A minha novíssima dona chegou tempos depois - lembra da falta de dimensão de tempo dos livros? Ela ataca novamente - jogando a mochila em cima de algumas águas-vivas de pelúcia e pulando na cama.
Saí do travesseiro por um instante, pairei no ar e voltei, com um baque fofo. A menina tirou os tênis brancos, jogou-os e deitou na cama. Se esticou o máximo que seus pequenos membros permitiram, estalando os ossinhos. Ali mesmo, atravessada no meio da cama enorme, ela tirou uma soneca. Eu a olhei, ansioso, esperando que no próximo segundo fosse o momento em que ela abriria as pálpebras de cílios longos, imaginando o que eu sentiria quando isso de fato acontecesse. Não demorou, ou eu poderia estar apenas ansioso.
Ela acordou com os cachos castanhos amassados e em desordem, piscou os adoráveis olhos estreitos e os esfregou. Sentou e, finalmente, maravilhosamente, gloriosamente, olhou para o lado. Para mim.
Sorriu. Me capturou com as duas mãos e se afundou em todos aqueles travesseiros e babados. Abriu-me novamente. Enfiou o narizinho nas páginas e inspirou, feliz.
Depois voltou todas as minhas páginas, até a primeira. E leu.
E, céus, foi a sensação mais maravilhosa, mais superior, mais gigantesca que já foi sentida no universo, em todos eles, todos os universos.
A pequena humana lia devagar. Parecia querer saborear, absorver, entender cada palavra. Era jovem, obviamente, e quase nunca as pronunciava em voz alta. Quando o fazia, era lentamente, como se quisesse aprender sua pronúncia perfeitamente. E, depois de uma ou duas páginas, quando ela abriu a boca para pronunciar a primeira palavra que não entendera direito, eu tive a primeira amostra do maior dilema que eu viveria por toda a minha vida literária.
Quando ela disse, eu não a entendi.
Eu tinha a impressão que conhecia a palavra - afinal os livros nascem com o conhecimento de todas as palavras -, mas era como se uma parede me bloqueasse as mãos (imaginárias) e eu simplesmente não conseguia alcançar a palavra, entende-la. Minha dona a pronunciou perfeitamente, aparentemente, mas era como se algo - alguma sílaba, alguma letra - tivesse passado por mim e fugido.
Por quê? Mais algumas vezes a menininha lera outras palavras em alto e bom som, que me escapavam da mesma maneira.
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Memórias de um livro
FantasySou um livro. Um de verdade, com capa, folhas e uma história. Qual é a minha história? Eu não sei dizer pois não sei ler, mas deve ser realmente boa, logo que já fui para vários lugares e conheci várias pessoas. A vida de um livro é realmente agitad...