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Sabiamente, ela trancou a porta. Não demorou, meu antigo dono foi atrás dela, berrando que deixaria careca todas as suas bonecas, em vingança pelos seus jogos e seu quarto.

Nenhuma palavra sobre nós, seus livros negligenciados. Nenhuma sílaba.

Ele saiu, não antes de crivar um soco na porta da menina. Esta ria-se e ria-se, conosco sacudindo em seus braços, sem ligar para o irmão.

Quando conseguiu parar de gargalhar, ela pulou em sua cama, que era um exemplar perfeito do resto do quarto. Rosa e azul, cheio de babados.

Haviam brinquedos em cada canto e uma fina porém alta estante, com sua metade já ocupada por livros de todos os tamanhos e cores. Ao lado da estante um pequeno e simples piano de madeira clara se erguia, junto ao banquinho propício para o tamanho da garotinha, assim como o próprio piano. Ao lado dele, sobre o carpete rosa, estava um ampliador de som, com um smartphone acoplado. A música composta pelas teclas suaves, Waltz Op.64 No.1, de Chopin, saía dele massageando meus ouvidos de livro. Era a música preferida da garota e eu a ouviria muitas outras vezes. E isso não era nada ruim.

Ela nos colocou sobre a cama com delicadeza, um por um, formando assim um semicírculo ao seu redor. Olhou cada um de nós demoradamente. O sorriso adorável não saiu de seus lábios um instante sequer.

- Não se preocupem mais - falou ela, com aquela vozinha adorável que parecia me embalar para dormir. - Vou cuidar de vocês.

Ela se levantou, foi até uma porta no quarto e quando voltou, trazia um lenço branco. Algumas gotas de água o abandonaram enquanto ela se colocava dentre nós novamente.

Pegou um livro - grosso e marrom com letras douradas - e passou-o por toda a extensão da capa. Seu semblante ficou triste e reprovador, quando ao abrir o livro, viu manchas amarelas na folha de rosto. Ao terminar, fechou-o, se levantou e o colocou na estante. Fez isso com o próximo e depois mais um, e assim com todos, até chegar a mim.

Pegou-me e passou com leveza o lenço macio e úmido em minha capa toda. Depois abriu minhas páginas onde eu lembrava que estava aberto embaixo da cama, e espanou com a própria mão a sujeira dali.

Mas, ao terminar, ela não se levantou para me colocar na estante junto aos outros. Não, ao invés disso me olhou carinhosamente e me deitou em cima de um de seus vários travesseiros, um macio e azul. Quase no mesmo momento, a empregada apareceu e veio à chamar.

Ela se levantou, pegou uma pequena mochila laranja como o pôr do sol, com nuvens rosadas bordadas e tudo, e correu para a porta, com seus tênis fazendo ruídos no soalho, saiu e a fechou.

***

Depois de Chopin, veio Thaikovsky, em Dance of the Sugar Fairy e depois g minor Bach. Eu tinha que admitir, a garota tinha bom gosto. Eu gostava de ouvir aquelas músicas, todas que a garota gostava, todas que ela ouvia. Não eram poucas e eu gostava de ouvir cada uma delas.

- Ela sabe das coisas, não é?

A voz vinha diretamente da estante. Parecia de um garoto e de um velho sábio ao mesmo tempo. Aquela fora e é a voz mais memorável que eu já ouvi na vida.

- Sobre as músicas? - respondeu outra voz, aguda, na mesma estante, embora parecesse vir mais do alto, em uma das primeiras prateleiras. - Sim, ela realmente sabe. Ela é a melhor humana do mundo. Tiveram sorte de ter vindo para cá, assim como nós tivemos.

- Parece que sim - disse a voz memorável, que de repente pareceu imensamente triste. - Uma lástima, realmente, eu e os outros não termos vindo para cá diretamente. O outro não é legal. Devo ter passado anos sob, sob... - sua voz tremeu - sob aquela cama. Sem nunca ser lido. Sem, sem nunca... - ele gaguejou novamente, nervoso. Foi estranho uma voz tão magnífica soar tão amedrontada.

Os livros se soltaram em vários murmúrios de solidariedade e - pensei que se tivessem braços e mãos - eles estariam dando tapinhas de consolo em sua contra-capa.

- Deve ter sido tão difícil!

- Agora isso não vai mais acontecer...

- Está tudo bem agora, querido.

- Ela é ótima. Ela vai ler sua história.

Então uma voz rouca e séria interrompeu-os:

- É mais difícil do que imaginam. Eu estava a ponto da loucura. Pergunte ao jovem ali, no travesseiro. Ele já estava atravessando a tênue linha entre a lucidez e a insanidade. De fato, acho que todos nós a atravessamos.

Sim, ele tinha razão. Eu quase a atravessei. Pode parecer bobagem, mas quando aquele humano me jogou longe, para cair em qualquer lugar, senti uma dor que jamais achara possível sentir. Tão terrível quanto você pode imaginar e três vezes mais.

- Sim, foi bem ruim - falei, percebendo que eles esperavam alguma resposta. Então perguntei para as estantes*1, me lembrando de uma dúvida que me assaltou assim que as pequenas mãos da garotinha tiraram o primeiro livro debaixo da cama. - Vocês, livros do garoto, por que nunca falaram comigo? - perguntei, com amargura. - Eu estava enlouquecendo! Qualquer palavra de qualquer irmão de letras teria me feito bem!

- Ah, querido! - disse uma voz consoladora e fina, que parecia não ser usada há muito tempo. - Se conseguissemos! Mas estávamos lá há tanto tempo que perdemos nossa, digamos, humanidade. Apenas no começo falávamos, quando acabávamos de chegar. Depois, como você, nos calavámos. Nossas letras não eram lidas. Por isso, não eram pronunciadas.

Como em um tributo ao sofrimento de nós, ex-livros do garoto, os irmãos de letras na estante se calaram em um minuto de silêncio. Talvez eles fizessem ideia do que passamos, mas não passava disso. Não poderiam compreender a dor. Não uma dor daquele tamanho.

Depois do minuto prolongado, alguém, timidamente, falou e as conversas se soltaram, a cada palavra ficando mais alegres. Mas eu, que gostava de usar aquelas espertinhas que moravam em minhas folhas, não participei. O algodão macio sob mim induzia meus ombros imaginários relaxarem.

Minhas pálpebras de livro se fecharam e toda a preocupação me fugiu.

E, tenho certeza que se tivesse uma boca, eu estaria sorrindo.

*1: O negócio ruim de ser livro é que você nunca tem certeza absoluta - principalmente quando há muitos deles - para que livro você está se dirigindo ou qual deles acabou de falar.

Memórias de um livroOnde histórias criam vida. Descubra agora