— Nós vivemos afogados no pecado. Por mais que nos esforcemos para viver uma vida de retidão, tudo o que conseguimos é submergir ainda mais no mar da maldade, da promiscuidade e das coisas que desagradam a Deus. Ainda assim, o nosso pai celestial é bom. Ele sempre nos dá uma segunda chance. Uma nova oportunidade de fazer o bem e garantir a nossa parte no paraíso.
Alfredo Aquino – ou padre Alfredo, como era mais conhecido – fez uma pausa e olhou para as pessoas a sua frente. Alguns fieis abaixaram a cabeça, como se intimidados pelo olhar do religioso. Outros choravam, consumidos pela culpa, por algo que haviam feito e que sabiam que não estava de acordo com a Lei de Deus.
O fato é que eles não estavam ali para um missa. Aquele era um grupo de oração, o chamado Encontro de Cura e Libertação, que acontecia todas as segundas, quartas e sextas, das 14h até as 17h, na Paróquia Nossa Senhora de Loreto. Uma espécie de "curso intensivo" para quem precisava se livrar do pecado. E as turmas estavam sempre cheias.
— Mas vocês não devem temer o poder do inimigo. – o padre continuou, depois da breve pausa – Deus está conosco e é a Ele que vocês devem direcionar o seu temor. Só assim atingirão o perdão pelos pecados. Só assim vocês serão escolhidos. Só assim receberão as suas bênçãos que cairão do céu...
Nesse exato momento, o sino no alto da torre do relógio badalou cinco vezes e o padre parou de falar. Porém, logo que este som desapareceu, um outro som ecoou no ar. Não demorou até que todos entendessem do se tratava. Era um grito. Um murmúrio agudo, áspero e desesperador, como se viesse de alguém com a vida por um fio. E de fato vinha.
As pessoas olharam pela gigantesca porta escancarada a tempo de ver o vulto cortando o ar. O grito foi finalizado com um grito ainda maior e depois um estrondo. Um corpo despencou dos céus e se chocou com violência no chão cinzento, espalhando sangue, pedaços de carne e ossos para todos os lados.
O pânico tomou conta da Casa de Deus. Enquanto alguns fieis choravam tapando os próprios olhos e os dos filhos, outros vomitavam. Alguns tentavam fugir pelas portas laterais, mas elas estavam trancadas. A maioria deles ainda conseguiu ouvir o último suspiro do homem que havia caído do céu.
— Perdão... Meu Deus... – ele disse. Então a sua voz se calou para sempre
***
A perita criminal Maria Clara descobriu o corpo lentamente. Rocha se aproximou e observou com cuidado, ao mesmo tempo que acendia um cigarro. Depois guardou o isqueiro no bolso e pegou do mesmo lugar um bloco de notas e uma caneta.
— Então ele caiu do céu? – disse o investigador, com um certo tom de desdém.
— É o que estão dizendo. – a perita respondeu – Pelo estado das lesões, não há dúvida de que ele caiu de uma grande altura. Também é certo que ele estava vivo no momento da queda. Algumas das testemunhas o ouviram gritar enquanto caia.
— Talvez o céu esteja cheio demais e Deus decidiu mandar alguns de volta...
— Rocha... – Maria franziu o cenho – Tenha um pouco de respeito.
— Quem é o responsável pela igreja? – Rocha perguntou, depois de anotar no bloco que a vítima morreu devido à queda.
— O padre Alfredo. Ele está ali.
— Algum outro indício de violência?
— Talvez. Preciso mandar algumas amostras para o laboratório para ter certeza, mas, como os pés e as mãos da vítima estão amarrados, é provável que ele tenha sofrido algum tipo de agressão física antes da queda. Não encontrei nenhum indício de ferimento por arma de fogo.
— Obrigado. – o investigador caminhou até o padre, que estava sentado em um banco de madeira. Havia um pequeno jardim no pátio em frente à igreja e os clérigos haviam aproveitado o espaço, colocando alguns bancos de praça e um pequeno chafariz. O padre se levantou e o cumprimentou quando ele se aproximou. – Eu sou o investigador Pedro Rocha e vou conduzir este caso.
— Muito prazer, policial.
— O senhor conhecia a vítima?
— Sim, claro... – o padre respondeu. Ele parecia muito abalado – É o padre Fernando. Oh, meu Deus, não tem como não reconhecer, mesmo ele estando... Daquele jeito. Só ele usa aqueles tênis...
Rocha olhou para trás e viu um dos pés da vítima que o vento teimava em mostrar, mesmo com o plástico que Maria Clara havia colocado sobre o corpo. O tênis verde fluorescente era muito marcante mesmo.
— Entendo. Quando foi a última vez que o senhor viu o padre Fernando com vida?
— Hoje pela manhã. Ele sempre saía para correr as sete. Eu o vi sair enquanto realizava as minhas orações, mas não vi a hora em que voltou.
— Ele tinha algum inimigo ou alguém que pudesse desejar a sua morte?
— Não, claro que não. – o padre pareceu se irritar com a pergunta – Ele era um homem de Deus, assim como eu. Nós não temos inimigos. Não vivemos nossas vidas para as coisas desse mundo.
— Pode até ser, mas o seu amigo está morto, padre. – Rocha disse – E eu tenho certeza que foi alguém deste mundo que o matou.
O padre abaixou a cabeça e começou a chorar.
— Certo... – Rocha anotou um número no bloco, arrancou a folha e entregou ao padre – Se conseguir se lembrar de mais alguma coisa, me ligue. Eu vou analisar o telhado agora. Alguém pode me acompanhar?
O investigador seguiu o zelador da paróquia por um corredor estreito que dava acesso a uma longa escadaria de madeira. Rocha subiu os degraus apressadamente, acompanhado de perto por Maria Clara e um outro perito da Polícia Científica.
A escada os colocou diante de uma pequena porta de madeira que, por sua vez, dava acesso a um sótão empoeirado. Dentro dele havia centenas de caixas de papelão, estátuas de santos e anjos e objetos estranhos. Também havia alguns sacos de ração para cachorros e remédios de utilização veterinária. Todo o local era iluminado apenas pelos raios de sol que entravam por uma ampla janela.
— Ele foi jogado daqui? – Rocha perguntou.
— Acreditamos que sim. – Maria respondeu – O assassino precisaria se esforçar muito para subir até o telhado já que não há escadas de acesso fixas. Mas temos certeza que foi por aqui e isso é uma sorte para nós. A poeira nos forneceu muitas pistas. – Ela apontou para os passos visíveis no chão, marcados na grossa camada de pó.
Rocha caminhou até a janela, a abriu e então enfiou a cabeça por entre a abertura, esforçando-se ao máximo para ver a cena do crime. Viu o corpo do padre coberto pelo plástico preto lá embaixo. Certamente ele havia sido jogado por aquela janela. Os policiais acabavam de interrogar os fieis que estavam na igreja no momento da queda e uma pequena multidão de curiosos já se formava atrás das faixas de contenção.
O investigador sentiu uma vertigem e teve certeza de que aquela era a hora de colocar a cabeça de volta para dentro do cômodo. Enquanto voltava, viu os ponteiros do enorme relógio logo abaixo da janela.
— O assassino deve ter tido muito trabalho para fazer com que a vítima não acertasse esses ponteiros. – ele disse enquanto fechava a janela.
— Quer que eu analise o relógio para saber se ele bateu lá? – Maria perguntou.
— Sim.
— Há sinais de luta aqui. – disse o perito que havia subido com eles. Rocha e Maria caminharam até o homem, que estava do outro lado da sala, analisando as marcas no chão.
— O que tem aí, Vicente? – Maria perguntou quando eles chegaram perto.
— Passos por toda parte, além de arranhões no chão, provavelmente causados pelos calçados da vítima ou do agressor. – o perito respondeu – Também encontrei uma marca estranha... É bem provável que seja sangue.
— Peça os exames e me dê uma certeza. – Rocha disse – Preciso voltar para a delegacia.
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O Padre que Caiu do Céu
Mystery / ThrillerUm conto de Matheus Prado. Durante uma missa, um dos padres da Paróquia Nossa Senhora de Loreto é brutalmente assassinado, jogado do alto da torre da igreja. Para solucionar esse misterioso crime, a Policia Civil envia o investigador Pedro Rocha, um...