Nada como um suicídio todas as manhãs.

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Não estou acostumada a chorar. É isso. Estou terminando minha carta de despedida ao mundo e me preparo para a melhor parte deste show. Que show? Bem, uma longa história. Um cara que eu amava pra caralho, mas me trocou por outra. Seu nome é Harold Lockwood. Ele me enganou, me iludiu, e no final de tudo ainda me fez isso. Sem ao menos me deixar nada, nem uma lágrima, uma porra de uma lágrima. "Eu não sei se te amo. Acho que temos que dar um tempo, conhecer novas pessoas..." foram as palavras dele. Eu o odeio. Ele era um cara bonito, ah como era. Um cara divertido, me confortava sempre a sua companhia, mas o seu maior problema era o amor. Eu o amava, de verdade, sem aqueles clichês nos quais se percebe que era só ilusão, só uma fase de relacionamento, que não se ama de verdade, que apenas se gosta. Quatro anos não são só uma fase. Em tudo sempre há um problema. Ele não sabia amar, nem ao menos sabia se me amava de verdade. Inseguro. Maldito. Eu um dia acreditei que ele saberia, que ele sentiria o que era pra sentir. "O tempo me mudará um dia" dizia ele, mas ele não reconheceria o que é o amor nem se ele queimasse na porra do seu peito. O cupido nunca encontrou a marca dele.
Olho mais uma vez para a carta que escrevo, verifico os erros ortográficos e a caligrafia. Está boa o suficiente. Imagina que tolice, você suicida e deixa uma carta, mas ninguém consegue lê-la pois sua letra não é legível. Perderiam mais tempo tentando entender o que você escreveu do que se lamentando pela sua morte.
Espera, está faltando algo. Digo, na carta está faltando algo. Pego a caneta que está do lado da carta na escrivaninha de madeira escura. Lá vou eu de novo. Meus olhos estão cobertos de lágrimas e meus pulsos latejam de dor enquanto me esforço para escrever minhas últimas palavras. Último. Já pensou o quanto esta palavra é forte? A última vez sempre é a vez inesquecível, pois é a última lembrança que terá de algo que gosta e eu gostava da minha vida. O meu sangue escorre e pinga em alguns pedaços da carta - nada que atrapalhe a leitura. Lágrimas, sangue e palavras é tudo que sai dela. A raiva e a dor me consomem. Começo a chorar novamente. Droga, como suicídio é algo complicado. Maldito seja você, Harry. 'O que seria de mim se não o conhecesse?' Me pergunto. Talvez alguém vivo. Decido não limpar meu rosto. 'Deixe as lágrimas escorrerem' penso eu.
Dobro a carta três vezes e a selo com um adesivo de meu caderno - um daqueles de coração partido. Para deixá-la ainda mais irônica, escrevi de caneta azul "Querido Harold" na parte branca da carta. Perfeito. Agora os preparativos! Puxo a gaveta da escrivaninha e pego uma caixinha de metal. Lá dentro havia algumas das coisas que coloquei, apenas algumas recordações de uma garota de 20 anos. Uma caixinha de lembranças. Papéis, fotos e uma rosa. A rosa. A mesma que ele me deu quando me pediu em namoro. Mais lágrimas. O show começa em alguns minutos. Deixo a carta e a rosa em cima da minha cama. Ela está perfeitamente arrumada. Digo, a cama. Me lembro do artigo que li semana passada. 'Nada como um suicídio todas as manhãs'. Nele dizia que deveríamos experimentar a morte ao menos uma vez pela semana, fazer isso o faria se sentir vivo. Amei aquele artigo, mas nunca imaginei que iria seguir o que ele fala de verdade. Digo, no sentido literal. Nunca me senti tão morta e tão acabada. Minha visão começa a turvar e minha pressão abaixa. Os cortes nos meus pulsos escorriam mais sangue. Os cortes que fiz não são tão profundos, ainda tenho alguns muitos minutos para aguentar. Tenho que me apressar ou vou morrer antes de chegar ao terraço.
Saio do quarto e vou em direção à porta. Passar pelo meu querido apartamento em um momento desses é a mais pura tortura. Tudo o que construí será colocado em um necrotério, um arquivo. Para eles são só arquivos, para mim a minha vida pessoal. O prédio onde vivo é bem curto comparado a outros nas redondezas, mas eu não ligava muito. Eu amava aquele lugar. Eu o amava. Seus olhos azuis como a noite escura, seus cabelos longos e lisos partidos ao meio. Ele parecia um mauricínho com suas roupas estilo anos 60, mas eu gostava. Eu gostava dele... Não estou pronta ainda.
Acho melhor pegar algo melhor para me vestir.
Volto ao quarto e visto uma camisola, apenas ela. Nada de calças, camisa, camiseta, vestido, que seja. Olho no espelho de corpo inteiro em meu guarda-roupa. Eu pareço uma garota possuída genérica de filmes de terror, só faltava um rosto horripilante -apesar de sempre me achar feia. Me sinto suja. Digo, por deturpar meus padrões. Perfeito. Digo, minhas vestes. Agora sim, posso concluir o que comecei. 'Eu devia ter feito uma lista antes disso tudo?' penso eu. Digo, antes de começar a fazer isso tudo. Sinto que esqueci algo todas as vezes que me guio até a porta e encosto a mão na maçaneta. 'Anotações para um possível suicídio'. Item número um: uma carta de despedida dizendo tudo que quer dizer. Item número dois: alguma lembrança de quem o fez se matar, caso a pessoa for ao seu quarto ela sentir o peso da culpa - ah, se lembrar de deixar a carta em cima da cama. Item número três: vestes adequadas. Item número quatro: coragem para realizar isso tudo. Item número cinco: um bom motivo.
Bem, agora já era.
Caminho até porta de casa novamente. Meu sangue pinga pelo chão onde passo. Estou tão destruída que tenho que ficar apoiada nas paredes para conseguir seguir o caminho sem cair ao chão. Finalmente estou pronta para o que vem a seguir. É engraçado. Depois de anos de perguntas sobre o assunto, eu vou finalmente descobrir o que vem após a morte. Ponho a mão na maçaneta e a giro com dificuldade, encostada na parede para não cair no chão e lá mesmo falecer. Hoje não será tão difícil assim e então subo as escadas.
Estar na ponta do terraço de um prédio de 7 andares a 40 metros do chão não é algo que eu queria para mim esta tarde. As marcas de gilette ainda estão ardendo nos meus pulsos. Eu o amaldiçoo.
Um dia você ama, no outro está no fundo do poço, ou no topo do Ermit's palace. E aqui estou eu no terraço com o vento atrapalhando meu cabelo e secando minhas lágrimas. Olho mais uma vez para baixo e sinto que não tenho tanta coragem. E daí? Se eu pular não haverá mais preocupações. Chuto uma pedra para baixo e vejo o seu percurso até o chão, se espatifando. O vento fica mais forte e levanta minha camisola. Em minha mente já começam a passar flashbacks da minha vida. Ponho um pé na sacada. Flashbacks de nós dois, os piores melhores momentos da minha vida. Na praia tomando sorvete e procurando conchas enterradas. No parque em um piquenique - até hoje não entendo o porquê de você não trazer café ou suco. Momentos ao seu lado, para no final de tudo me trocar por uma vadia qualquer. Maldito.
Tudo que achei que aconteceria realmente aconteceu. É incrível como a maioria dos boatos sobre a pré-morte são reais. Os flashbacks, a convicção e aceitação dela. Dói tanto quanto achei que doeria. Digo, meus pulsos. Não queria estar aqui hoje, mas o que posso fazer? Tudo estava como planejado. Eu não acredito em Deus, mas se ele existisse será que isso faria parte dos planos dele? 'Cronograma divino: acordar, criar o universo, tomar café, foder com a vida de alguém... Bom acho que já encerra a cota de hoje'. Ponho o outro pé na sacada.
Bom, agora é a hora. Há muitas pessoas lá em baixo, se preocupando apenas com a vida de merda delas. Egoístas. Faltam alguns minutos até que eu caia por falta de força. Meu sangue está escorrendo como nunca. Olho para meus braços cortados e me vejo branca como papel. É agora. Procuro algo grande o suficiente para jogar lá em baixo e chamar a atenção deles. Procuro no terraço do prédio o que seria bom. Minha condição só vai atrapalhando minha procura, até que acho um ventilador velho jogado aqui por algum vizinho que não resolveu o restaurar. Era um ventilador pequeno, sem a hélice e com os raios todos arrebentados. Será que é pesado? Carrego ele com as mãos e posso dizer que não pesa nem 4 kilos. Perfeito. Digo, o ventilador.
Subo novamente na sacada com o ventilador em mãos e observo lá embaixo. Não tenho a intenção de matar alguém - imagina se atiro isso em uma criança? - Só preciso chamar a atenção deles. Calculo o tempo perfeito para que o ventilador não caia em cima de ninguém. 'Um objeto de 4 kilogramas caindo à 40 metros do chão há... quantos quilômetros?' Penso eu mesma enquanto calculo tudo. Pronto, agora é só atirar. Largo o ventilador no chão, perto da beirada. O plano é chutar o ventilador para o chão quando estiver gente vindo, mas quase saindo de seu alvo, e que ele atinja o chão fazendo o barulho nescessário para chamar a atenção de alguém. Executo meu tão bem feito plano e dá tão certo como imaginei. Um idiota qualquer com um chapéu que não consigo saber direito o que é se assusta e olha para o alto. Na verdade são 3 idiotas, o de chapéu, o sem chapéu e um que parece uma menina ou é só um cara de cabelo grande - não dá pra diferenciar gênero à 40 metros de distancia.
- Olha! Tem alguém no topo do prédio! O que ele está fazendo? - Diz o idiota de chapéu.
- Meu deus! Acho que ele vai se jogar de lá! - Diz o suposto cabeludo que no caso deve ser o gênio da turma.
- Alguém liga para os bombeiros!!!
E assim começa um efeito dominó. Outros me olham com os olhos arregalados e repetem o processo, cada um falando mais asneira que o outro. E assim começa o desespero falso. Já são tantas pessoas que um meio círculo ao redor do prédio com mais de 100 pessoas já foi formado. O que esse povo tem na cabeça? Devem ser muito desocupados para parar seu cotidiano só para ver uma garota em cima de um prédio. O ser humano é ridiculamente fácil de surpreender. O pior é que alguns nem sabem o que está acontecendo, eles apenas estão ali seguindo a massa maior. Se perguntarmos o que fazem aqui metade não vai responder nada. Bom, agora é hora de terminar o que comecei.
Minha pressão está muito baixa e logo eu morrerei, seja caindo daqui ou por falta de sangue e oxigênio no corpo - ah, esqueci de lhes dizer que estou tendo dificuldades para respirar, além da incessante dor que é cortar os pulsos. Então é isso. Obrigado por tudo que me proporcionou do bom e do melhor, mãe e pai. Coração bate mais fraco. Obrigado tia Shell por me trazer tanta diversão com suas histórias sobre deuses. Pressão abaixa. E obrigado, Harold, apesar de tudo o que fez eu ainda amo você. Desmaio em cima do prédio. Adeus, mundo que um dia prometi tonar um lugar pior pra quem merece e melhor pra quem sofre. Meu corpo desfaz sua postura e assim meu fim está concluído. Obrigada por assistirem meu show. Obrigada.

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