Orientação
Kara despencou de barriga sobre uma fria superfície de pedra. Com a cara
colada no chão, ela ergueu um sobrancelha. O chão vibrava contra sua
bochecha. Ela se encolheu quando ruídos caóticos atingiram seus ouvidos, como
se milhares de vozes estivessem falando ao mesmo tempo.
Cuidadosamente, ela ergueu a cabeça do chão e olhou ao redor. Seu
queixo caiu.
Ela estava cercada por pessoas. Ao lançar-se de pé, viu que elas
estavam reunidas dentro de um salão de assembleia do tamanho de dez campos
de futebol. Filas de pessoas de todas as formas, tamanhos e etnias emaranhadas
por um labirinto de escritórios e corredores. O ar estava úmido e tinha
perceptível odor de oceano.
Kara se virou bem a tempo para ver o elevador com o chimpanzé 5M51
desaparecer de voltar na terra. "Bem, aí se vai um macaco de quem não vou
sentir falta", ela resmungou para si.
A comoção era mais alta do que se fosse um show de rock. Kara
apertou suas mãos sobre os ouvidos. Havia milhares de pessoas e todas estavam
mortas... como ela. Elas empurravam e se acotovelavam umas às outras,
ansiosas para chegarem ao começo da fila. Isto não era exatamente como ela
imaginava a vida após a morte, ou sequer a morte. Ela tinha apenas dezesseis
anos e se sentia invencível.
Kara estava sozinha, perdida e morta. Ela sabia que ela devia estar
sentindo algo como felicidade. Afinal de contas, ela havia acabado de descobrir
que havia vida após a morte. Mas não conseguia. Ao lado dela, um homem de
meia idade grandalhão conversava alegremente com um homem careca. Eles
pareciam empolgados. Amaioria dos mortos ambulantes ao redor dela pareciam
felicíssimos, excetuando por algumas pessoas que pareciam sentir como ela se
sentia: nauseadas e horrorizadas.
Sem saber o que mais fazer, Kara entrou na fila mais perto dela. Ela
observava seus pés. Não estava muito a fim de conversa, especialmente com
algum velho gorducho empertigado como se houvesse ganhado na loteria.
Mas ela ainda não estava pronta para morrer... Ela não tinha acabado.
Todas as suas expectativas e sonhos haviam se desvanecido no ar. O buraco vazio
sem som onde antes vivia o seu coração estava frio. Ela sabia que sua vida tinha
acabado.
— Ahã — Alguém pigarreou.
Kara continuou fitando seus pés.
— Com licença, senhorita. Você está se sentindo bem? — o homem
insistiu.
Havia alguma esperança de que ela pudesse evitar de socializar? Ela não
podia apenas desaparecer?
Infelizmente, para Kara, parecia que ele queria sim socializar.
— Você sabe, na verdade não é tão ruim assim — prosseguiu a voz.
Kara deu uma espiada e viu que a voz pertencia ao velho homem gordo.
No rosto dele estava estampado um sorriso torto. Ele lambia seus lábios rosados
com antecipação.
— Nós estamos no Horizonte! Vivos! Você pode acreditar? Bem, mais
ou menos vivos. Nós estamos mortos, mas vivos! Isto não é maravilhoso?
Ela levantou a cabeça. Tentou forçar um sorriso, mas os cantos da boca
pareciam costurados no lugar.
— Sim. É realmente maravilhoso.
O homem batia o ar com seus braços.
— Isto é tão empolgante!
E, com grande esforço, ele saltou no ar e deu um giro. As minúsculas
pernas dele chutavam sob sua gigantesca barriga ondulante. Ele planou por meio
segundo, então pousou com um ecoante bum.
— Quem imaginaria que o Horizonte realmente existe? Vida após a
morte... é real!
Se ele já não estivesse morto, Kara tinha certeza que o coração dele
explodiria no peito como molho vermelho e atingiria bem na cara quem estava
do lado dele.
Ela estudou o homem por um instante.
— O que é Horizonte?
Ele parou de girar para dar-lhe uma resposta.
— Utopia, Xangri-lá, Sião. Elísio. Horizonte é a vida após a morte. É
real, e nós estamos aqui! Isto não é maravilhoso?
Kara franziu as sobrancelhas, enquanto o homem espalhava seu
entusiasmo para sua próxima vítima em outra coluna de queridos finados. Ela
sentiu uma presença atrás dela e se voltou para ver que pelo menos uma centena
de pessoas recém-expiradas estava chegando. O nível de ruído aumentou, se é
que isto fosse possível. Kara abaixou a cabeça e tentou chorar, mas não saiu
lágrima alguma. Ela cruzou os braços sobre o peito e fitou o vazio.
O tempo parecia não ter efeito algum na Orientação. Antes que ela se
desse conta, Kara era a próxima da fila para entrar em um dos vários edifícios
de escritórios que cercavam os quilômetros de mortos felizes. Ela encrespou seu
rosto e fitou o edifício. Por fora, ele parecia um escritório normal: paredes
pintadas de bege com pinturas de cor bege, carpete industrial bege e janelas de
vidro com persianas horizontais beges.
Criativo.
A porta era a única coisa que parecia destoar. Era antiga, com um
batente de madeira com o tamanho de um mamute, e estava decorada com um
letreiro néon iluminado com a inscrição: Divisão Oráculo # 998-4321,
Orientação.
Kara franziu o cenho. Ela não tinha certeza se deveria bater ou não.
Cedo ou tarde, ela sabia que teria de se decidir, pois milhares de pessoas mortas
impacientes estava empurrando-a ansiosamente contra a porta.
Ela suspirou. "Tudo bem, vamos ver no que dá."
Fechando o punho com a mão direita, Kara o ergueu em direção à
porta, e enquanto sua mão permanecia no ar, a porta se abriu com um rangido. O
escritório estava lotadérrimo. Ela se esgueirou para dentro e estacou. Uma brisa
salgada com fragrância do oceano a envolveu. Centenas de papéis espalhados
cobriam o chão e entulhavam as escrivaninhas. Pastas preenchiam o escritório,
empilhadas umas sobre as outras, serpenteando até chegar ao teto — e, então,
havia as bolas de cristal gigantes.
Era como uma louca pista de boliche. Enormes bolas de vidro rolavam
pelo escritório achatando tudo em seu caminho. Velhinhos se equilibravam no topo das esferas como acrobatas de circo, seus mantos prateados flutuando atrás
deles. Usando seus pés descalços, eles manobravam as bolas sem esforço para
todas as direções. Como entidades únicas, homem e bola se moviam como um
só.
As bolas de cristal batiam nas pastas, e os homens reviravam seus
conteúdos. Eles lançavam suas longas barbas brancas sobre os ombros,
folheavam os papéis e causavam uma avalanche de pergaminho branco. Os
olhos de Kara se fixaram em uma folha de papel flutuando que estava vindo na
direção dela. Ela deu um pulo, apanhou-a e leu:
Anjo da Guarda: Peter Jones
Ordem de classe nº 4321
Classe: Novato 2º ano, Esquadrão da Guarda W-1, (classe mais baixa)
Atribuição: Elizabeth Grand. 5585 Sherbrooke Street, entrada da frente.
11:42 da manhã. Crânio quebrado ao escorregar por 2 lances de escada;
Estado: Aprovado. Salvou Carga. Alma intocada.
Kara balançou a cabeça. Ela se inclinou para baixo e pegou outro papel
do chão e o leu. Era semelhante, excetuando que, desta vez, era Tina Henderson
quem havia salvado Affonso Spinelli de engasgar até a morte com uma
almôndega no Restaurante Luciano's Porte Vino.
Todos estes papéis eram sobre tarefas de anjos da guarda? Ela deixou o
papel escorregar de sua mão. Deu uma bisbilhotada nas pastas. Os papéis faziam
ruído sob seus pés enquanto ela se movia pelo escritório. No caminho, descobriu
várias salas menores das quais mais homens emergiam pisando sobre suas
esferas de vidro como monociclos enormes. Todos eles pareciam muito
ocupados no momento...
“KARA NIGHTINGALE!”
Kara quase pulou para fora de sua própria pele. Suas pernas tremiam,
enquanto atravessava as torres de pastas e seguia a voz. Virando a esquina para
sua esquerda, ela avistou outro escritório. A porta estava entreaberta. Ali, sobre
uma grande bola de cristal, estava outro destes homens, cercado por pilhas de
papel. Ele pulou para baixo para uma grande mesa semicircular de madeira. Ele
estava com o cenho franzido e gesticulava impacientemente.
— Entre. Entre. Sem tempo para perder. Vidas para serem salvas! — ele
disse com uma estranha voz aguda.
Kara se arrastou para dentro do escritório entulhado. Mais pastas
estavam empilhadas umas sobre os outras e se espalhavam pelas paredes. Uma
piscina redonda de um metro e meio havia sido instalada no canto do fundo. O
aroma de água salgada era forte no pequeno escritório. Um tique-taque baixo a
distraía. Seguindo o som, Kara avistou um enorme relógio de corda pendurado na
parede à sua esquerda, com seu longo pêndulo balançando da esquerda para a
direita.
Ela caminhou até a escrivaninha e ficou com as mãos ao seu lado,
mordendo os lábios. Ela abriu a boca para falar... mas a fechou novamente.
Enquanto estava viva, quando ficava nervosa, seu coração batia tão forte no peito
que às vezes doía. Mas não desta vez. Sem marteladas ou batidas, apenas
nervosismo com um âmago silencioso. Isto não era normal.
Ela forçou as palavras para fora de sua boca.
— Como... como você sabe o meu nome?
O velho finalmente parou de revirar sua escrivaninha e pegou uma
pasta. Suas sobrancelhas se ergueram em sua fronte.
— Ah, sim, sim. Aqui está. Kara Nightingale... dezesseis anos... atingida
por um ônibus... um modo muito horrível para morrer... sinto muito por isto... a
alma já havia sido escolhida para ser guardiã...
Ele acariciava a barba e ficou quieto por um instante.
Kara pigarreou.
— Hum... com licença, senhor? Hum... o que estou fazendo aqui?
A cabeça do homem se ergueu abruptamente.
— Fazendo aqui? Porque... você foi escolhida, por isto! E agora nós
precisamos introduzi-la a seu novo trabalho. Tudo bem. Vejamos aqui... Qual é a
atribuição mesmo...? Puxa. Acho que me esqueci. — um sorriso se abriu no rosto
dele — Não é tão fácil quanto parece... ver o futuro. Você tende a receber o
futuro e o presente misturados! Agora, onde está aquela folha de papel?
Kara franziu o cenho intensamente.
— Não entendo... qual trabalho novo? Eu tenho um trabalho?
A pasta escorregou das mãos do homem. Ele caiu para a frente para
recolher os papéis.
— Ó! Certo! — o rosto dele se iluminou. — Bem, você está morta,
obviamente. E você foi pré-selecionada para se tornar um anjo da guarda! Para
trabalhar salvando vidas! Isto não é maravilhoso? — Ele amassou os papéis com
sua empolgação. — E hoje é o seu primeiro dia de trabalho! — Ele coçou a
careca. — Ou será este o seu segundo dia? Puxa.
Kara o encarou novamente.
— Eu, um anjo da guarda? — Ela se lembrou dos filmes que havia
assistido com anjos da guarda protegendo do mal homens e mulheres. Ela se
perguntou se receberia um par de asas.
— Bem, vejamos aqui... certo. Como uma novata, você será destacada
para o Esquadrão de Guarda W-1 da Legião Anjo da Guarda, nível mais baixo.
Sua função hoje será observar. Seu treinamento de combate começará depois
que o período de orientação houver acabado... após a sua primeira viagem. — Os
gentis olhos dele brilhavam enquanto olhavam para Kara.
Ela tentou falar, mas seus lábios estava selados. Ela estremeceu. Não
estava certa se era por causa da empolgação da situação ou por puro medo.
— Seu Oficial lhe esclarecerá os detalhes. — Ele fechou o arquivo,
bateu-o com força contra a escrivaninha com um bang, uniu as mãos e berrou.
— DAVID!
Kara olhou de esguelha e virou a cabeça. Um lindo adolescente, um ano
ou dois mais velho do que ela, surgiu na porta. Seus largos ombros estavam
cobertos por uma jaqueta de couro marrom apertada em sua constituição
musculosa. Ele se aproximou deles. Duas estrelas douradas marcavam a sua
fronte, logo acima de sua sobrancelha.
— Sim, oráculo? Você chamou, Sua Santidade? — Com um sorriso
amplo, ele penteou o topo de seu cabelo loiro com os dedos. Ele parou do lado de
Kara e deu uma piscadela. Seus olhos risonhos eram da cor do céu.
Normalmente, Kara teria corado, mas tendo em vista que ela não tinha
circulação sanguínea, ao invés disto, sentiu um estranho formigamento, do topo
de sua cabeça até o dedão do pé, como se seu corpo estivesse sob o ataque de
centenas de pontiagudas agulhas.
O oráculo pulou para cima e estendeu seus braços.
— Clara, apresento-lhe David McDonald. David, apresento-lhe Clara
Nightingale. — Os olhos dele passaram de Kara para David. — Ela será a sua nova novata.
— Hã... É Kara, não é Clara.
O oráculo a encarou como se ela houvesse dito a mais estranha das
coisas.
— Ó, certo! Perdoe-me, Kara.
David riu.
— Eles geralmente acertam depois de algumas centenas de vezes.
Kara estudou o rosto de David. Os lábios deles se abriram e se
converteram em um sorriso maroto. Ele bateu a mão dela na dele e apertou. Ela
sentiu um fluxo de corrente elétrica partindo de seus dedos até os dedões dos pés.
Amão dele não tinha o toque quente que ela se lembrava de quando apertava a
mão de um mortal, mas também não era fria. Era perfeitamente cálida.
— E aí, garota? — ele disse, enquanto exibia uma fileira de dentes
impressionantemente brancos. — Prazer em conhecê-la. E é McGowan. Não é
McDonald. — Ele soltou a mão dela e ergueu o colarinho de sua jaqueta de
couro.
— Hum, oi... é que... deixe-me esclarecer isto — Kara gaguejou. —
Estou conseguindo este novo trabalho como anjo da guarda, e você vai ser o meu
patrão? É isto que está acontecendo aqui?
— É melhor acreditar nisto, gata. — David marchou para cima e
apanhou o dossiê do oráculo.
— Acho que estou ficando louca.
— Não... você só está morta.
Morta, Kara pensou. Ela queria desintegrar-se no ato. Ela podia estar
morta, mas o seu âmago ainda podia sentir dor. Ela não queria estar morta,
queria estar viva...
— Aproxime-se, Clara — disse o oráculo. Ele manobrou a bola de
cristal para longe da escrivaninha e veio em direção a ela. — É hora de você
fazer o juramento! Ou você já fez? Puxa. Lá vamos nós outra vez, misturando
tudo! Já nos vimos aqui antes?
Kara balançou a cabeça.
— Hã... não. Qual juramento? Eu nunca fiz um juramento.
— Ó, bom — suspirou o Oráculo. — É o juramento que todos os anjos
da guarda devem fazer. Um juramento selado que só pode ser quebrando quando a alma morre. — Um repentino brilho emanou da bola de cristal, banhando os
pés do oráculo com uma suave luz branca. O brilho diminuiu. Uma névoa com
forma de nuvem se formou dentro do globo. Um redemoinho, que mudava de
forma a cada giro. O oráculo pressionou suas mãos enrugadas juntas diante de
seu peito, seus olhos ainda fixos nos de Kara. Para a grande surpresa dela, eles
começaram a mudar de cor, transformando-se de azuis para dourados brilhantes.
Os olhos de Kara se arregalaram, enquanto ela recuava.
— Espere! E se eu não quiser me tornar um anjo da guarda? Não posso
simplesmente voltar para casa? — Tudo isto estava acontecendo tão rapidamente
que ela não tinha certeza se queria fazer parte disto.
O oráculo balançou a cabeça.
— Temo que não. É como deve ser... não há outro modo. A sua vida
como você a conhecia acabou. Hoje, você está começando uma nova vida e um
novo trabalho.
Kara piscou, a sua mente trabalhando além da conta. Tinha de ser
melhor do que fazer nada, estar realmente morta. E também havia os largos
ombros do Oficial David...
— Aproxime-se. — disse o oráculo com seriedade.
Lutando contra a vontade de fugir de David e do oráculo, Kara
caminhou adiante.
— Espere um minuto... Acho que você está cometendo um erro. Não
acho que eu seja a pessoa certa para este trabalho...
O oráculo pôs um dedo em seus lábios e aquiesceu imperiosamente.
— O Chefe escolheu você, Clara, para integrar o exército Dele, para se
tornar um de seus anjos da guarda — uma verdadeira e sagrada honra. — O
olhar dourado dele hipnotizava Kara. — Agora, repita comigo.
Kara concordou.
O oráculo continuou:
— Eu, Clara Nightingale…
— É Kara.
— Ó, não! Errei de novo? Aminha memória não é o que costumava ser.
— O oráculo sorriu e limpou o suor das sobrancelhas.
— Vamos começar de novo. — Ele pigarreou. — Eu, Kara Nightingale,
me declaro serva da Legião dos Anjos. Eu realizarei de todo o coração os meus deveres como anjo da guarda. Que as testemunhas do meu juramento me
obriguem a cumpri-lo.
Kara se sentiu tola, mas, de qualquer modo, repetiu tudo, palavra por
palavra.
— Nós a obrigaremos a cumpri-lo! — juntos declararam o oráculo e
David.
Então algo estranho aconteceu. Primeiro, a pele do oráculo começou a
reluzir com uma suave cor dourada, então ele se inclinou para frente e
pressionou seu polegar sobre a testa de Kara. O toque dele queimou um local
entre as sobrancelhas dela e enviou uma onda de eletricidade da cabeça dela até
as pontas de seus dedos. De algum modo, ela se sentiu mais pesada, como se o
simples toque a houvesse sobrecarregado. Após um momento, o oráculo se
inclinou de volta para trás e Kara observou os olhos dele voltando lentamente
para a cor azul natural. A bola de cristal cintilou, então perdeu todo o seu brilho.
Ela ergueu a mão e tocou a sua testa, correndo os dedos por sobre o
ponto onde ela sentiu queimar. Ela franziu as sobrancelhas. Podia sentir o
contorno de uma estrela... como a de David. O oráculo havia marcado uma nela
também.
— Eu tenho uma estrela na minha testa? — disse Kara, que era mais
uma afirmação do que uma pergunta, enquanto ela esfregava a testa. Um
sorrisinho surgiu em seus lábios.
— Este é o símbolo da Legião dos Anjos. Você é um anjo da guarda
agora... você fez o juramento. — O oráculo manobrou sua bola de cristal de volta
para o outro lado de sua escrivaninha e se sentou de novo. Ele deu uma olhada no
relógio. — E agora você tem um trabalho a fazer. O tempo é precioso! Daniel!
David lançou uma bolsa preta sobre seu ombro e caminhou para a
piscina.
— Sou eu. Vamos, garota. Temos apenas meia hora para chegar até a
Sra. Wilkins antes que ela morra em um maluco acidente com a máquina de
lavar louças.
Ele subiu uma escadinha pendendo sobre a beira da piscina e pisou na
borda.
Kara franziu o cenho.
— Espere. Quer dizer que para chegarmos à Sra. sabe-se-lá-o-nome, temos de pular na piscina?
— Isto mesmo — respondeu David, enquanto ele baixava sua bolsa e
socava a pasta nela.
Era estranho demais. Mas, novamente, ela estava morta — caminhando,
falando, com uma estrela dourada queimada em sua testa.
Kara deu alguns passos hesitantes em direção à piscina.
— Só um minuto... e por que eu não fui salva? Onde está o meu anjo da
guarda? — Imagens da vida dela cintilaram em sua cabeça... de sua família, seus
amigos, suas pinturas. — Por que não havia ninguém para me salvar?
David fechou o zíper da bolsa e a jogou sobre o ombro. Ele voltou os
olhos para Kara e deu um amplo sorriso.
— Você foi salva. Bem, a sua alma foi, é isto.
— Há?
Os olhos dele eram pensativos enquanto pousavam nela.
— A sua alma foi escolhida. Você foi destinada a se tornar um AG. Era
apenas uma questão de tempo antes que você morresse e fosse enviada para
Horizonte! Estamos ficando com poucos anjos da guarda, entende, e você era a
próxima da lista. — Ele deu uma piscadela.
— Eu fui escolhida?
— Sim. Pelo próprio Chefe. Ele pensa que você tem o que precisa para
fazer o trabalho. E, falando no trabalho, temos de ir... — David estendeu a mão e
fez um sinal para que ela o acompanhasse.
— Então, como você sabe o que vai acontecer com ela — a mulher —
ante que aconteça? — Kara apertou suas mãos ao redor do corrimão frio da
piscina. — Quero dizer, como isto é possível?
— Você se esquece de onde está. Os oráculos podem ver o futuro. É o
dom deles. Eles sabem dias antes que alguém está prestes a morrer. Então eles
designam anjos da guarda para salvarem a alma da pessoa. É o seu trabalho
salvá-las, independentemente de qualquer coisa, antes que os demônios as
devorem.
— Demônios? — Kara arregalou os olhos. Ela sentiu seu corpo ficar
tenso. Precisou de alguns segundos para se recompor. — Está brincando comigo?
— Uma imagem de sua mãe pipocou em sua mente.
Ela voltou sua atenção para o oráculo, que estava ignorando o diálogo completamente. Os olhos dele estavam dourados de novo. Ele olhava para o
vazio, imóvel como uma estátua. Kara se indagou se o homenzinho estava lendo
o futuro naquele exato momento.
— O oráculo está ocupado agora. Ele está fazendo o trabalho dele; agora
é a nossa vez. — David agarrou o braço de Kara e a puxou para cima na
escadinha, posicionando-a a seu lado. O olhar dele se estreitou.
— Agora preste atenção. Está me ouvindo?
— Sou toda ouvidos. — Mas Kara não conseguia se livrar da sensação
de terror. Demônios eram o tema favorito de sua mãe — uma mulher louca com
inimigos imaginários... certo? — Ning... ninguém disse nada sobre demônios. —
Ela tentou forçar uma expressão de coragem para David, mas sabia que não
estava funcionando.
— Não se preocupe. Nada vai acontecer... Esta é uma atribuição
realmente fácil, confie em mim. Estaremos de volta antes que você perceba.
Ele sorriu e estudou o rosto dela. Os olhos azuis dele cintilaram.
— Aqui em cima, água é importante. Lembre-se disto. É a porta de
entrada entre o Horizonte e a Terra. — Ele lançou outro sorriso, com seus dentes
expondo seu brilho. — Temos de pular dentro dela. Está pronta? — Ele agarrou
Kara pelo cotovelo, puxando-a para frente.
Kara fitou os reflexos na piscina, imaginando demônios na água
profunda — esperando por ela.
— Tudo bem, então — disse David — quando eu contar três...
— Espere? Espere! Não sei se quero fazer isto...
— Um...
Kara remexeu o braço, desesperadamente tentando se livrar da
agarrada de ferro de David.
— Dois...
— Espere! — gritou Kara — Eu não sei nada!
— Três! — David se projetou para fora da borda e pulou, arrastando
Kara para baixo com ele.
Ela caiu na água e afundou até o fundo. A água não tinha nenhuma
sensação de água, era mais como uma névoa, ou um nevoeiro denso, como
quando você ficou por muito tempo no chuveiro. De algum modo, Kara
conseguia respirar com facilidade, talvez porque não tivesse pulmões. Ela virou sua cabeça e tentou procurar por David, mas começou a girar com rapidez —
horizontalmente — com berros de estourar o tímpano, enquanto bolhas
esbranquiçadas pareciam consumi-la. Luz branca explodiu ao redor dela.
Protegendo seus olhos, Kara conseguiu olhar para baixo. A luz estava brotando
dela. Todo seu corpo estava iluminado com luz branca fluorescente. Ela sentiu
um repentino empurrão e observou seu corpo desintegrar-se em milhões de
partículas brilhantes. Então ela começou a flutuar.
Com um último clarão de luz, tudo ao redor desapareceu.
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Marcada,guardiões De Almas
Fiksi UmumCapítulo 1 Renascida - Espere por mim! - Kara corria pela Saint Paul Street. Ela apertava o telefone celular contra sua orelha com a mão suada. - Estarei aí em dois minutos! Suas sapatilhas negras de balé faziam ruído nos paralelepípedos, enquanto e...