Polônia, 14 de outubro de 1944
O hálito de uma mulher desconhecida preencheu as narinas de Evellyn. Ela tinha as mãos suadas e presas atrás das costas, o comboio estava lotado, acomodando grosseiramente desde senhoras até meninas, todas com as vozes no âmago da angústia. Ela estava tonta. Seus pés doíam em seus sapatos um pouco maltratados pelo tempo. A garota começou a olhar para os lados, sua tontura atrapalhando a visão enquanto sua nuca pulsava em dor. Ela percebeu paredes sujas. Uma mulher gritou quando outra moça lhe acertou o cotovelo nas costelas. Não havia espaço. Ela olhou para cima, cordas pendiam de um teto de madeira rachada. Os olhos da garota se arregalaram cheios de pena, pois ela vira uma jovem menina, que aparentava ter por volta de seis anos, segurando numas dessas cordas pendidas enquanto seus pés ficavam presos nos braços da mãe que, incansavelmente, falava para a filha que tudo iria ficar bem, embora as lágrimas que cortavam sua alma dissessem claramente o contrário.
Evellyn sentiu sua mão sendo forçada contra seu corpo e ela gemeu baixinho, tentando livrar-se do aperto, porém, esbarrando numa outra mulher.
— Perdoe-me. — Disse ela, inocente, evitando olhar nos olhos de quem esbarrara.
A mulher de olhos castanhos escuros pareceu ver a inocência da garota e apenas respondeu:
— Não tem problema.
As duas voltaram a ficar em silêncio, o suor escorregando-lhe as costas.
— Para onde estamos indo? – Perguntou Evellyn à mulher na qual ela esbarrara.
— Não sei.
— Qual o seu nome?
A mulher virou seu rosto, uma cicatriz estava presente em seu pescoço, formando uma espécie de trilha de memória, que ia desde sua clavícula até a parte de trás de sua orelha.
— Não acha que está fazendo muitas perguntas? — Retrucou a estranha.
Evellyn engoliu em seco.
— Meu nome é Belle. — Ela sorriu com o canto dos lábios ao responder.
— Sou Evellyn. — Respondeu num tom mais baixo.
A garota assentiu e virou o rosto para o fundo do comboio novamente. Fim do assunto.
Evellyn soltou um grito baixo quando algumas mulheres pisaram em seus pés. Aquilo era o inferno. Mal sabia ela que aquilo era apenas a passagem de ida para lá.
Ela olhou por cima do ombro, uma pequena fresta de luz entrava obliquamente por uma passagem da porta do comboio. Já não era mais madrugada, provável que o sol já estivesse a amanhecer, porém, ele estava tão tímido que não se via um raio alaranjado sequer. As mulheres se batiam, braços nervosos tentavam abrir algum espaço, porém, era em vão. Naquele comboio talvez coubessem vinte mulheres, todavia, naquele momento, estava lotado, com cerca de quarenta e cinco, entre mulheres e meninas.
Já estavam há mais de cinco horas e meia numa estrada de neve. Ela sabia disso pois ouvira alguns soldados dizendo que era necessário colocar as correntes nos pneus. Ficar em silêncio era insuportável para Evellyn, que não tinha um livro, nada para comer, mas o que ela mais sentia falta era de seu violino, que nunca mais teria o prazer de ser tocado por seus dedos tão habilidosos.
— Espero que ele tenha sobrevivido. — Disse Belle, surpreendendo a garota que não percebera que a estranha continuou a observá-la.
Evellyn piscou rapidamente e se voltou para Belle. Agora, ela reparou nas roupas da garota. Um casaco de lã pendia em seus ombros, suas bochechas rosadas estavam sujas e, sua testa, cheia de respingos de suor. Suas pernas estavam cobertas por uma saia amarelo-mostarda e, seus cabelos, presos por debaixo de uma touca preta.
— Como disse? — Evellyn tentava ser a mais educada que podia.
— Não precisa ser tão educada. — Retrucou Belle. — Seu marido, namorado, sei lá o que ele é. Espero que ele esteja vivo.
— Como você po....
— Como posso saber? — Belle finalizou, empurrando uma senhora por volta dos quarenta anos, chegando perto da garota. - Você está com o rosto abatido. Bom, não esperava outro olhar, estamos sendo "raptadas" por assim dizer.
— É claro, mas...
Belle colocou a mão sobre os lábios de Evellyn. Seu toque era delicado.
— Todas as outras mulheres nesse maldito comboio estão pensando: Oh, Deus, para onde estamos indo? O que iremos fazer? Como sair daqui? - Ela gesticulou com as mãos enquanto seus lábios nervosos cuspiam as palavras rapidamente. O chacoalhar do comboio nazista lançava as mulheres de um lado para o outro. — Estão pensando apenas nelas mesmas, mas você, Evellyn... você não está com esses pensamentos. Você está pensando: Onde eles estão? Como eles estão? Não está preocupado consigo mesma.
Ela não sabia o que falar. Belle havia acabado de conhecê-la e já estava adivinhando seus pensamentos e, surpreendentemente, estava acertando.
— Não se preocupe — Belle se encostou na parede daquele lugar abafado e úmido - não vou fazer nada com você, eu só...... eu só sou observadora... demais. — A garota dos cabelos pretos piscou.
Evellyn bufou. A agitação das mulheres era angustiante, a exaustão e histeria criavam uma sinfonia horrorosa, na qual servia como encanto para os pés que pisavam um nos outros, os cabelos se enroscando.
Um solavanco lançou todas as mulheres para frente. Evellyn, num reflexo rápido, segurou numa das cordas e ela pôde apenas assistir ao pisotear de algumas mulheres que caíram no chão. A histeria ficou ainda maior. Ela olhou para o lado e viu Belle se apoiando na parede, levantando do tombo, a saia amarela agora tinha um rasgo na altura dos joelhos.
— O que foi isso? — Perguntou Evellyn tentando ignorar alguns gritos, sua cabeça rodava e seus braços estavam fracos.
— Não sei. — Belle soltou uma lufada de ar.
As mulheres voltaram ao amontoado, as vestimentas se esfregavam umas nas outras. As respirações estavam mais aceleradas agora, seus olhos carregando o medo da morte.
A escuridão era amiga daquele comboio, as sombras dançavam naquele pequeno e apertado espaço em que as colocaram, a pequena fresta de luz iluminou o rosto de Evellyn, machucando seus olhos. Um segundo solavanco atingiu o compartimento em que estavam.
— Sai de cima de mim! — Gritou uma garota.
— Pareço estar fazendo isso de propósito? — Retrucou uma mulher que Evellyn não conseguia ver.
Ambas se agarraram, as mãos furiosas encontraram as cabeças e começaram a sacudir uma a outra. As pessoas que estavam ao redor eram atingidas involuntariamente até que, a primeira garota, a mais baixa, recebeu um tapa no rosto e andou para trás.
— Que inferno! — Ela gritou apenas para, em seguida, se jogar contra a outra e, neste momento, a porta se abriu, permitindo que as duas meninas voassem em direção à neve, ainda brigando, não percebendo que a porta do inferno estava bem à sua frente.
Havia uma placa logo na entrada, a qual fez Evellyn ter pesadelos pelo resto de suas noites, na qual estava escrita: "Campo de Concentração de Auschwitz", com o subtítulo "Orgulho por manter a pureza".
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Violinista de Auschwitz (Degustação)
Narrativa Storica*Vencedor do Escritores Awards, Rascunhos de Ouro, Concurso Vênus, The wattys justo e Nova Era. Seria o amor capaz de sobreviver ao mais frio dos invernos? Na friagem polonesa durante a ocupação nazista, Evellyn é enviada para o campo de concentraçã...