O banco não fora o único edifício a incendiar-se misteriosamente.
As taxas de juro eram ultrajantes e, aos poucos, ele começou a apropriar-se de mais terras e bens à medida que as pessoas não conseguiam liquidar os seus empréstimos. Quando a Depressão atingiu o auge, apoderou-se de dezenas de negócios por todo o conselho, conservando ao mesmo tempo os proprietários originais como assalariados, pagando-lhes apenas o suficiente para mantê-los onde estavam, pois não tinham para onde ir. Dizia-lhes que quando a economia melhorasse, voltaria a vender-lhes os negócios, e as pessoas acreditavam sempre nele.
Nem uma única vez, porém, cumpriu a sua promessa. No fim, acabou por ficar com o controlo de uma grande parte da economia do conselho, e abusou do seu poder de todas as maneiras imagináveis.
Gostaria de vos poder contar que ele acabou por ter uma morte horrível, mas não foi o caso. Morreu numa idade bem avançada, enquanto dormia com a amante no seu iate ao largo das Ilhas Caimão. Sobrevivera a ambas as mulheres e ao único filho. Que fim para uma pessoa como ele! A vida, aprendi, nunca é justa. Se se ensinasse alguma coisa nas escolas, deveria ser isso.
Mas voltemos à história... Hegbert, quando viu que grande sacana era, na verdade, o meu avô, deixou de trabalhar para ele e ingressou no sacerdócio. Mais tarde, voltou para Beaufort e começou a ministrar na mesma igreja que nós freqüentávamos. Passou os primeiros anos a aperfeiçoar o seu número de fogo e castigo celestial com sermões mensais sobre os malefícios das pessoas avarentas, e isso deixava-lhe muito pouco tempo para qualquer outra coisa. Tinha já quarenta e três anos quando finalmente se casou; e cinqüenta e cinco quando a filha, Jamie Sullivan, nasceu. A mulher, pequenina e magra, vinte anos mais nova do que ele, teve seis abortos espontâneos antes da Jamie nascer e, no fim, morreu ao dar à luz, deixando Hegbert viúvo e com uma filha para criar sozinho.
Daí, claro, a história por detrás da peça de teatro.
As pessoas já sabiam disso, mesmo antes de a peça ser levada à cena. Era uma daquelas histórias que se ouviam sempre que Hegbert tinha de batizar um bebê ou assistir a um funeral. Todos a conheciam, e é por isso, penso eu, que tantas pessoas se emocionavam sempre que assistiam à representação de Natal. Reconheciam-na como algo baseado na vida real, o que lhe dava um significado especial.
Jamie Sullivan andava no último ano da escola secundária, como eu, e já tinha sido escolhida para interpretar o anjo. Não que mais alguém alguma vez tivesse essa hipótese. Esse fato, claro, tornava a peça particularmente especial naquele ano. Ia ser um grande acontecimento, talvez o maior acontecimento de todos os tempos
pelo menos, na cabeça de Miss Garber. Ela era a professora de teatro, e já se mostrava
entusiasmadíssima com as possibilidades da peça na primeira vez que a vi nas aulas.
Pois bem, eu realmente não planeara fazer teatro naquele ano. A sério que não, mas ou escolhia isso ou Química II. A verdade é que pensava que iria ser uma disciplina "fácil", especialmente quando comparada com a minha outra opção. Nada de papéis, ou testes, nem quadros onde teria de memorizar protons e neutrons e combinar elementos nas suas fórmulas adequadas... O que poderia ser melhor para um aluno no último ano? Parecia ser a escolha acertada, e quando me inscrevi em teatro, pensei que iria poder dormir em quase todas as aulas, o que era bastante importante na altura, tendo em conta os meus hábitos de comedor de amendoins às tantas da noite.
No primeiro dia de aulas fui dos últimos a chegar, entrando segundos antes de a campainha tocar, e escolhi um lugar nas últimas filas. Miss Garber estava de costas para a classe, ocupada a escrever o seu nome em letras grandes e cursivas no quadro, como se não soubéssemos como ela se chamava. Toda a gente a conhecia - era impossível não a conhecer. Era alta, media pelo menos dois metros, com cabelo ruivo flamejante e uma pele pálida que, aos quarenta e tal anos, ainda exibia sardas. Tinha também excesso de peso - diria honestamente que chegava aos cento e quinze quilos - e uma tendência para usar longos e floridos vestidos havaianos. Usava óculos com armações de tartaruga, e cumprimentava toda a gente com "Oláááaaa"'", a última sílaba meio cantada. Miss Garber era única, disso não há dúvida, e era solteira, o que tornava as coisas ainda piores. Um homem, não importa a idade, não podia deixar de sentir pena de uma mulher como ela.
Por baixo do seu nome, escreveu os objetivos que pretendia alcançar naquele ano. A "autoconfiança" vinha em primeiro lugar, seguida da "autoconsciência" e, em terceiro, a "realização pessoal". Miss Garber tinha a mania deste tipo de expressões, nisso antecipando a psicoterapia, embora na altura não se apercebesse provavelmente disso. Miss Garber foi pioneira nesse campo. Talvez tivesse algo a ver com a sua aparência física; talvez só procurasse sentir-se melhor consigo própria.
Mas estou apenas a divagar.
Foi só depois de a aula ter começado que reparei numa coisa estranha. Embora a Escola Secundária de Beaufort não fosse grande, tinha a certeza absoluta de que era freqüentada por igual número de rapazes e de garotas, sendo essa a razão por que fiquei surpreendido ao reparar que aquela turma tinha uma percentagem feminina de pelo menos noventa por cento. Havia apenas um outro rapaz na sala, o que na minha opinião era bom e, por um instante, senti- me entusiasmado com aquele gênero de sensação "atenção pessoal, aqui vou eu". Mulheres, mulheres, mulheres... não podia deixar de pensar nisso. Mulheres e mais mulheres e nada de testes à vista.
Pronto, sei que não era o rapaz mais perspicaz do bairro.
Então Miss Garber traz à baila a peça de Natal e diz-nos que Jamie Sullivan vai ser o anjo naquele ano. Miss Garber pôs-se logo a bater palmas - pertencia à igreja, também - e muita gente pensava que ela tinha um fraquinho por Hegbert. Quando ouvi falar disso pela primeira vez, lembro-me de ter pensado que era bom eles serem demasiado velhos para poderem ter filhos, se alguma vez se viessem a juntar. Imaginem - translúcidos com sardas! Só a idéia arrepiava toda a gente, mas claro, nunca ninguém falava do assunto, pelo menos ao alcance dos ouvidos de Miss Garber e Hegbert. Mexericos é uma coisa, mexericos ofensivos é outra completamente diferente e, mesmo na escola secundária, não éramos assim tão maus.
Miss Garber continuou a bater palmas sozinha até todos finalmente nos juntarmos a ela, pois era, evidentemente, isso que ela queria. "Levante-se, Jamie", disse. Então Jamie levantou-se e voltou-se para nós. Miss Garber começou a bater palmas com mais força ainda, como se estivesse na presença de uma verdadeira estrela de cinema.
Pois bem, Jamie Sullivan era boa garota. Era mesmo. Beaufort era tão pequena que havia apenas uma escola primária. Daí que tivéssemos pertencido às mesmas turmas a vida inteira e mentiria se dissesse que nunca tinha falado com ela. No segundo ano, Jamie ficara no lugar ao meu lado, e até tivemos algumas conversas, mas isso não queria dizer que passasse muito tempo com ela nos meus tempos livres, mesmo naquela altura. Com quem eu me dava na escola era uma coisa; com quem estava depois da escola era outra completamente diferente, e Jamie nunca constara da minha agenda social.
Não que fosse feia, não me entendam mal. Não era horrorosa, nem nada disso. Felizmente, saíra à mãe, que segundo as fotografias que tinha visto não era nada má, especialmente tendo em conta aquele com quem acabara por casar. Mas Jamie também não era exatamente o que eu considerava atraente. Apesar de magra, com cabelo louro de mel e meigos olhos azuis, a maior parte do tempo parecia algo... sem graça, e isso só quando se chegava a reparar nela. Jamie não se preocupava muito com as aparências exteriores, pois estava sempre à procura de coisas como "beleza interior", e suponho que, em parte, seria essa a razão por que tinha aquele aspecto. Desde que a conhecia e isso é recuar bastante no tempo, - lembrem-se - usou sempre
o cabelo num carrapito bem apertado, quase como uma solteirona, sem uma pinta de maquiagem no rosto. Juntando a isso, com os seus habituais casaco de lá castanho e saia de xadrez, tinha sempre o aspecto de estar a caminho de uma entrevista para um emprego na biblioteca. Nós achávamos que era só uma fase e que, por fim, lhe passaria, mas isso nunca aconteceu. Mesmo durante os nossos primeiros três anos de escola secundária ela nada mudou. A única coisa que mudou foi o tamanho das suas roupas.
Mas não era apenas a aparência de Jamie que a tornava diferente; era também o modo como se comportava. Jamie não passava o tempo no Cecil's Diner ou em festas em casa das outras meninas, e estou certo de que nunca havia tido um namorado na vida.
O velho Hegbert, provavelmente, teria um ataque de coração se isso acontecesse. Mas mesmo que, por alguma estranha razão, Hegbert o permitisse, ainda assim isso não teria feito qualquer diferença. Jamie levava a Bíblia para todo o lado e, se a sua aparência e Hegbert não afastavam os rapazes, a Bíblia podem ter a certeza que sim. Ora bem, eu gostava tanto da Bíblia como qualquer outro rapaz, mas Jamie parecia gostar dela de um modo que me era completamente estranho. Não só ia todos os meses de Agosto para o campo de férias da igreja, como lia também a Bíblia durante o intervalo do almoço na escola. Para a minha cabeça, isso simplesmente não era normal, mesmo sendo ela a filha do pastor. Por mais voltas que se dê ao assunto, ler a carta de São Paulo aos Efésios não era nem de perto tão divertido como namoricar.
Mas não ficava por aí. Por causa de toda a sua leitura da Bíblia, ou talvez devido à influência de Hegbert, Jamie acreditava que era importante ajudar os outros; e ajudar os outros era precisamente o que ela fazia. Eu sabia que ela trabalhava como voluntária no orfanato de Morehead City, mas isso ainda não lhe era suficiente. Estava à frente de toda e mais alguma campanha de recolha de fundos, ajudando toda a gente, desde os Escoteiros às Princesas Índias. Soube que, quando ela tinha catorze anos, passou parte do Verão a pintar o exterior da casa de um vizinho idoso. Era o gênero de menina para arrancar as ervas daninhas do jardim de alguém sem que lhe pedissem ou para interromper o trânsito para ajudar as criancinhas a atravessar a rua. Poupava na sua mesada para comprar uma nova bola de basquete para os órfãos, ou dava meia volta e deitava o dinheiro no cesto da igreja aos domingos. Era, por outras palavras, o tipo de mulher que nos fazia parecer maus, e sempre que ela olhava para mim, não podia deixar de me sentir culpado, mesmo que não tivesse feito nada de errado.
Jamie também não circunscrevia as suas boas ações às pessoas. Sempre que se cruzava com um animal ferido, por exemplo, tentava ajudá-lo. Sarigueias, esquilos, cães, gatos, rãs... pouco lhe importava. O Dr. Rawlings, o veterinário, conhecia-a de vista, e abanava a cabeça sempre que a via aproximar-se da sua porta trazendo uma caixa de cartão com mais uma criatura lá dentro. Tirava os óculos e limpava-os com o lenço enquanto Jamie explicava como tinha encontrado a pobre criatura e o que lhe tinha acontecido. "Foi atropelado por um carro, Dr. Rawlings. Penso que estava nos desígnios de Deus eu tê-lo encontrado e tentar salvá-lo. Vai ajudar-me, não vai?"
Para Jamie, tudo estava nos desígnios de Deus. Havia outra coisa. Sempre que alguém falava com ela, qualquer que fosse o assunto, mencionava sempre os desígnios de Deus. O jogo de basebol foi adiado por causa da chuva? Deve ser desígnio de Deus para evitar que algo de mais grave aconteça. Um teste surpresa de trigonometria a que todos na turma chumbaram? Deve estar no desígnio de Deus para nos proporcionar desafios. Bem, já devem ter ficado com uma idéia.
Depois, claro, havia toda a grande questão de Hegbert, e isso em nada a ajudava. Ser a filha do pastor não podia ter sido fácil, mas ela fazia com que isso parecesse a coisa mais natural do mundo e uma sorte ter sido abençoada daquela maneira. Era também assim que costumava dizer. "Fui tão abençoada por ter um pai como o meu." Sempre que dizia isso, tudo o que podíamos fazer era abanar a cabeça e interrogar-nos de que planeta é que ela, efetivamente, tinha vindo.
No entanto, apesar de todas essas características, aquilo que realmente me enfurecia nela era o fato de estar sempre tão irritantemente alegre, independentemente daquilo que estivesse a acontecer à sua volta. Juro, aquela menina nunca disse uma coisa má de nada nem ninguém, mesmo daqueles de nós que não eram muito simpáticos para ela. Passeava pelas ruas a cantarolar, acenava a estranhos que passassem de carro. Por vezes, algumas senhoras, quando a viam passar, saíam a correr das suas casas para lhe oferecerem pão de abóbora que tinham feito durante o dia ou limonada se o calor apertava. Parecia que todos os adultos da cidade a adoravam. "É uma menina tão simpática", diziam sempre que viesse à conversa o nome de Jamie. "O mundo seria um lugar melhor se houvesse mais pessoas como ela."
Mas eu e os meus amigos não víamos as coisas propriamente da mesma maneira. Na nossa opinião, uma Jamie Sullivan já era de mais.
Pensei nisto tudo quando Jamie se colocou diante de nós no primeiro dia da aula de teatro e admito que não estava muito interessado em vê-la. Mas estranhamente, quando Jamie se voltou para nos olhar senti uma espécie de choque, como se estivesse sentado em cima de um arame lasso ou coisa parecida. Ela vestia uma saia de xadrez e uma blusa branca debaixo do mesmo casaco de lã castanho que eu já vira um milhão de vezes, mas havia duas novas saliências no peito que a camisola não conseguia esconder e que eu jurava não estarem lá há apenas três meses atrás. Jamie nunca usara maquiagem e ainda não o fazia, mas estava bronzeada, provavelmente por causa do campo de férias e, pela primeira vez, parecia bem, quase bonita. Claro, pus logo de parte esse pensamento, mas quando olhou em volta da sala, ela parou e sorriu para mim, obviamente contente por ver que eu fazia parte da turma. Só mais tarde é que eu viria a descobrir a verdadeira razão desse sorriso.

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