Capítulo 1 | degustação

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Poucas coisas na vida são tão complexas quanto mudanças.

Mas Rafaela ainda se lembrava. Estava deitada em sua cama, logo após um longo e cansativo dia na terceira série. Os cachos compridos espalhados pela cama e as pernas curtas que balançavam no mesmo ritmo de uma música que tocava em seu fone de ouvido. Ela sorriu, satisfeita, ao observar o teto cor de rosa, cheio de flores sintéticas de diferentes tipos e tamanhos. Agradeceu mentalmente por ter uma mãe tão criativa. Ela, definitivamente, amava aquele quarto, sua estante de livros, sua cama confortável e as flores que brilhavam no escuro. Não fazia ideia onde ela tinha as encontrado, mas era um sucesso entre suas amigas — apenas uma, na verdade, mas Jaqueline valia por dez — e, ali, ela tinha certeza: aquele seria seu quarto pra sempre!

O problema é que quando se tem 8 anos, sempre parece ser a palavra adequada para usar com qualquer tipo de coisa que você goste muito. Com dezessete, é uma sentença de morte.

As memórias ainda rodavam a sua mente enquanto subia a escada de madeira meio bamba, com a sua mãe segurando a base dela para que não caísse, ao mesmo tempo em que recitava todas as palavras que poderiam demonstrar tamanha insatisfação na decisão de reformar o quarto.

A verdade é que planejar, nem sempre significa realizar. E aquilo não era apenas sobre as flores no teto.

É claro que elas tinham história, mas faziam parte de uma Rafaela sem noção nenhuma de design e que acreditava que todas as escolhas de sua mãe eram perfeitas — pobre criança iludida. Ali, naquela quarta-feira, ela era apenas uma adolescente entrando em sua era clean e um quarto cor de rosa não fazia parte do seu aesthetic.

— Joga tudo que eu te dei fora, arranca o meu coração também! — dramatizou a mãe, com a mão no peito e os pés batendo no chão com força. Por um segundo, Rafaela cogitou a possibilidade de enviar um e-mail para o Oscar informando que a mais nova dona da estatueta estava bem na sua frente.

Respirando fundo, a garota ignorou as birras da progenitora e arrancou, uma por uma, cada flor colorida e cheia de poeira que estavam coladas com sei-lá-o-que no teto do quarto. Por fim, fitou a parede que possuía imagens de princesas e sapatinhos de cristais que, em breve, se tornariam a mais bela tela branca.

Enquanto descia as escadas, satisfeita com o resultado, sorriu para a mãe que continuava a encarando com o semblante mais triste que conseguia fazer. Depositou um beijo estalado em sua bochecha e começou a tirar a escada do meio do quarto.

— Vou ao cinema com a Jaque e os meninos — informou, mesmo que ela já soubesse. Aquele era o ritual particular do quarteto: toda quarta-feira iam ao cinema, aproveitando o projeto da escola que os presenteava com ingressos grátis uma vez por semana. — Esse estresse todo vai te dar rugas, Dona Helena — alertou, enquanto caminhava até a cama para pegar a sua mochila. A mulher revirou os olhos e cruzou os braços, indignada por ouvir o seu segundo nome. Preferia ser chamada de Maria. "Me dá credibilidade", dizia.

Quando chegou ao ponto de ônibus, Jaqueline já a esperava, com seu cabelo loiro bem penteado, fones de ouvido e a cabeça balançando de um lado para o outro no ritmo da música. Folheando um livro de romance clichê com um sorriso bobo no rosto, a loira não notou a melhor amiga se aproximar.

— Buh — brincou Rafaela, puxando um dos fones da sua orelha. Ao invés de se assustar, a loira abriu um sorriso e virou-se no banco desconfortável, ficando de frente para a amiga.

— Que bom que você chegou! — Jaque fechou o livro que tinha nas mãos e bateu palminhas — precisava mesmo te pedir um favorzinho — cantarolou, ao mesmo tempo que Rafa sentiu o coração acelerar. Lá vinha bomba. Ela só usava aquele sorrisinho quando precisava de alguém para segurar vela em mais um de seus encontros com caras de personalidade questionável.

Número Desconhecido | Degustação Onde histórias criam vida. Descubra agora