A escolha me sufocava em angústia.
Era simplesmente impossível decidir qual coração eu dolorosamente partiria - além do meu - se um dos meus tigres ficasse para Durga.
Caminhando em um frenético vai e vem, minha mente atordoada mal registrou a discussão em hindi que se desenrolava ali próximo, entre Kishan e Ren.
De repente tudo ficou quieto.
Senti uma presença em minhas costas e estanquei. Penosamente, virei para ver quem era.
Olhos dourados me fitavam resignadamente, refletindo o que eu já sabia que seria dito.
"Kells, eu já decidi..."
Um ataque de pânico tomou conta de mim. Eu o cortei antes que ele continuasse.
"Não, Kishan. Não! Deve ter outro jeito. Me deixe pensar um minuto. Eu sei que existe uma outra saída. Tem que ter!"
"Tá tudo bem, Bilauta," murmurou complacente. "Eu sei que você fez sua escolha há muito tempo. Você já havia admitido seus sentimentos por Ren quando me passei por Saachi." Kishan deu de ombros, conformado. "No fundo, eu também sabia, só não queria admitir."
Ele deu dois passos, fechando a distância que havia entre nós, e pegando em minhas mãos, entrelaçou nossos dedos .
"Você trouxe paz e esperança ao meu coração, Kelsey. E esse é o maior presente que eu poderia receber em toda a vida."
Me desvencilhei de seus dedos afoitamente, dando um passo para trás.
"Eu não aceito..." balbuciei fracamente. "Eu só preciso pensar..."
Kishan nada disse, mas seu olhar condescendente era como uma flecha em meu coração.
Mas que droga! Nada de útil me vinha à mente. Meus pensamentos eram caóticos e doloridos, como um emaranhado de fios desencapados. E por mais que insistisse em ganhar tempo, eu sentia que não encontraria nenhuma resposta milagrosa, findando de uma vez o tenebroso conflito.
Consumida pela impotência, me joguei ao pé de uma árvore e sob as palmas das mãos, enterrei o rosto.
Lágrimas fartas escorriam pelos vãos dos dedos, fugindo do meu controle, levando consigo o resto de esperança.
Curioso como cenas do passado - as mais preciosas lembranças de nossas vidas - saltam à consciência quando nos deparamos com o fim.
Foi o que aconteceu comigo quando soube que meus pais tinham morrido.
Primeiro, o reconhecimento de que aquilo acabou para sempre; a assoladora impotência perante o forçoso fim.
Em seguida, a dor no peito ao imaginar o que poderia ter sido. O futuro que nunca iria acontecer. Os sonhos que não se concretizariam. E os arrependimentos que jamais teriam uma nova chance.
Eu sentia uma forte culpa por ter afastado Kishan em detrimento de Ren nesses últimos meses.
Eu amava Ren e tinha certeza que não poderia viver sem meu tigre branco. Mas sem ao menos me dar conta, aprendi a também amar Kishan.
E o que mais me machucava, foi ter sido injusta com ele, pois meu tigre negro me ofereceu a totalidade de seu coração tão livremente, quando apenas um pedacinho do meu estava disponível para ele.
Mas como? Como poderia ter dado mais de mim naquele momento?
Ren veio primeiro e me conquistou no instante em que o conheci.
Quando ele se foi, meu coração partiu com ele.
Mesmo depois de termos resgatado Ren de Lokesh, e meu coração ter retornado a mim, ele não era mais o mesmo.
Estava estraçalhado em mil pedaços.
Foi Kishan que me trouxe de volta à vida, e com seu carinho e paciência, o costurou pedacinho por pedacinho, dia após dia, de volta em meu peito.
Achei que conseguiria me entregar por completo ao homem que me deu uma nova chance no amor, mas seria uma traição imperdoável à Ren, e isso eu simplesmente não poderia fazer.
Ao mesmo tempo, não poderia escolher Ren e abandonar Kishan à tamanho sacrifício, pois essa seria uma traição tão grande quanto a outra.
E foi diante do sofrimento excruciante, da impossibilidade de sacrificar mais uma vez meu coração - e daqueles que tanto amava - que tive uma epifania.
O amor não se divide, não diminui, nem se consome. O amor, quando livre de expectativas - além do retorno do próprio amor - só se expande, ultrapassando as barreiras do tempo e do espaço.
O amor que deseja apenas a livre doação, não tem fim.
Com uma nova determinação, sequei as lágrimas e me levantei até onde estava Phet.
"Você me disse uma vez que estava chegando a hora de escolher."
"É verdade," respondeu, simplesmente.
"E você também me disse que ambos eram travesseiros num mundo de pedras. Que tanto um quanto o outro eram certos para mim," completei.
"Sim, Kelsey."
A afirmativa me injetou de coragem. "Então escolho os dois," declarei, decidida.
Ren e Kishan se entreolharam, em absoluta confusão.
Anamika ficou cabisbaixa, enquanto, ao seu lado, Sunil me encarava com curiosidade.
Phet sustentava a mesma aparência serena de antes.
Confiante de minha escolha, respirei fundo e deixei meu coração falar por mim.
"Phet, ficou claro para mim que a decisão nunca recaiu entre escolher um irmão ou outro, mas sim de escolher o amor. E o amor que existe entre nós é muito maior do que qualquer convenção social ou lei terrena," brandi, gesticulando com as mãos. "Fomos testados e subjugados aos mais dolorosos sacrifícios, tudo em nome do amor." Espalmei meu próprio peito. "Do meu amor pela história desses dois príncipes, e assim os libertar da maldição que os aprisionou em tristeza e solidão."
Olhei para os dois homens ao meu lado, e dirigi minhas palavras a eles, mais resoluta do que nunca.
"Para os salvar, eu daria tudo de mim, mesmo que isso significasse perecer no caminho."
Ren reagiu à minha declaração com dolorosa desaprovação, enquanto Kishan erguia o queixo, orgulhoso.
"E essas provações que tivemos que vencer juntos," continuei, "nos uniram ainda mais, pois nossos elos foram criados a partir do respeito, cuidado e doação um pelo outro, ao longo de nossa jornada."
"Isso, ninguém mais entenderia, pois ninguém passou pelo que passamos."
Eu fiz uma pausa, percebendo pela primeira vez o verdadeiro significado de nosso desfecho, e me tornei à Phet.
"O amor, enfim, venceu, pois fui fiel ao meu propósito. Eu nasci e cresci para este momento. Para ser a salvação deles, e eles, a minha."
O pouco de voz que me restava, saía em pouco mais que um sussurro embargado pela emoção.
"Phet, eu jamais poderia repartir esse amor, pois ele é tramado pelo mesmo fio. Separar a trama da urdidura significaria a destruição do tecido," expliquei em tom de súplica, desesperada que ele compreendesse a magnitude do significado que existia entre nós.
"E só agora entendo a razão do medo que sentia em perder os dois, aprisionando meus verdadeiros sentimentos por eles..." Inspirei uma vez, engolindo com dificuldade o choro que insistia em se formar na garganta." ...em não ter entregado meu coração completamente a Ren..."
Eu caminhei em direção ao lindo homem dos olhos azuis e peguei em uma de suas mãos.
O cenho franzido transparecia apreensão, e eu sorri docemente, o assegurando que estava tudo bem.
Em seguida, estiquei meu braço na direção do moreno de olhos dourados, até minha outra mão se envolver na dele.
"...porque meu coração também é de Kishan. E porque nós três, na verdade, somos só um."
As lágrimas que me anuviavam a vista caíram livres e desimpedidas, assim como eu ardentemente desejava me sentir.
Com um longo aceno de cabeça, Phet assentiu minha escolha.
"Muito bem, Kelsey. Seu pedido foi aceito," consentiu. "Você demonstrou sabedoria além de seus anos, pois o amor é a maior arma da humanidade. Ele é o único elo entre todos os seres e por isso, tudo pode e tudo vence."
Uma onda de alívio despontou dentro de mim, mas não me permiti comemorar antecipadamente. Faltava o veredito final.
Phet nos fitou longamente, até repousar o olhar sobre mim.
"Seus príncipes permanecerão com você. A idade deles será a mesma que tinham à época da maldição, só que agora serão homens mortais."
Eu perdi a respiração por um instante, ansiosa que houvesse alguma outra condição, um senão que não havia previsto.
Como nada mais foi pronunciado, entendi que era isso. Enfim, tudo havia acabado!
Soltei o ar preso dos pulmões com uma expiração exaltada.
A alegria que invadiu meu corpo era radiante. Todo o peso excruciante que carreguei nos últimos dois anos se desfez repentinamente, deixando uma gostosa sensação de paz no lugar.
Extasiada, me joguei nos braços de Ren e Kishan e ficamos abraçados pelo que pareceu uma eternidade.
Phet pigarreou, quebrando o momento mágico.
"Durga ainda precisa de um tigre," disse ele, encarando Sunil.
Compreendendo a deixa, ele repousou a mão grande no ombro de Anamika, e a fitou solenemente.
"Amada irmã, há muito tempo que sinto uma inquietação em minha alma. Fui traído pelo meu próprio orgulho e no processo traí você," se redimiu, apesar do semblante carregado de culpa. "Nunca foi minha intenção te ferir de maneira alguma."
Os olhos de Anamika refletiram, ainda que infimamente, a surpresa naquelas palavras.
"Sei que não há perdão pelo modo como te tratei," prosseguiu Sunil, "por ter te desrespeitado e abandonado na hora em que mais precisava de apoio. Mas se aceitares, irmã, me ofereço para ser seu tigre e fiel guerreiro."
"Juro a minha vida a ti, e a te defender da maneira que me for possível."
A brava guerreira parecia, ironicamente, ter sido desarmada.
"Sunil, você é meu irmão e eu te amo. Por favor, não quero que seja punido pelos erros do passado. Você tem o meu perdão," falou com ternura.
Ele, por sua vez, não parecia concordar.
"Eu agradeço, irmã, mas isso não basta. Desde o fim da guerra que tenho pensado em meu futuro servindo ao nosso povo," explicou. "Você provou ser uma mulher forte e independente e evidentemente que é a escolhida para nos liderar, Anamika. Você agora é a nossa deusa guerreira." afirmou, com reverência em cada palavra. "E não há outro lugar para mim nesse mundo senão servir à minha irmã, o sangue de meu sangue, eternamente."
Sunil se pôs de joelho e cruzou um dos braços sobre o peito.
"Será uma honra ser seu Damon."
Anamika tinha os olhos marejados fixos no irmão. Com um suspiro, seguido de um sorriso, ela esticou o braço e ergueu o irmão para junto de si.
"Será uma honra ter meu irmão como meu eterno companheiro," afirmou, plantando um beijo na testa dele. "Mas como pretende se transformar em Damon?"
"Ah, isso cara Durga, é um trabalho para o amuleto," interrompeu Phet.
Fechando os olhos, ele levantou o objeto místico em suas mãos e iniciou um cântico em voz baixa.
Eu não conseguia discernir as palavras, mas elas foram crescendo em uma cadência própria, forte e repetitiva, que me fez imaginar se Phet havia entrado em transe.
Inesperadamente, a energia ao redor de Sunil pareceu se modificar, como se moléculas grandes se agitassem com muita velocidade em um espaço apertado.
Então vi o corpo do homem dar lugar ao do tigre, como havia testemunhado tantas vezes antes.
Só que esse tigre não era nem branco nem negro, mas de um laranja vivo com listras negras, que se estendiam do focinho até o rabo.
"Exatamente como o tigre dos templos de Durga..." sussurrei, admirada.
"Bem observado, Kelsey. Novamente o destino os levou aonde queriam que chegassem."
"Como assim, Phet?" perguntei, confusa.
Ele abriu um sorriso torto e misterioso, de quem sabia muito mais do que deixava transparecer.
"Todos temos nosso norte a seguir, mas quem escolhe o caminho para chegar lá somos nós. O que está escrito, está escrito."
"Quer dizer que nunca foi o nosso destino sermos os tigres de Durga?" questionou Ren, com a testa enrugada.
"Exatamente", retrucou Phet.
"Então porque precisamos voltar no tempo e passar por tantos desafios?" inquiriu Kishan, dando voz à pergunta que pairava sobre a mente de todos.
"Porque o destino tem lições valiosas para ensinar a todos, meu filho." Phet tinha o dedo indicador eriçado. "Era necessário passarem pelas situações que passaram para hoje saberem o que sabem. E porque o futuro depende do passado."
Ele encarava nossas expressões confusas com seus pequenos olhos cheios de sabedoria.
"Às vezes, os homens usam o livre arbítrio para desequilibrar o princípio do destino e todas as coisas saem de eixo. Mas o universo, em seu auto equilíbrio, dá a chance a alguns escolhidos para reverterem a desarmonia." Ele pausou pela fração de um segundo. "Vocês foram os escolhidos para destruírem Lokesh e o mal que ele causou por tantos séculos," concluiu, apontando para os irmãos e a mim.
Ficamos todos mundos, contemplando a complexa resposta de Phet.
Por fim, ele se dirigiu a nós três ainda com o amuleto nas mãos.
"Chegou a hora de partir," declarou.
Timidamente, me aproximei de Anamika e estendi uma mão. Ela me puxou para um forte abraço e na hora, soube que todos os nossos desentendimentos perderam a importância naquele momento.
Enquanto os irmãos se despediam da deusa, fui a Sunil e passei a mão em seu pelo macio, aproveitando minha última oportunidade de afagar um tigre.
"Prontos?" Quis saber Phet.
Ren, Kishan e eu nos entreolhamos. Sim, estávamos mais do que prontos para findar esse capítulo de nossa história.
Phet girou o amuleto e um vórtice de luz se abriu em nossa frente. Como havíamos feito da primeira vez, corremos os três, de mãos dadas, para o atravessar.
Só tive tempo de ver em relance a flor de lótus no pescoço de Durga. A escuridão nos engoliu e me concentrei em minha respiração, me esforçando ao máximo para não vomitar.
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A OUTRA ESCOLHA (Fim alternativo de "A viagem do tigre")
Roman d'amourÀs vezes, eu me envolvo emocionalmente com uma história de maneira tão profunda, que automaticamente me transponho para uma realidade paralela, aonde os diálogos imaginários entre eu e meus personagens queridos duram horas a fio. Nada complexo, no e...