Prefácio por André Vianco
Quando o Clinton me contou sobre a antologia Brasil Fantástico adorei a novidade. A despeito dos autores, não conheço todos, mas sou um apaixonado pelo folclore nacional, e apesar de meus livros mais conhecidos tratarem do mito do vampiro, costumo explorar nossas criaturas mais emblemáticas em minhas histórias de terror, fantasia e aventura, sempre dando uma roupagem nova e tentando resgatar a imagem medonha de muitos desses entes quiméricos e aquele precioso e bem-vindo friozinho na barriga que eles deveriam causar ainda hoje.
Em tempos de internet, videogames e seriados mil, é um bom serviço que o contador de histórias presta, seja ele um escritor, roteirista de cinema, TV ou teatro, um ilustrador de HQs, apresentando aos leitores e espectadores contemporâneos as caras de uma boa Cuca, de um Saci-Pererê ou um Cabeça de Cuia. Esse saco do folclore nacional oferece um bocado de outras criaturas se você o sacudir, uns tantos menos ilustres que os já conhecidos Boitatás e Curupiras, ainda assim também bizarros e curiosos. A Perna Cabeluda? Está aí um bom exemplo. Alguém já ouviu falar? Basta consultar os buscadores para entender como essa lenda do folclore brasileiro começou a ser contada. Uma perna solitária e sem corpo que vivia a apavorar a população recifense, perseguindo gente pelas ruas escuras, distribuindo chutes e pregando sustos. Sacuda o saco e cai ali uma pavorosa versão de Ana Jansen, controversa senhora condenada a vagar em sua carruagem assombrada pelas ruas de São Luís por conta dos maus tratos infligidos aos seus escravos. Será verdade? Nos tempos em que nossos avós eram crianças e ouviam da boca de seus avós histórias enfeitiçadas, cheias de mistério e municiadas com toda a sorte de enredos evocados por esses seres, amaldiçoados ou não, certamente quedavam-se de cabelo em pé e olhos abertos, revivendo aquelas lendas em suas camas solitárias, quentinhas e desprotegidas na hora de dormir e curtir seus mais doces pesadelos.
Defendo muito o uso de nosso rico folclore na literatura de fantasia contemporânea. Nossos seres são muitos e curiosos. Alguns leitores, a princípio, torcem o nariz ao imaginar uma narrativa com um Saci ou com um Curupira, desconhecendo o plantel de artimanhas capazes de sair de histórias por onde eles passam. O escritor habilidoso vai tirar do leitor, com facilidade, alguns suspiros, encantos e, com um pouco de sorte, alguma agonia ao dar vida às criaturas mais sombrias do imaginário popular brasileiro. É justamente essa promessa que vem no bojo dessa safra de contos fantásticos, dando conta de boa parte do grande arsenal de mitos e criaturas folclóricas nacionais para entreter o leitor e provocar nos mais maduros a doce sensação de déjà vú.
O livro chega em ótima hora para flutuar acima da literatura de fantasia brasileira produzida atualmente, uma vez que a maioria de nossos autores insiste em emular sucessos estadunidenses e ingleses, infestando as prateleiras destinadas à literatura nacional com simulacros rasos de Harry Potter, O Senhor dos anéis, “Crespusculinhos” e congêneres, que já deram o que tinham que dar. Acredito que, hoje, o que mais falta à fantasia nacional é a identidade com a nossa terra, com o nosso jeito de falar, as nossas criaturas e a benéfica ousadia, a coragem, que faz o novo escritor suplantar o medo opressor de parecer estúpido e dar vazão a sua imaginação. Sem vencer essa luta, ninguém conseguirá surpreender o leitor, e autor algum alcançará o graal de todo grande narrador de histórias, que é contar um causo, ainda que habitado por seres tantas vezes visitados, com uma voz própria, com um jeito todo seu de assombrar. Entendo que essa onda de emulações seja fruto dos primeiros ensaios daqueles que um dia hão de se tornar grandes autores, pecadilhos que podem ser vencidos com o exercício do (agridoce) ofício de escrever; jornada da qual partilho e longe estou de me considerar como exemplar. Por conta dessa vontade, ver nossos bichos folclóricos ganhando território nas prateleiras de livrarias e páginas da internet, recomendo e enalteço grandemente iniciativas como essa, da antologia Brasil Fantástico e seus autores, e faço votos de sucesso para que não demore muito a um segundo volume nascer ou que outras manifestações com a mesma verve surjam e deem voz às nossas mais genuínas criaturas.
E chega de chacoalhar esse saco folclórico por hoje, porque o dono do saco já está aqui, resmungando e pedindo-o de volta para vagar pelas ruas atrás das criancinhas incautas.