dois

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"Anda, vou levar-te a casa." disse eu, enquanto ele me abraçava.
"Não, não quero." protestou ele com a voz fraca.
"Anda lá."
"Por favor." suplicou ele.
Suspirei.
"Então...vamos para a minha casa."
"Pode ser."

*****

Deitou-se na minha cama a olhar para o teto. Começou a limpar as lágrimas com as pontas da camisola. Caminhei até ele e limpei-lhe a cara com uns lenços ridículos que comprei uns meses atrás numa loja de rua.

"Gosto desses lenços." disse ele com voz rouca.
"Fica com eles." abri uma gaveta para tirar os pacotes de lenços ridículos para lhe dar.
"Não os quero. São meio ridículos."
"Tudo bem. Eu guardo-os para limpar as tuas lágrimas sempre que chorares por causa da princesinha."
Suspirou.
"Tens o número dela?" perguntei eu.
"O quê? Porquê?" perguntou ele confuso.
"Liga-lhe. Diz-lhe o que sentes."
"Não. Não vou fazer isso esquece."
"Porquê? Vais perdê-la. Abre os olhos. Vais perdê-la! Vais perder a princesinha para um miúdo que não presta." gritei eu.
"Tem calma! E o nome dela não é princesinha."
"Vais perdê-la."
"Não lhe vou ligar. Não estou em condições para lhe ligar e mesmo que estivesse não o faria. Estou contigo agora. Foste tu que me trouxeste para tua casa não ela. És tu que estás sempre lá quando eu preciso não ela."
"Primeiro, tu não querias ir para tua casa, não te ia deixar no meio do jardim a chorar. Segundo, tu literalmente forçaste-te na minha vida, não tenho alternativa senão estar lá para ti." declarei eu como se fosse óbvio.

Ele sorriu. Aquele sorriso que podia parar uma cidade inteira. Ele sorria com o corpo todo abria muito a boca, os olhos brilhavam e fechavam-se um bocadinho, o seu nariz subia um bocadinho e depois subtilmente passava a mão pelo cabelo. Quando estava com a princesinha era diferente. Ele tentava abrir mais os olhos certamente para parecer mais adorável, o seu nariz enrugava-se, as suas sobrancelhas faziam uma dança esquisita e depois passava uma mão pelo ombro dela. Parecia tudo mais pessoal com ela. Havia mais afeto e carinho.

"O que é que vocês veem nela?" perguntei de repente.
"Quem?"
"A princesinha, duh!" disse eu.
"Já me perguntaste isso e eu já te respondi."
"Eu sou quero perceber o que é que ela tem de especial. Sinceramente não percebo."
"Ela...é tão fácil falar com ela. É tão divertida, é cativante...meu deus! Não é exatamente algo fácil de explicar. Ela gosta de toda a gente, não é má, não tem uma única pontada de mal no corpo. É tão refrescante tê-la por perto. Ela nem se apercebe que faríamos tudo por ela." disse ele de uma só vez.
"Eu não faria nada por ela." disse eu com indiferença.
"Mas tu...és tu. Não farias nada por ninguém. Mesmo que pudesses não o farias."

Não disse nada. Aquelas palavras irritavam-me. Eu faria tudo por ele. Eu faço tudo por ele. Deixava-o sempre dormir do meu lado da cama. Guardava sempre uma fatia dos bolos da minha mãe porque eu sabia quanto ele os adorava. Por amor de deus! Eu estava a consola-lo, pela primeira vez na minha vida eu estava a consolar alguém sem protestar!
"Eu faria tudo por ti."
"Eu sei. Desculpa." Disse ele baixinho.

O silêncio apoderou-se de nós mais uma vez. Parecia que era a única coisa que sabíamos fazer desde que a princesinha tinha entrado nas nossas vidas. Acho que ele esgotava a conversa toda com ela. Isso deixava-me furiosa. Extremamente furiosa. Ela estava a mudá-lo e isso deixava-me para lá de furiosa.

"Tens ciúmes dela?" perguntou ele sem olhar para mim. De repente parecia-me tão distante, provavelmente já estava farto de mim, como toda a gente.
"Estás farto de mim?" perguntei num sussurro.
"Não. Não necessariamente. Só não és uma pessoa com quem é fácil lidar. Tens ciúmes dela?" continuou ele sem olhar para mim.
"Hmm...talvez..." a minha voz fraquejou.

Ele olhou para mim. Mas olhou mesmo. Não me olhou com um olhar vazio. Olhou-me com um olhar cheio de mistério. Pela primeira vez na minha vida não o consegui decifrar. Não sabia se ele iria sorrir e passar a mão pelo cabelo, chorar e agarrar-se à minha almofada ou simplesmente continuar a olhar para mim.

"Porquê?" Sussurrou ele. Enfiou as mãos dentro das mangas da camisola e sentou-se ao meu lado na cama. Pegou nas minhas mãos e colocou-as onde as suas estavam, dentro das mangas da sua camisola. Costumávamos fazer isto quando éramos mais novos e um de nós tinha uma má nota num teste.
"Porque não sou ela." sussurrei eu.
"Não precisas de ser, continuo a ser teu amigo." disse ele um pouco confuso.
"Não é bem isso." disse eu no tom de voz mais baixo que conseguia produzir. Mesmo assim ele ouviu.
"Não vou desistir de ti. Prometo-te isso. Não me vou embora." declarou com convicção.
"Não...é isso."
"Então o que é?" disse ele com ternura.
"É que...estou habituada a ter sempre a tua atenção." Sussurrei eu envergonhada por ter admitido algo assim. No entanto, não lhe contei todo o porquê. Era demasiado pessoal.
"Mas...tu tens sempre a minha atenção."
"Dás-lhe imensa atenção. Já não é a mesma coisa. Eu sei que tu vais conhecer pessoas novas e que provavelmente vais passar mais tempo com elas do que comigo. Eu sou chata, percebo isso. Mas...não gosto mesmo dela."
"Disseste-me para eu lhe ligar. O que foi isso?" perguntou ele confuso.
"Não te queria ver a chorar mais. Pensava que se lhe ligasses ficavas melhor."
"Nem lhe liguei."
"Eu sei." disse eu com um sorriso egoísta no rosto.

Ele sorriu. Aquele sorriso que podia parar uma cidade inteira. Em vez de tocar no cabelo dele tocou no meu.

"É que...eu não gosto mesmo dela." sussurrei e encostei a minha cabeça no seu ombro.

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⏰ Última atualização: Nov 15, 2015 ⏰

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