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"A cafetaria do bairro cheira a café." dizia eu.
"Claro que cheira a café é uma cafetaria. A que é que haveria de cheirar." dizia ele com ternura na voz.
"Não sei. Não necessariamente a café. Poderia cheirar a suor ou a ambientador. Nunca se sabe. Com a quantidade de pessoas que entram lá, podia cheirar a qualquer coisa."
"É verdade. Tens toda a razão. Mas...já reparaste na quantidade de cafés que são feitos por dia."
"Já. Imensos."
"Então..."
"Então o quê? Não sejas complicado!"
"És engraçada." riu-se ele.
"Não sei o que te disse para começares a rir-te de mim, mas agradecia que parasses. Estás a irritar-me." dizia eu furiosa.
"Tudo bem. Parei. Bem...mudando de assunto. Falaste com ele?" ficou nervoso de repente.
"Com quem?" inquiri eu. Sabia muito bem de quem ele estava a falar, no entanto, adorava os momentos em que ele ficava nervoso e quase que não conseguia articular palavras.
"Com...ele."conseguia ver as gotas de suor na sua testa. Era um exagerado.
"Ahh...sim falei" disse tranquila.
"E?" perguntou esperançoso.
"E..."
"E...ele gosta dela ou não?" perguntou ansioso.
"Hmm...não sei."
"Como assim...não sabes." estava demasiado ansioso para o meu gosto.
"Não sei! Perguntei-lhe, juro que o fiz. Ele sorriu feito tolo e negou. Pensei por uns momentos que ele gostava dela, mas ele nunca me levou a sério. Podem simplesmente ser muito amigos ou até serem familiares. Um sorriso daqueles não quer dizer que está apaixonado."
"Aposto que gosta dela. Aposto e ganho. Que raiva!" gritou ele.
"Tem calma!- nunca fui de o acalmar, eu sempre fui o fogo e ele a água.- Cada pessoa ama de maneira diferente! Um sorriso não significa nada!" tinha um nó na garganta e no estômago. Apetecia-me vomitar e chorar. Se ele continuasse a gritar tinha a certeza que eu ia começar a chorar. Nunca fui assim, à frente dele, mas quando ele saía do meu campo de visão a torneira nos meus olhos abria-se. Este assunto deixava-me especialmente fragilizada.

Durante muito tempo ele não falou, não produziu nenhum som. Ficou a olhar para os meus olhos. Toquei neles com medo de estar a chorar. Não estava. Desviei o olhar, estava a deixar-me desconfortável. Olhei para as minhas mãos, tinha as unhas pintadas de preto, quer dizer, estavam pintadas de preto há alguns dias atrás, agora só eram pedaços de verniz preto aqui e ali. Voltei a olhar para ele, tinha os olhos marejados de lágrimas. Forcei-me a falar.

"O que é que vocês veem nela?" disse eu calmamente.
"É bonita." disse ele num sussurro.
"Ela é bonita?"
"Não. É bonita, divertida, tão simpática, tem o sorriso mais bonito que eu vi na minha vida. Aliás, ela nem é assim tão bonita mas é linda por dentro." disse vagarosamente como se ela fosse uma droga e ele estava viciado.
"Ou seja, tudo o que eu não sou." falei sem emoção.
"Não te compares a ela." pediu ele fragilmente.
"Porquê? Não perco nada. Ela soa-me muito a menina perfeita. Mais vale comparar-me com ela e aprender um pouco." disse já furiosa.
"Não mudes." pediu muito baixo, quase para eu não ouvir.
"Nunca disse que ia mudar. Comparei-me à princesinha, não disse que ia mudar. Deus me livre! Estou bem no meu canto. Já cá me faltava começar a ser amigável!"

Ele não disse nada, limitou-se a olhar para os seus ténis novos. Comecei a examiná-lo, o seu cabelo por cortar, os seus olhos cheios de lágrimas, a sua camisola com a ocasional mancha de café, as suas calças rasgadas que eu lhe tinha oferecido de presente no Natal porque lhe davam um ar selvagem, os seus ténis novos sem uma única mancha que ele tinha comprado provavelmente para agradar a princesinha.

"Compraste os ténis para agradar a princesinha?"
"A princesinha?" perguntou ele confuso, sem olhar para mim.
"A rapariguinha de quem tu gostas."
"Ah...- disse ele fragilmente- não. Comprei-os porque me lembravam de ti." disse ele envergonhado.
"São giros. São mesmo giros. Desculpa não queria soar rude."
"Wow! Obrigada! É a primeira vez que me pedes desculpa e me elogias! Wow!"
"Pois...está bem."
"Pois."
"É por isto que eu não elogio ninguém, ficasse sem conversa, fica esta tensão estranha no ar, ninguém sabe o que dizer. Eu não sou simpática, okay? Não te volto a elogiar, esquece. Não volta a acontecer."

Ficou calado, outra vez. Examinei-o mais uma vez, as mãos estavam a tremer, o que significava que a qualquer momento ia começar a chorar. Ele era assim, sempre que as mãos tremiam estava prestes a chorar. Nunca o vi a começar a chorar à minha frente, mas já o tinha apanhado a chorar agarrado ao seu urso de peluche antigo, na minha cama, à meia-noite, depois de eu ter ido à casa de banho. Presumi que ele tinha entrado pela janela, mas, de manhã, quando acordei  encontrei-o sentado na bancada da cozinha a tomar o pequeno-almoço, com os olhos vermelhos, com a minha mãe  a dar-lhe festas na cabeça e a dizer-lhe que lhe abriria a porta a qualquer altura da noite se ele precisasse.
As mãos dele pararam de tremer, eu olhei para a cara dele. Estava a chorar, era um choro silencioso e doloroso. Peguei na sua mão e apertei-a. Ele quase saltou por cima da mesa para me abraçar.

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