capítulo 4

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Capítulo 4
Descendo pela Privada
David largou sua bolsa. Ele enfiou as duas mãos dela, puxou uma longa adaga de
prata com sua mão direita e agarrou um brilhante orbe branco com a outra.
— Kara, mova-se!
Mas ela não conseguia. Colada em seu lugar, o corpo de Kara de
repente havia ficado frio como o gelo, como se a temperatura no ambiente
houvesse baixado uns 7 graus. Enfraquecida pela maldade que a criatura
emanava, Kara sentiu mãos geladas dela se comprimirem ao redor de seu
pescoço, sufocando-lhe a vida.
— O que está acontecendo? — Ela levou as mãos até a garganta e sentiu
o peso do demônio puxando-a para baixo. Trevas se ocultavam dentro dela,
ameaçando consumir a sua mente.
Mas Kara não deixaria que este horrível demônio a matasse. Ela era
mais forte do que isto. Com sua força interior, ela fez um esforço e lutou contra
este mal. Depois de um tempo, o frio a libertou e se dissipou.
— Rápido... Atrás de mim! — David empurrou Kara com força para o
chão. Ele correu sobre ela e se postou no meio da sala, movendo diante de si suas
armas.
Naquele momento, a Sra. Wilkins resolveu participar da diversão.
— O que é toda esta bagunça? — Ela berrou, enquanto voltava pelo
corredor entre David e Kara. Primeiro, ela viu David, que estava segurando uma
enorme adaga, então ela voltou sua atenção para Kara, pálida no chão, a alguns
metros atrás dele.
— Deus do Céu! — Berrou a Sra. Wilkins, encolhendo-se contra a
parede — o que você está tentando fazer com esta faca?! — ela gritou. — Você
vai nos matar... arrancar as nossas vísceras e vendê-las no mercado negro? —
Ela guinchou, enquanto apertava com os dedos o próprio peito.
— Senhora, estamos aqui para protegê-la! — gritou David, com os olhos fixos na sombra.
A Sra. Wilkins acompanhou a direção do olhar de David e viu o demônio
no final do corredor. Ela soltou um ganido. Assumindo uma forma sólida por um
momento, o demônio revelou seu verdadeiro eu, uma essência pútrida de
monstros entrelaçados. Tentáculos verminosos formavam pernas que ele usava
para se propelir adiante. Ele cintilou antes de voltar para sua névoa negra.
— Volte para o Submundo, demônio das sombras! — David empunhava
o orbe branco à sua frente. Raios brilhantes de luz branca eram disparados desde
o orbe. Eles voaram diretamente para o demônio das sombras. Atingiram-no. O
demônio liberou um grito de estourar os tímpanos, enquanto sua forma sólida
reaparecia, coberta em luz. Em convulsão, ele cintilou e voltou para a nuvem
negra, então desapareceu.
— Kara! — gritou David ao se virar e olhar para ela. — Leve a Sra.
Wilkins para fora... rápido... antes que mais demônios venham!
Kara piscou. Ela encarou o rosto de David, com seus pés colados no
chão. Imagens de demônios passaram por sua cabeça... seus sonhos infantis
eram reais. Sua mãe estava contando a verdade todo o tempo. O demônio que
atormentava Kara em seus sonhos, de tempo em tempos, havia acabado de
aparecer a poucos metros dela. Ela se libertou do transe e se esforçou para
concentrar-se nas palavras de David. Ela tinha de fazer alguma coisa. O corpo da
Sra. Wilkins estava tremendo, o rosto dela contorcido em completo terror e
surpresa. Ela precisava da ajuda de Kara. Afinal de contas, Kara era a guardiã.
Compelida a fazer a coisa certa, ela se levantou e pulou em direção à Sra.
Wilkins, tropeçou e caiu de cara. Ops.
A Sra. Wilkins, por outro lado, decidiu se mover. Pisoteando sobre Kara,
ela cambaleou para a cozinha, gritando como uma assombração.
— Kara! — David berrou, ao ver a Sra. Wilkins perambulando pelo
território perigoso. — A Sra. Wilkins está na cozinha! A lavadora de louça!
Mantenha-a longe dela!
Um calafrio percorreu o traje M de Kara quando ela sentiu a
temperatura do ambiente cair novamente. Ela ergueu a cabeça do chão e
hesitou, enquanto outro demônio da sombra apareceu atrás de David.
— DAVID! ATRÁS DE VOCÊ! — Ela apontou para a criatura
corrompida. O demônio das sombras cintilou de novo para uma névoa e agarrou
David por trás, envolvendo-o em uma nuvem negra. Por um momento, Kara
pensou que o demônio o devoraria — não havia nada mais do que um nevoeiro
branco onde David estava. De repente, a criatura se materializou de volta para
sua forma verdadeira e David apareceu. Ele saltou no ar, enquanto lutava com o
demônio das sombras com a sua adaga, esfaqueando e decepando partes da
criatura. Líquido negro espirrava nas paredes.
— Vá... até... a Sra.... Wilkins... — ele ofegava ao lutar contra o
demônio.
— Certo! — disse Kara. Ela tinha de tentar manter a senhora longe da
lavadora. Ela se debateu para se levantar e cambaleou até a cozinha. Ela avistou
a Sra. Wilkins escondida debaixo da mesa da cozinha, rezando.
Kara caiu de joelhos, a centímetros da mesa.
— Sra. Wilkins, venha, venha comigo... temos de sair da daqui! — Ela
segurou o enrugado braço da velha e puxou. — Por favor, temos de ir! — Ela
exortou.
Mas a Sra. Wilkins não se movia. Com seus olhos arregalados, ela só se
balançava para frente e para trás, rezando em silêncio. Kara podia escutar David
ainda lutando com o demônio das sombras. Ela sabia que tinham de se mover
rápido dali. Com as mãos, ela tentou arrastar a Sra. Wilkins, puxando o mais forte
que podia. Mas nada aconteceu. Kara não conseguia puxá-la de sob a mesa.
E quando Kara pensou que as coisas não poderiam ficar piores, ela
sentiu um calafrio quando outro demônio das sombras se materializou na cozinha,
a cinquenta centímetros do rosto choroso da Sra. Wilkins. Negros tentáculos
nojentos em forma de nuvem tremularam pelo chão da cozinha, deslizando até
elas. A Sra, Wilkins gritou e correu de sob a mesa da cozinha, lançando cadeiras e
Kara voou para trás, chocando-se contra a parede.
Kara observava os eventos que ocorriam como se ela estivesse
assistindo a um filme em câmera lenta. A Sra. Wilkins saiu de sob a mesa da
cozinha, escorregou e voou cinquenta centímetros no ar. O corpo dela planou por
um momento — e se chocou com a cara primeiro contra a porta aberta da
lavadora. Com um barulho alto, a porta da lavadora caiu de suas dobradiças e se
achatou com o peso da Sra. Wilkins.
Kara olhava fixamente a Sra. Wilkins, com boca escancarada, caída com os braços abertos no chão da cozinha, com as facas fincadas em seu escalpo
ensanguentado. O olho intocado dela estava fixo em Kara, acusador, como se
fosse a culpa dela. Após um momento, o corpo da mulher reluziu, como se a pele
houvesse sido pintada com milhões de pequenos diamantes. Então os diamantes
se soltaram e planaram sobre o corpo, lentamente se unindo em uma bola de luz,
como um diminuto sol.
Alguma coisa se moveu na visão periférica de Kara. Ao se virar, ela
assistiu em horror o demônio da sombra rastejando em direção à mulher morta.
Sem pensar, ela se levantou e correu em direção à bola de luz; algo dentro dela
lhe dizia para protegê-la. Mas após três passos, ela sentiu algo segurar o seu pé
esquerdo. Ela caiu de cara no chão. Então o seu corpo foi erguido no ar pelo pé e
arremessado pelo cômodo. Ela acertou a parede com violência e caiu com força
no chão. Kara lutou para se reerguer e virou rapidamente a cabeça. Uma
polpuda massa de carne com veias expostas deslizou pelo chão da cozinha.
Tentáculos vermelho-sangue avançaram, como um enorme polvo. Múltiplas
cabeças e bocas com dentes afiadíssimos cobriam o corpo. O demônio ignorou
Kara e rastejou em direção à Sra. Wilkins.
Rígida como uma estátua, Kara assistia em horror como os tentáculos da
criatura se enrolaram ao redor dos pés da mulher, que se projetou para cima, a
centímetros da bola de luz. Sua figura disforme se enrolou sobre o corpo morto
da mulher. Seu toque corrompeu o corpo dela, e sua pele se tornou
imediatamente negra e apodrecida, descascando. O demônio das sombras se
encaminhou em direção à luz.
— NÃÃÃÃÃO!!! — urrou David, aparecendo repentinamente na porta,
e correu em direção à Sra. Wilkins.
Mas era tarde demais.
O demônio das sombras brilhou e cresceu. Então, ele se lançou para
frente, engolindo completamente a bola de luz, e desapareceu.
David correu até a Sra. Wilkins e olhou para seu corpo enegrecido.
— Oh... isto não é nada bom — Ele caiu de joelhos. — Perdemos esta
alma. Vou levar uma bronca — ele disse, estreitando os olhos. — EU ODEIO os
demônios! EU ODEIO ELES!
Ele se levantou e começou a chutar a lavadora de louças. O corpo
murcho da Sra. Wilkins sacolejava sobre a porta. Uma meleca preta pingava dos cantos de sua boca.
David balançou a cabeça.
— Só um momento... Não entendo. Como eles chegaram tão
rapidamente aqui? Não faz sentido algum.
— O que... O que você quer dizer? David, do que você está falando?
— Os demônios. Eles nunca aparecem tão rapidamente. É como... se
eles soubessem que estaríamos aqui.
Depois de um instante, ele olhou para Kara com um olhar incendiado.
— Temos de sair daqui! — Ele parou por um momento, então correu até
a cozinha e desapareceu no banheiro, deixando Kara observando-o boquiaberta.
— Rápido, por aqui! — gritou David desde a porta do banheiro. — Está
limpo — Ele desapareceu dentro do banheiro.
— Caramba... Não estou com um bom pressentimento quanto a isto! —
Kara se esforçou para se levantar. — Ai! — ela sentiu uma dor aguda em seu
tornozelo direito. Ela ergueu a perna da calça. Uma pequena marca preta na
forma de uma teia de aranha havia sido traçada em seu tornozelo. — Que m...?
— Ela esfregou seu dedo por ela e não sentiu desconforto. A dor havia passado.
Ela desenrolou a perna da calça para baixo e partiu atrás de David.
Quando ela chegou à porta do banheiro, David estava ajoelhado diante
da privada, tendo convulsões, mas ele não estava pondo pra fora suas tripas não-
existentes. Ao invés disto, enfurecido, ele revirava os conteúdos de sua bolsa e
puxou uma pasta. Ele o jogou no rosto de Kara.
— Aqui, pegue isto... você vai precisar. Estamos indo para o Nível
Quatro. Teremos de contar para eles que perdemos uma alma!
Kara fitava seus sapatos, sentindo-se péssima. Ela não estava totalmente
certa do que isto significava, ou o que ela havia feito, mas pela expressão maluca
no rosto de David, ela imaginou que perder uma alma era muito ruim.
— Sinto muito — ela conseguiu resmungar. — Eu... eu tropecei, então
não consegui puxá-la. Continuei puxando e puxando, então tropecei de novo e o
demônio...
— Não se preocupe com isto — David se endireitou e lançou a bolsa de
volta por sobre o ombro. — Agora mesmo, a melhor coisa que devemos fazer é
sair daqui. — Ele ergueu a tampa da privada com seu pé. Ele deu uma olhada
para Kara e inclinou sua cabeça em direção à privada. — Você vai primeiro, eu cubro você. —
Ele deu um pulo e parou na porta com um ar de protetor, observando.
— O quê? O que você está fazendo? — gritou Kara, atônita, com os
olhos saltando da cara. — Você não quer que eu... você não pode estar falando a
sério. Isto é nojento!
David se virou para encará-la e disse abruptamente.
— Nós realmente não temos tempo para isto! Você não percebeu que há
demônios aqui? Olá?
Kara piscou.
— Você é louco... não, você é insano! De jeito algum eu vou tocar nisto.
É nojento!
— É o que me dizem — David virou a cabeça e observou o corredor,
então se virou para Kara e seus olhos se encontraram. — Eu preciso que você
mergulhe sua cabeça na água, e não vou esperar para lhe dar um banho. Você
realmente quer esperar e ver se os demônios das sombras decidem retornar?
Kara se inclinou em direção à privada e ergueu a mão à boca.
— Mas aí tem... aí tem resíduos da velha... — Ela fez uma careta
enquanto espiava a água amarela e o pegajoso anel marrom ao redor do interior.
— Sério, você não pode pôr sua cabeça aí!
David suspirou alto, enquanto baixava os ombros e olhava para o teto.
— Você não vai pegar uma doença ou outra coisa, garota, você está
morta. Você vai se habituar a isto. Esta é a sua nova carreira. Rápido... Estarei
logo atrás de você. — Ele se aproximou e a posicionou perto da privada.
— Espere! — disse Kara, desesperadamente. — O que acontece se eu
puser minha cabeça a... a... aí? — Ela apontou para a privada.
— Você estará de volta a Horizonte, a caminho para o Nível Quatro —
disse David após uma longa pausa. — Você estará a salvo. Vamos embora, vai!
— Ele a empurrou para frente.
Um barulho alto veio da cozinha.
Kara torceu o nariz. Ela se virou e olhou David com olhos arregalados.
Ele pulou para o corredor, com sua adaga presa em sua mão. Kara tensionou
suas pernas e caminhou para a porta. Enfiando a sua cabeça trêmula para fora
da porta do banheiro, ela percebeu que o barulho era apenas o corpo murcho da
Sra. Wilkins escorrendo alguns centímetros para fora da porta da lavadora.
Kara estremeceu.
— David... os... os demônios... eles podem voltar. Eles podem sugar as
nossas almas...
David pulou de volta para o banheiro e empurrou Kara em direção à
privada.
— Tudo bem. Já deu. Não me faça enfiá-la aí. — Ele ergueu um
sobrancelha. — Eu farei isto, se for necessário... Acredite em mim.
Kara cambaleou e olhou para a privada vazia.
— Não acredito que estou prestes a fazer... o que estou prestes a fazer.
Precisamos da água... certo?
Ela apertou a pasta contra o peito.
— Não posso pegar nada. Já estou morta. — Ela fechou os olhos. — Isto
aqui tem cheiro de rosas... grandes rosas lindas... como a casa da Vovó. — Kara
fechou o nariz com os dedos, enfiou a cabeça na privada, sentiu suas milhões de
moléculas se separarem e desapareceu.

Marcada,guardiões De AlmasOnde histórias criam vida. Descubra agora