Meu Pai Amava Relógios e Só Agora Descobri O Por Quê

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Meu pai amava relógios. Aliás, não só relógios, qualquer coisa que controlasse o tempo entrava, mas sua casa era cheia de relógios. Grandes relógios de vovô, pequenos relógios cucos, até mesmo umas peças de arte de metal brilhoso que tinha uns ponteiros apontando para ângulos esquisitos. O xodó de sua coleção era um antigo relógio de parede alemão, que tinha sido feito por volta de 1870. Tinha sido do avô dele, que comprara a peça de um soldado Russo durante a segunda guerra mundial. Meu pai costumava me contar que o relógio havia sido pendurado na parede do próprio Heinrich Himmler durante a guerra. Quando meu pai morreu, minha mãe não tinha a paciência de ficar limpando tudo e nem de empacotar, então coube a mim essa tarefa. Como último desejo de meu pai, a maior parte de sua coleção foi vendida em um leilão e o dinheiro foi colocado em uma poupança para que minha mãe tivesse uma vida confortável depois da partida dele. Centenas de relógios de pulso, parede, até alguns cronômetros, tudo foi vendido aos montes; tudo menos aquele relógio alemão. Aquele foi deixado para mim, e em seu testamento insistia que eu ficasse com ele. Eu, particularmente, nunca liguei muito para relógios. Os tics e tocs no escritório de meu pai costumavam me deixar louco e quando me tornei adolescente me recusava a usar relógios de pulso. Os únicos relógios que existiram na minha casa durante toda minha vida adulta tinham sido o do meu celular e do computador. Tentei fazer com que minha mãe ficasse com aquela caixa velha, dizendo que me sentia mal por tirar dela a única coisa que sobrara da coleção de papai. Não funcionou, ela insistiu que tinha sido passado de geração a geração e que um dia eu deveria passa-lo ao meu filho. Não podia dizer que odiava aquela coisa, então levei para minha casa e coloquei em um aposento não muito usado, que estava prometendo transformar em um escritório fazia anos. Na primeira noite eu podia ouvi-lo através das paredes. Tic toc, tic toc. Dois quartos de distância e ainda assim o som penetrava em meu crânio e perturbava meu sono com urgência e pânico. O tique-taque sempre me deixou com a sensação que meu tempo estava se esgotando; como se eu pudesse sentir o fim da minha vida se aproximando. Não foi uma noite tranquila. De manhã eu o levei para a garagem, junto de troféus de infância e o blusão que minha avó tinha me mandado de Natal e fui para o trabalho. Minha cabeça latejava e meus olhos ardiam durante todo o dia; achei que estava ficando doente. Acabei saindo do trabalho duas horas mais cedo e fui para casa. Uma soneca faria tudo melhorar. Tic toc, tic toc. O som do velho relógio alemão me recebeu assim que cruzei a porta de entrada. Enquanto estive fora, alguém tinha o colocado em cima do meu balcão. Pelo menos eu supus isso, mesmo que eu more sozinho a não ser por um enorme gato laranja que resgatei de um abrigo a uns três anos atrás. Schrödinger estava sentado no balcão olhando fixamente para o relógio, como se estivesse esperando um ataque. Tinha certeza, por motivos óbvios, que o gato não era quem tinha o trazido para dentro de casa. Meu sistema de alarme registra toda vez que alguém digita o código de segurança, então dei uma conferida para ver se minha mãe não tinha passado por ali sem aviso prévio. Ninguém tinha estado ali desde de manhã. Será que eu mesmo tinha feito aquilo? Eu não funciono muito bem de manhã; uma vez tinha colocado meus óculos de sol no freezer ao invés da travessa de gelo e não me liguei disso até a noite quando fui preparar a janta. Foi aí que fiz a coisa mais estúpida possível, algo que me arrependi amargamente alguns dias depois. Simplesmente dei de ombros e não me importei. O relógio voltou para seu lugar no aposento vazio. Tic toc, tic toc. O barulho me seguia pela casa enquanto realizava meus afazeres noturnos. Adormeci com o tique-taque e sonhei com gritos e o barulho de ossos sendo esmagados e triturados pelas engrenagens de um relógio antigo, um pesadelo que não tinha desde minha infância. Quando acordei o relógio parecia estar tiquetaqueando de uma maneira impossivelmente alta, e minha boca estava seca de um jeito que parecia que estive mascando bolinhas de algodão a noite inteira. Estava com um mau humor danado quando sai da cama, coloquei comida no potinho de Schrödinger, peguei o relógio e levei em direção a lixeira que ficava na calçada. Ele não parou nem por um segundo de tiquetaquear enquanto eu o dispensava no fundo da lixeira preta, e não havia dúvida alguma para mim que estava soando bem mais alto do que no dia anterior. Olhei por volta da minha rua silenciosa esperando que meus vizinhos não tivessem ouvido. Cheguei do trabalho naquela tarde e encontrei o relógio me esperando no balcão da cozinha. A comida de Schrödinger estava no chão da cozinha perto da pia, intocada. O alarme não havia registrado nada, ninguém tinha entrado ali durante o dia todo. Eu queria gritar, queria correr. Não fiz nenhum dos dois. Ao invés disso, chamei pelo meu gato, aquela enorme bola de pelo laranja que me fazia companhia desde que tinha ido morar sozinho. Chamei por ele até cansar, chequei por de baixo da cama e embaixo da pia (seu esconderijo favorito). Depois de olhar todos os lugares que pude pensar, desisti. O relógio tique-taqueava o tempo inteiro, como a risada de um relojoeiro maluco que debochava da minha busca. Minhas mãos tremiam quando arranquei o relógio da bancada e coloquei de baixo do braço. Há uns três verões passados tinha construído uma braseira atrás da minha casa, um lugar para assar salsichões e beber uma boa cerveja gelada. Não tinha a usado nem metade das vezes que planejava, mas era o lugar perfeito para me livrar de uma vez por todas do maldito relógio. Coloquei metade de uma lata de gasolina naquela desgraça antes de tacar fogo. As chamas lamberam o céu, quase alcançando uma velha árvore que tinha quase 10 metros de altura. A madeira bem oleada crepitava e suas bordas de madeira começaram a se curvar e se separar. Fiquei observando queimar até depois do pôr do sol e nada havia sobrado a não ser cinzas. Antes de ir me deitar naquela noite, procurei por Schrödinger novamente, mesmo que uma parte de mim tinha aquela sensação que não iria encontra-lo. Ele nunca deixava nem migalhas em seu potinho, nem mesmo nas raras ocasiões que eu o servia duas vezes no dia. Se ele estivesse em casa, o pote estaria vazio. Desisti por volta da meia-noite e rastejei até minha cama, exausto e um tanto deprimido. Tic toc, tic toc. Acordei antes do raiar do dia com o som do relógio nos meus ouvidos. Estava vindo da cozinha. Não sei se eu poderia encará-lo naquele momento. Fiquei deitado na cama ouvindo o tique-taque do velho relógio alemão por horas, rezando para que aquilo fosse apenas um pesadelo, sem conseguir voltar a dormir. Quando o alarme despertou, liguei para meu chefe e falei que estava com uma virose. Do jeito que tinha me apresentado no trabalho nos dias anteriores, exausto e de mau humor, ele não ficou muito surpreso de ouvir aquilo. Foi o som da porta da frente abrindo que finalmente me forçou a sair da cama. Jeanine, a moça que vinha uma vez por semana limpar minha casa tinha chego, surpresa por me ver em casa. Nós tínhamos nos visto apenas duas vezes antes; a primeira vez quando eu havia a contratado e quando o escritório onde trabalho tinha sido interditado por conta de um cano que havia estourado e inundado o andar. "Isso é novidade, " ela disse depois de nos cumprimentarmos. "O que? " Perguntei, meio grogue. "Ah, desculpa, o relógio". "É", eu forcei meu olhar em direção ao velho relógio alemão, o relógio que então percebi que eu esperava ser apenas u, sintoma de um surto psicótico. Jeanine tinha arrancado de mim a possibilidade de aquilo ser coisa da minha imaginação quando confirmou a presença da coisa. Estava no balcão da cozinha como eu já sabia que estaria. Se um relógio fosse capaz, ele estaria zombando da minha cara "Vou ficar no meu quarto. Só tranque a porta quando sair". Voltei para meu quarto antes que ela pudesse responder, e fiquei por lá até a tarde. Jeanine nem se importou em passar pelo meu quarto para dizer que estava indo embora. Naquela noite devolvi o relógio para o seu lugar de origem, o aposento vago. Tique-taqueava loucamente, o pêndulo de metal seguro atrás do vidro inquebrável que eu tinha certeza de ter visto se despedaçar no fogo. Segurando-o em minhas mãos, jurei sentir uma pulsação quente por debaixo da madeira, como um coração negro bombeando sangue quente pelas entranhas de metais daquele maldito relógio. O final de semana veio, e fiquei feliz em saber que não precisaria cruzar com ninguém até segunda-feira. Minhas noites eram preenchidas com sonhos de morte e destruição e uma antiga floresta coberta por uma neblina onde galhos finos, espinhentos e torcidos me agarravam e me prendiam. Estava começando a ouvir o barulho do vento entre as copas das árvores da floresta até mesmo quando estava acordado. A cada hora que passava, o tic toc, tic toc do relógio parecia mais com uma pulsação rítmica enlouquecedora. Na manhã de domingo a polícia bateu na minha porta, me puxando para fora de um pesadelo onde galhos grossos e polidos de árvore tentavam me estrangular. Dois detetives à paisana estavam em minha porta, e os convidei para entrar sem precisar proferir uma palavra. Meus olhos estavam marejados e eu vestia os mesmos pijamas que tinha colocado na quinta à noite. O relógio tique-taqueava da cozinha, o lugar que o mesmo insistia em voltar. A primeira coisa que os detetives perguntaram era se eu estava bem. "Estou bem. Apenas um pouco indisposto. Posso ajudá-los com algo? " Respondi, mesmo que a verdade fosse que me sentia nada bem. "Estamos à procura de uma pessoa desaparecida, Jeanine Blakely. De acordo com a empresa para qual trabalha, ela nunca mais apareceu depois da ronda da sexta-feira, sua casa estava no cronograma no dia que ela desapareceu". Pude sentir a cor do meu rosto sumindo enquanto o detetive falava. Cai em uma cadeira que estava perto, as pernas dela arranhando o chão. Os detetives me olharam desconfiados, suas mãos pairando perigosamente sobre a arma no cós da calça. "Desaparecida? Jeanine está desaparecida? " "Senhor, você viu a Srta. Blakely no dia que ela desapareceu? " "Sim, sim. Eu estava em casa, não me sentia bem. Ela chegou no mesmo horário de sempre. " "Que horas foi isso? " "Perto das dez da manhã", eu disse. "A última vez que ela notificou a empresa de suas tarefas foi um pouco antes de chegar aqui, então. Você viu algo suspeito, notou alguém a seguindo? " "Não, nós mal nos falamos. Fiquei no quarto enquanto ela limpava a casa. Não vi nada. " "Senhor, se importa se déssemos uma olhada pela casa? " O detetive chefe perguntou. Do jeito que perguntou, era mais uma ordem do que um pedido, e senti que recusar seu pedido não me compraria tempo nenhum. "Sim, fiquem à vontade. " Me recostei na cadeira, massageando as têmporas. Três dias de instabilidade, tique-taques e pesadelos durante a noite toda tinham me dado enxaqueca. Os detetives vasculharam a casa enquanto eu ficava sentado, respondendo alguma pergunta ocasional que faziam. Um dos detetives voltou para perto de mim, com um pequeno objeto preto em suas mãos, seus olhos focados em mim. "Senhor, você tem um gato? " Sentado, observei o achado do detetive, uma pequena coleira preta com uma etiqueta de identificação vermelha em formato de trevo. Eu qual nome estava gravado ali, e lembrei do dia que havia comprado aquela coleira e o quanto ele tinha odiado, até que finalmente aceitou como toda as outras coisas que eu comprava para ele. "Eu tinha... Onde você encontrou isso? " "Ah, " o detetive me alcançou a coleira, "Desculpe. Estava no chão da cozinha. Você disse que a Srta. Blakely estava aqui no dia que desaparecei, que fez a limpeza e saiu? Era típico dela deixar coisas desse tipo no chão? " "Não sei dizer. Como eu disse, estava doente. Não sai do meu quarto o dia inteiro, " falei. "Entendo, " falou quando seu parceiro voltou da garagem. Eles mantinham uma certa distância, enquanto eu corria meus dedos na gravação da coleira. No final, os detetives foram embora com a promessa que entrariam em contato comigo. Eu poderia ter falado que procurar por Jeanine seria inútil; que nunca encontrariam uma pista de seu paradeiro, mas qual seria a utilidade disso? Eu seria preso por ser suspeito, e depois me soltariam quando não encontrassem nada para me incriminar. E nesse tempo, o relógio continuaria com seus tiques e taques. Sem conseguir dormir e desesperado por um pouco de paz de espirito, sai de casa pela primeira vez em dias. Minha vizinhança suburbana recriava aquele ar dos anos 50, uma única avenida principal com várias lojas locais. Agora, metade destas lojas estavam fechadas, mas a não muito tempo atrás era o local de encontro da maioria dos moradores durante o final de semana para tomar sorvetes artesanais e pegar um sol no verão. Tinha sido esse charme suburbano que tinha me levado a comprar uma casa ali. Andando pelas ruas tranquilas, quase consegui esquecer a desgraça que me esperava em casa. A coleira na ponta dos meus dedos fazia com que eu não me esquecesse. Quando passei pelo Empório de Phil, uma pequena loja empoeirada onde havia comprado um umedecedor de ar para meu pai a uns cinco anos atrás, eu ouvi. Tic toc, tic toc. Não um som alto e estridente como o do velho relógio alemão, mas era um toque gentil e confortante de um relógio de pulso suíço, que estava na vitrine ao lado de um relógio digital moderno. Era quase como a cantoria de anjos, reconfortante. Me perdi naquele som, entrando em um tipo de transe, me sentindo bem com o tique-taque pela primeira vez na minha vida. Comprei-o imediatamente, levei para casa e coloquei do lado do relógio alemão. O tique-taque suave do novo parecia aquietar o mais velho, como se fosse uma batida de fundo melódica, fazendo com que o som monstruoso do outro parece ser menos ameaçador. Naquela noite dormi um pouco melhor, os pesadelos ainda estavam lá, porém mais distantes. Isso foi a seis meses atrás. Eles nunca encontraram Jeanine, e os detetives nunca mais entraram em contato comigo. Nunca mais encontrei Schrödinger e não conseguiria substitui-lo. Comprei mais relógios com o passar dos tempos. Não só relógios, qualquer coisa que controlasse o tempo entrava; mas tenho uma sala inteira somente com relógios. Relógios antigos, relógios embutidos em mesinhas de café, grandes relógios de vovô, e até pequenos relógios feitos por impressoras 3D que comprei online de uma loja de Austin. E no centro de todos esses, tiquetaqueando suavemente entre centenas de outros, estava o velho relógio alemão, o xodó da minha coleção.



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