A distância de apenas um vidro

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A chuva cai forte e potente, eu encostei minha cabeça na janela da sala enquanto os pingos batiam e escorriam no vidro, está quente aqui dentro para aquecer meu corpo, mas não o bastante para aquecer meu coração. Olhei enquanto a levavam para longe de mim, ela gritava com a mão estendida em minha direção, não a ouvia devido o barulho da chuva e trovões, mas entendia o movimento dos seus lábios histéricos e trêmulos, as grandes botas amarelas, que lembravam as tardes em que brincávamos no campo, chutando o ar enquanto a arrastavam, cretinos dissimulados e infelizes .
A levavam para dentro do carro que a esperava impaciente. Eu deveria estar tão histérica quanto ela, mas não conseguia, imóvel e inútil eu só observava levarem para longe de mim a única coisa que realmente importava, a tiraram de mim da pior forma possível e eu sentia o frio que ela sentia, tal frio só se manifestava como saudade do calor de estar com ela, olhava atenta para guardar na memória a última aparência dela, talvez daqui a alguns anos eu esqueça sua aparência e a alegria de estar com ela, a vi entrando no carro com os cabelos molhados as lágrimas juntas com os pingos de chuva, sua mão tocou o vidro do carro no mesmo momento em que a minha tocava o vidro da janela, senti como se pudéssemos nos tocar, e suas últimas palavras reforçaram o amor que sentia por mim, -NÃO QUERO TE DEIXAR- os gestos da sua boca me disseram, as lágrima escorreram em meu rosto e senti o que estavam tirando de mim. Acompanhei com o olhar o carro preto ir embora na chuva densa, meu rosto molhado de suor e choro, meu estômago contorcido de aflição, minhas forças se foram não queria estar ali naquele momento, fechei o olhos e guardei bem aquela cena, seria essa a última vez que a viria, não conhecia a vida sem ela e não queria conhecer. Olhava impaciente para a mulher ,de terno preto blusa cinza, que a tirara de mim, parada no gramado da minha casa sorria pra mim com todo o corpo protegido por um grande guarda-chuva com o movimento da boca a escutei dizer- SINTO MUITO, MAS ERA PRECISO- fechei os olhos querendo aceitar que era realmente o melhor para mim, mas então veio a minha mente a tarde em que fizemos castelos de areia na praia sem se importar com a aflição e angústia do mundo, das guerras tudo se resumia em risos e as lembranças alegres não paravam de chegar em minha cabeça... então abri os olhos e com a mesma mão que enxuguei as lágrimas soquei o vidro da janela, a mulher sumiu no auge da minha raiva. Sem estar com ela sentia ódio, rancor, tristeza e medo, um medo insuperável, medo de viver sem ela. Os dias passavam e sempre que acordava corria até a sala olhava pela janela, as vezes com os raios de sol batendo as vezes com os pingos de chuva, mas a visão era sempre a mesma: ela sendo arrastada pelos brutamontes sem expressões e o vazio crescia. No início ficava horas ali parada olhando o gramado esperando que ela voltasse para recuperamos o tempo perdido, poderiamos comer os biscoitos com gotas de chocolate, que nunca mais foram os mesmos desde quando ela partiu, antes eram alegres e traziam conforto em um dia agitado, agora... bom agora só servem pra acalmar a fome.
Mais dias passavam e meu lugar na janela era fixo. Lembrando das noites em que contávamos histórias de fantasias e tudo era possível se eu acreditasse e de repente eu acordava das lembranças e me via sozinha presa a realidade, tal realidade havia dor e sofrimento, acreditar em saídas não tornava nada real e isso acabava comigo.
Os anos passaram e eu já não me sentava mais a janela, nem ao menos lembrava de como ela era, o que eu temia havia acontecido, sabia das lembranças mas não as sentia, acontecia as vezes de contar aos colegas de como era quando a tinha comigo, mas apenas falava da boca pra fora, não lembrava a sensação de estar com ela. Passava todos os dias pela janela e o que via era apenas meu reflexo no vidro, não chegava perto o bastante para ver o jardim, já não sentia falta dela, me sentia bem aceitando os acontecimentos com a cabeça erguida era adulta e entendia que aquilo era preciso, abandoná-la foi preciso.
Mas um dia acordei passei pela janela e lá estava meu reflexo com o rosto enrugado mostrando o agir do tempo, o terno preto e a blusa cinza, me vi assim como a mulher do jardim no dia de chuva, me aproximando da janela aos poucos, senti algo que não sentia havia muito tempo, senti falta dela, passei a mão pelo vidro e havia o vazio, um vazio terrível e devastador,fechei os olhos e pude olhar mais uma vez nós duas pulando amarelinha, e as canções alegres, a vergonha não existia, apenas dançávamos de qualquer jeito em qualquer hora, nada importava pois estava com ela. Abri os olhos e a lágrima caiu novamente como no dia em que ela se foi senti o frio da saudade...Como puderam tirá-la de mim? Por que deixei que a levassem? Por que não lutei? Por que fazer isso comigo?
Senti remorso a queria de volta... chorei, gritei enquanto batia na janela desesperada, com toda minha força a pedia de volta e quando levantei a cabeça lá estava ela,no gramado ensolarado ,sorrindo pra mim jovem como antes, com o dedo indicador batendo no vidro da janela, aquele olhar alegre e desprendido de qualquer horror, as roupas coloridas e alegres... O movimento dos seus lábios dizia- NÃO VOU TE DEIXAR- as lagrimas pararam de escorrer e o calor voltou ao meu coração, encostei o dedo no lado de dentro do vidro e sorri pois agora podia realmente tocá-la, não era apenas uma lembrança, ela estava lá comigo, minha inocência havia voltado para mim, nascera comigo me permitia ser feliz num mundo cruel, não deixava que eu me importasse com as diferenças nem com as aflições, com minha inocência tudo estava sempre bem, tudo acontecia e nada era problema tão grande que não pudesse virar brincadeira... A tiraram de mim, tão cedo, uma sociedade que não aceita fantasias e sonhos, devia me preocupar com as diferenças, a tiraram de mim e eu de certa forma deixei, devia largá-la e até consegui por um tempo não se importar com a distância entre nós, mas no final ela voltou está aqui a posso sentir a um vidro de distância sorrindo.Minha inocência de ser criança preciso dela pra voltar a ver o mundo que via antes com os olhos infantis, encantada com tudo e todos, no final todos nós precisamos dela de volta, precisamos chamar por ela, com um mundo cada vez mais realista e doentio...- EU PRECISO DE VOCÊ- gritei com a voz rouca, e ela apenas sorriu e me convidou com um giz amarelo numa mão e com a outra apontando para uma amarelinha desenhada na calçada.
Corri como nunca havia corrido antes, nem quando era criança, abri a porta com o sol invadindo meu rosto, porém ela não estava lá procurei fitando o olhar por todo gramado e quando olhei para baixo vi o giz amarelo no chão, o segurei e senti as lembranças e percebi que ela estaria comigo sempre... O resquício da minha inocência estaria sempre ali a partir daquele momento e não deixaria ninguém tirá- la de mim novamente. SINTO MUITO, MAS NÃO ERA E NEM SERÁ PRECISO TIRAR ELA DE NOSSAS CRIANÇAS.

A distância de apenas um vidroOnde histórias criam vida. Descubra agora