A gente pensa que sabe...

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Branquinho, você vai estudar esse ano. A Cleonice já matriculou vocês... O Silva vai estudar junto com o Jesiel, e tu vai estudar junto com Joelma...

Mas a Joelma é mais nova que eu...

Não te coloquei antes na escola, por que tu é muito pequeno e muito nervozinho...

Segunda a aula já começa...

Oba, mãe... que bom... quero um caderno com costa de arame, uma farda bem bonita e lápis de cor igual os da Elisa...

Calma... amanhã vou comprar sua carta de ABC, na quitanda do seu Zeca...

A Gerna me ensinou a ler mãe...eu sei ler, ABCD.... Amanhã vou acordar cedinho..

Os meninos estão todos na casa da Nonata. O Juscelino chamou eles pra lá... ele agora está namorando.. pode ir lá com eles antes de você dormir...

Mãe, o tio está doente de novo?

Não meu filho. Ele está namorando com uma moça, para casar novamente...

Mãe, e como é que ele namora... tem que namorar para se casar?

Vá pra lá, que você verá... só ouço risadas da casa da Nonata...

Abenção tio...

Deus abençoe... chega mais perto, tu tá com medo da Erinelda é?

Oi Erinelda...

Vem, menino. Vem aqui... o Juscelino vai me apresentar pra ti...

Vem, Braco.... tu tá com medo do beijo ser em ti... é?

Hahaha.... agora ele tá vermelho, tio... e já tá todo se tremendo...

Tô tremendo, não tio... é mentira dele...

Fala alguma coisa pra Erinelda, meu filho...

Erinelda, eu vou estudar amanhã...

Esse é o Branquim, Erinelda.

Tu vai me chamar de tia, né, Branquinho...?

Tá bom... eu vim ver como é que o tio namora... eu nem sabia que era com uma pessoa, mas como é que ele faz?

Hahaha a gente tá namorando menino... tu não está vendo?

Mas eu não tô vendo nada. Só sua cadeira que tá muito perto dele...

Você ainda não conhece a peça, Erinelda...

Quando a gente ir embora você vai ver ele me dar um beijo, tá Branquinho?

... Serginho, você veio..?
Olha a Lilia, também... o Fernando...

Quando a professora chegar é que vai abrir a sala....

Serginho tu enxerga pelo congobol da parede?.... Eu não consigo...

Vem que te levanto... taí, você tá conseguindo?

Não dá Serginho, eu não consigo ver dentro da sala, só tu que é maior...

Tem um bicho dentro da sala, nos vimos, tem um bicho dentro da sala... ele tá gemendo... to ouvindo os passos dele... olhem aqui... pelo buraco, vocês vão ver o bicho...

Comecei a sentir o clima colegial. Eu era o mais pequeno da escola inteira, os garotos da segunda série, para mim, pareciam veteranos do exército. Eles gritavam alto e pulavam como cabritos ao redor da pequena escola, enquanto a professora não chegava... tudo para mim era um novo mundo que surgia... quando eu chegava em um novo local, eu não ligava muito para a aparência física do ambiente. A primeira coisa que eu sentia de diferente era o odor e a percepção etéria, do local, das imagens e dos sons... o cheiro de giz com o quadro negro, o cheiro de lápis e dos cadernos e livros, o cheiro das carteiras e da sala de aula... até o cheiro do banheiro para mim, eram um marco único, que eu carregava em minhas narinas e marcavam para sempre meus principais momentos. A Campanha da fraternidade, católica, tinha panfletos colados em todas as paredes da escola, com o rosto de um menino negro e a frase escrita em baixo: Eu vim para que todos tenham vida... só na primeira série que consegui ler a frase... todo dia eu perguntava: professora, por que aquele menino morreu... ? Ela me dava, todo dia, explicação do cartaz e eu não entendia nada. Pra mim o rosto desenhado era de um menino morto... mas por causa da cor e da tristeza estampada no rosto do menino. Eu jamais me sentava em uma cadeira próximo ao local. Eu só queria sentar próximo ao Serginho, pois o rosto dele era vermelhinho, e do Amauri, pois tinha o corpo robusto, e era um moreno com a voz mais grave que a dos outros de nossa idade... e eu ainda falava para a Lilia... o Amaury é muito bonitinho... minha mente era sempre afastada da realidade, meu mundo era sempre o interior. No momento em que os alunos brincalhões, da sala de aula, começaram a gritar e a correr tropeçando um nos outros gritando e gargalhando: eu ví um bicho dentro da sala... saí correndo com o coração em disparada... quase saindo pela boca. o Serginho me segurou para que eu não corresse para casa... meu cérebro mais parecia um visor de TV, em que podemos visualizar milhões de caras e corpos, por segundos... cada bicho, que eu imaginava estar lá dentro, era mais feio que o outro.

Os Anjos Também SofremWhere stories live. Discover now