Adormecido

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Vou começar dizendo que não sou muito supersticioso. Eu sempre fui uma pessoa muito independente em relação a isso tudo, e sempre considerei só como historinhas. Mas algo ocorreu que é um pouco difícil de explicar.

Meu irmão Bill nunca foi a pessoa mais normal do mundo. Ele agia meio estranho as vezes e tomava remédios desde pequeno para controlar a esquizofrenia borderline dele. As vezes falava coisas estranhas, via coisas estranhas e e tudo mais. Não estou dizendo que ele era idiota, pelo contrário, é um ótimo moleque, mas ele também era obcecado com essas coisas de meditação e sonhos lúcidos. Nos últimos 11 anos ele tem mantido relatos sobre as experiências. O que vão ler a seguir, é o último registro desse relato. Mantive as datas fora, mas não editei nada do registro.

"Nos últimos cinco anos, tenho praticado sonho lúcido, e tenho ficado bom nisso. Se não está ciente do que se trata, sonho lúcido é uma prática meditativa que lhe permite ter controle do seu sono. Essa parte não é muito importante. A parte que interessa é a projeção astral. Não é controlar os sonhos, é sair do corpo e viajar sem limite de tempo fora dele, voltando quando bem entender, e tudo mais. A única diferença entre projeção e sonho lúcido é que na projeção você pode ferrar as coisas de verdade se não tomar cuidado. Se você se projetar para longe demais do seu corpo e não conseguir voltar, coisas horríveis podem acontecer, desde entrar em coma até...
Quando se projeta, tudo se intensifica, cheiros, sensações, sentimentos, visão, tudo, tudo se intensifica. Eu consigo praticar durante o dia, e geralmente em um momento de felicidade e tranquilidade, quando conseguia em concentrar e me sentia confiante. O mais longe que consegui chegar foi a 5 metros do meu corpo. É bem divertido, você pode sentir seu corpo flutuar e tudo ganha um outro aspecto. Nunca praticava muito durante a noite, mas um dia fiquei sem tempo durante a manhã e resolvi praticar a noite mesmo. Então vi algo terrível, vi e vivi, na verdade, não consigo me esquecer, e dói ao me lembrar, esses dois dias que se passaram depois do ocorrido tenho evitado dormir, mas acho que não aguento mais.

Na noite em que tentei (e infelizmente consegui) eu estava terrivelmente deprimido e mal, sentei na cadeira do computador e comecei a meditar. Demorei mas do que o de costume, e após uns quarenta e cinco minutos, comecei a sentir meu corpo ficar mais leve, minha mente flutuar e meus problemas sumirem. Me senti em outro estado mental, me afastei de meu corpo e pude me ver sentado na cadeira, fui até minha janela e olhei para o meu quarto, olhei para fora e vi a chuva que caia, senti-me muito livre e decidi ir mais longe. Eu nunca tinha saído do quarto, mas nessa noite resolvi sair pela janela. Quanto mais você se distancia, mais controle você perde dos movimentos. É como realmente se separar de si mesmo.

Dependendo da pessoa que está se projetando, o tempo pode passar rápido, ou devagar. Devido a minha falta de experiência, o tempo passava significativamente rápido para mim. Como se fosse um relógio acelerado.

Eu parecia muito pacífico dormindo. A essa altura da noite, todas as luzes da minha casa estavam apagadas. Foi aí que aconteceu. Quando virei meu rosto para dentro do meu quarto outra vez, vi um homem alto dentro do meu quarto. Eu não o reconheci, mas ele se moveu lentamente e ficou parado na frente do meu corpo. Era velho e enrugado, alto demais para não ser desengonçado, velho demais para manter aquela postura. Tinha cabelo branco até a nuca e estava de preto da cabeça aos pés. Ficou parado e meu cachorro começou a ganir, colocou o rabo entre as pernas e se urinou, saindo devagar do quarto. Ele só podia ter invadido pela janela sem que ninguém percebesse ou algo assim, meu pai ou meu irmão teriam notado. Bem, obviamente não era um ladrão qualquer ou algo assim, até meu cachorro notou isso. Me perguntei quem seria, como ele entrou no quarto, se podia me ver, o que queria, e todos esses pensamentos bloquearam meus movimentos. Eu deveria ter voltado ao meu corpo, mas não consegui, sequer involuntariamente. Só pude ficar ali, flutuando e olhando ele.
Horas se passaram e ele não movia nenhum músculo, e quando o dia ia amanhecendo, meu irmão entrou no quarto.

Ignorou totalmente a presença do homem estranho e passou por trás da minha cadeira até meu armário, pegou alguma coisa e passou pro mim de novo. Parou do lado do homem sem vê-lo, e me deu um tapa na cara. Um bem forte. Eu não voltei pro corpo. Então deu outro, bem mais forte. Ficou parado me olhando e logo depois saiu do quarto, como se não houvesse nada de errado. Porque meu irmão não viu ele. Porque meu cachorro viu ele. Porque eu não consigo voltar para meu corpo. Que. Porra. Tá. Acontecendo.

Desisti de me mover. É como estar paralisado por alguma droga, e flutuando aqui, não é tão bom assim, é enlouquecedor ficar parado tanto tempo. Quero gritar mas não consigo mover a boca. São seis horas da manhã, e a chuva começa a parar, não sei o que fazer a não ser esperar alguma coisa. O homem ainda está lá, olhando meu corpo. De súbito, todos os sons cessam. Não ouço nada, não sinto nada, nada de nada. O homem então move o tronco e o pescoço, se vira aos poucos e olha diretamente em meus olhos. Sua cara é branca e seus olhos são fundos e negros, e parecem sugar a luz ao redor. Seu rosto é coberto de cicatrizes e ele abri um sorriso lento para mim. Não é feliz, nem assustador, é só um sorriso cordial. Ele deve ter uns oitenta dentes e sua boca e grande demais pra ser humana. Ele sorri mais e mais e coloca um dedo na frente da boca, fazendo um "ssshhh". Lentamente ele andou e saiu do meu quarto, passando pela minha porta ele abaixou quase metade de sua estranha envergadura e seguiu pelo corredor na curva até sumir de vista.

Fui jogado bruscamente de volta ao meu corpo e pareci receber uma imensa carga de adrenalina e fiquei ofegante por uns 6 minutos até me recuperar. Saí correndo do meu quarto atrás dele mas não vi nada. Voltei e quando estava começando a construir provas para mim mesmo de que havia sido somente um sonho, pisei em algo molhado, e vi que era a urina do meu cachorro, que estava encolhido num canto, ganindo baixinho.

Olhei para cima da minha escrivaninha e vi um papel dobrado. Relutei muito em abrir, mas acabei por fazê-lo, e demorei pra entender a letra, que parecia ter sido escrita pela mão esquerda de um destro. Dizia: "Estará comigo logo logo, as visões do inferno nunca deixam seus espectadores." Não posso contar isso a ninguém. Acho que finalmente está tudo desmoronando. Meu deus. Tem marcas de pé no meu carpete. Dois pés enormes, de frente para minha cadeira do computador."

Essa é a última página do registro. É a última página e eu não sei o que ele fez a respeito disso. Não sei nada sobre sonho lúcido ou projeção astral. Meu irmão Bill morreu quatro dias depois de escrever isso. Morreu enquanto dormia pesadamente. Ele tinha dezoito anos, nunca bebeu nem fumou, e nunca teve nenhum problema de saúde além dos mentais. Sonhei com ele noite passada, ele pediu para que eu lesse seu diário. Me prometeu voltar mais vezes. Mas ele não se parece muito com ele mesmo. Não tenho certeza se quero que ele volte.



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