Capítulo único: O que se perdeu

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No emaranhado do mundo, no meio daquela gente que pensa ser gente, o Homem Comum faz sua viagem de volta. Ele é apenas mais uma pessoa azul, em meio a um oceano de pessoas cinzentas, onde as mentiras fluem feito sangue. Em seu rosto, a máscara de preto e branco se mostra dura e impassível, escondendo que por baixo ele ainda é ele, um Homem Comum, com seus medos, incertezas, dúvidas, amores e perdas.

Ele olha pela janela do trem, com os mesmos olhos tristes que ganhou no dia em que aceitou aquela existência. Olha para o céu azulado da noite, onde as estrelas triunfam resplandecentes. A meia Lua parece sorrir e o Homem Comum, tenta retribuir aquele sorriso com outro, mas por dentro, pois sua máscara de preto e branco o impede de demonstrar o que sente.

O Homem Comum olha as horas em seu relógio de pulso, presente de algum amigo indiferente. Algo que ele sorriu e agradeceu com a mesma sutileza de uma máquina. Faltam trinta e cinco minutos para ele descer daquele trem, andar por uma ruazinha de pedras e em breve, estar de volta à normalidade do seu lar. Um lugar comum, para um Homem Comum.

No teto do trem, as luzes da cidade deixam marcas e rastros, sombras e formas que surgem e se apagam como num piscar de olhos. Ele fixa o olhar nelas, enquanto o vento frio e delicado da noite, beija seu rosto. Reflexos mutáveis e disformes assim como sua vida. Seu olhar compenetrado, atravessa o metal frio do teto, viajando para o mais longínquo dos lugares. Tão perto e ao mesmo tempo tão longe, suas lembranças ainda são tão vivas quanto cada uma daquelas pessoas cinzentas, que dividem com ele aquele espaço ínfimo. De jantares com amigos às festas com completos desconhecidos, momentos onde os rostos eram apenas borrões de tinta. Quando ele começara a questionar seus caminhos daquela forma? Quando se dera conta de que havia se tornado apenas mais um?

Seu emprego, as vezes lhe parecia a consequência de mais um erro. A comida cara e indigesta que estagnou na garganta e não se importando com o tamanho da tosse, recusava-se a sair. Levava seus dias naquele lugar da mesma maneira mecânica com que apertava as mãos de mais um cliente. Mais uma pessoa cinza, escondida pelas gravatas caras e o terno importado. Sua vida havia se tornado como aquele gesto indiferente, e era com essa indiferença que ele levava a vida.

Seu casamento era como um segundo ponto de interrogação em uma única frase. Algo como uma lembrança vaga de um momento que deveria ter uma importância da qual, ou nunca teve ou ele não dera a devida atenção. Talvez ambas as coisas. Algum deles havia passado do ponto e na pior das hipóteses, nunca chego a lugar nenhum. Alguma vez percebeu a gravidade da situação? Seria quando sorriu para a moça da padaria onde comprava pães toda manhã? Ou seria quando ela retribui o sorriso, tingindo com vermelho sua máscara? O problema era que ele ainda se importava e o problema maior é que ele não fazia nada para mudar. Aquilo havia se acomodado em seus ombros como um papagaio, repetindo algo que ele já decorara. Havia um problema ali e nada do que fizessem poderia resolvê-lo, pois o preço que haviam pago por aquela vida foi tão alto, que nenhum deles estava disposto a aceitar o prejuízo.

A esposa o esperará em casa, como sempre. O jantar estará pronto, ele contará para ela as idiotices de seu dia, reclamará sobre o chefe e o calor escaldante do escritório, devido a queima de um dos equipamentos de ar-condicionado. Talvez eles bebam o licor adocicado e forte que ela guarda na estante de vidro. Com moderação, sem exageros. Ela, assim como ele, porém em seu próprio ritmo, é uma mulher comum, vestindo uma máscara de várias cores, na intenção de mudar o azul que ele escondia tão bem, o mesmo azul que havia tomado conta do rosto dela. E essa não era uma cor comum.

Na memória, ele guardava cenas e fatos de tempos passados, onde os dois não fugiam de seus sentimentos, onde a sinceridade era algo que imperava entre as cores e sabores, que aquela doce vida lhes proporcionava. Haviam trocado a incerteza do amanhã pela certeza do ontem, a vida plena e próspera de uma pessoa comum. Mas a troca teve um preço alto e ambos pagaram sua parte, como um tíquete para um passeio bem longo. Porém, em algum lugar do caminho, eles haviam perdido o combustível que os movia, que os faziam atravessar barreiras, saltar desfiladeiros e enfrentar os monstros terríveis daquele mundo. Agora, para qualquer coisa era necessário apenas pagar. Como todas aquelas pessoas cinzas faziam todos os dias.

Por ela, ele abriu mão de um punhado de coisas que o faziam ser quem era, a banda de rock, o amor pelos esportes radicais, as intermináveis horas na frente do videogame com os amigos. Coisas que caíram de sua mão como vidro, estilhaçando-se se de maneira irrecuperável. O Homem Comum nunca reclamou, nunca chorou a perda. Mas naquele momento, uma pequena parte de seu rosto, havia se tornado azul. Ele sabia que ela também desistira de seus sonhos por ele, o teatro, o sonho de ser pianista e uma infinidade de coisas que talvez nem mesmo coubessem em um punhado. Um dia, ele a viu olhando uma caixa de recordações, cheia de recortes, lembranças e cores. Seus olhos exibiam um azul que não era seu. Naquele momento, o Homem Comum havia ganho um novo tom de azul em seu rosto, o qual ele justificara mais tarde, dizendo que havia tido uma irritação nos olhos. A máscara preto e branco, começava então, a tomar forma. No começo, escondia apenas as manchas azuis, mas com o passar do tempo, começou a tapar todas as cores e raios de sol. Cada cor que escapava, a máscara se esticava para pegar. Nos anos que se seguiram, ela só aumentou, tapando cada buraco que deixava transparecer agora, aquele azul já tão dominante. Para todos, ele era uma pessoa em preto e branco.

O Homem Comum já havia pensado em divórcio. Já havia pensado em suicido. Demissão. Mas nada daquilo mudaria sua vida, não de uma forma boa, ele imaginava. Suas raízes já estavam fincadas naquele pedaço de vida que ele lutava tão bravamente para manter unida. Era tudo o que ele tinha, tudo pelo que ele queria lutar e toda vez que ele pensava nisso, a máscara preto e branco se contraia de dor. Mas aquela era uma dor boa.

Mas mesmo apesar de todo o cinza que recobria o mundo, o Homem Comum ainda tinha um refúgio. Por dentro, bem debaixo da máscara e de todo aquele azul, existia um mundo só seu, onde tudo era exatamente como ele queria que fosse. Naqueles pequenos percursos em que fazia, quando os pensamentos não martelavam sua cabeça, o Homem Comum se largava dentro de sua imaginação, onde observava como seria sua vida se tivesse seguido seus sonhos. Como estaria? Como seria seu cabelo? Qual seria seu emprego? Aquele era um mundo onde ele ainda possuía a cor que desejasse, como todos os sabores de sorvete que se pode pagar. Era seu esconderijo daquele mundo voraz, que devorava tudo o que brotava de mais puro. Em seu mundo, sua esposa ainda sorria com a mesma empolgação, de quando a juventude não era apenas uma lembrança, mas uma dádiva. Em seu mundo, ele era tudo o que nunca pode e jamais seria. Era colorido.

Pensar sobre isso, apenas fazia com que o azul de fora aumentasse, mas por dentro, era como se sentisse que ainda havia um raio de sol, fraco mas persistente. Algo pelo qual valia a pena lutar e que fazia a máscara doer cada vez mais. E aquela, era uma dor ainda melhor.

Quando as portas do vagão se abrem, o transe se quebra e o Homem Comum, é arrancado a força daquele mundo tão doce que criara para si. Ele olha uma última vez pela janela, onde o reflexo de sua máscara em preto e branco, ainda conserva todas as marcas que a vida lhe fizera. Ele não era mais um adolescente e as escolhas já estavam feitas. O Homem Comum então, anda a passos lentos, acompanhando a espessa massa acinzentada que se move para fora do vagão. Seu mundo imaginário ficando para trás, à medida que ele se aproxima da realidade quase palpável que o cerca. Para trás ficaram também os sonhos e vontades, o arco-íris de sentimentos que eles nunca terão. O azul aperta seu peito, como uma forca aperta o pescoço de um condenado. Ele engole em seco e se pergunta por quanto tempo aquilo durará, quantas vidas será necessário viver para que ele finalmente entenda qual o seu propósito naquele mundo, se a ele não restam mais objetivos? As respostas porém, são tão amargas quanto todo aquele azul.

Por fim, resta apenas seguir em frente, pela mesma ruazinha de pedras, como outros fizeram antes dele e farão depois. Rumo a um destino pago pelas comodidades de uma vida vazia e como todas aquelas pessoas cinzentas, rumo a lugar nenhum. Ele é mais um dentre todos. Ele é apenas um Homem Comum.


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