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A luz se acende. Daniel entra na sala, senta-se na frente do computador. A tela o instiga a trabalhar. Ele olha. Ela olha de volta. "Venha para mim", ele a ouve dizer. Um risinho histérico escapa pelos seus lábios. Ele olha o teclado. Está tremendo. Vai e volta na sua frente, como se estivesse recuando e avançando, pronto para dar o bote final. Na janela a suas costas Miguel liga o som alto e atira-se numa poltrona. Ouve Pantera com as luzes desligadas. No seu aparelho de som a única luz do mostrador é verde. Os quadros na parede são apenas vultos quadrados escondendo-se nas sombras. "A cinqüenta metros de altura as pessoas parecem formigas", constata ele numa reflexão deslumbrada. "Pequenina sociedade dividida em castas, feita para o trabalho".
"Na janela ao lado posso ver o meu vizinho assistindo ao jogo, e vejo-o como uma pessoa, única, particular. Mas lá de cima... Todos parecem o mesmo. Movendo-se da mesma maneira em várias direções". "Lá de cima as coisas parecem tão diferentes...". A luz verde reflete seu rosto. Parece uma grande chama agora. Ilumina todo o quarto. Nessa luz cálida esmeralda Miguel adormece. E sonha... Nos seus sonhos não há mais a luz verde do rádio. Não há mais nenhuma cor. Miguel sonha em preto-e-branco. Neles, a sua jaqueta brilha palidamente num fundo onde o sol é muito grande e a tudo ofusca. Lá de cima ele observa a multidão movimentando-se em massa em torrentes caóticas.
Ele contempla tal imagem sorrindo, sentindo o sol aquecer seu rosto muito mais do que se estivesse lá embaixo. A imagem é surreal. Seu décimo oitavo aniversário e ele está lá encima, observando. Algumas pessoas o pedem para descer, mas ele não as ouve, é muito distante. "Eu sou a evolução", ele grita. "Sou aquele que vem depois do homem. Sou o além do homem". Em seus sonhos ele observa tudo de muito longe, como um ser à parte, distante. Ele é o Super-Homem. Em seus sonhos. São cinco horas da manhã e ele cai. Seu vôo é interrompido por uma rajada atômica e ele acorda no chão do seu quarto. A luz verde continua iluminando o lugar.
A música parou. Ele olha assustado para os lados. Levanta e vai para a cozinha beber água. A luz amarelada da lâmpada incandescente fere seus olhos. "A luz amarela é má", ele pensa. Abre a geladeira, pega uma jarra e se serve. "Nada como a luz roxa da geladeira". Ele volta para o quarto e a luz verde volta a ser um ponto na escuridão. Em frente à janela ele observa os outros prédios. Alguns estão brilhantes, outros mostram apenas penumbra. Pessoas trabalhando, pessoas jogando em seus videogames e computadores. Algumas lendo. Sidney Sheldon. Conan Doyle. Louis Stevenson, quem sabe?
Na janela do seu vizinho a tv ainda está ligada. Lança breves flashes azul-acinzentados na sala. Na poltrona está o vizinho. A cabeça atirada para trás, as pernas estiradas para frente. Os braços abertos caindo pela poltrona. Na parede, nos rápidos vislumbres fornecidos pela televisão, Miguel vê metade do cérebro do vizinho, rodeada por uma grande poça de sangue vermelho escuro. Miguel sabe que não está sonhando pelos últimos três minutos. Sabe que não está sonhando agora. Porque seus sonhos são em preto-e-branco. Ele estava quase entrando. Seus dedos estavam quase tocando o teclado. Ela quase o devorara, mas o barulho o fez acordar e ver a besteira que estava fazendo. Começou a chorar. Chorava, e em seu choro entendia a loucura dos seus pensamentos. "Mas o que eu estou fazendo?", ele se perguntava. "É apenas uma máquina. Não pode me engolir. Não pode me fazer mal". Começava então a achar graça do seu comportamento infantil e ria. Ria por ser tão tolo. Ria por pensar em tais besteiras. Levantou-se satisfeito e enxugou as lágrimas. Foi até a frente da janela e olhou. Viu um rapaz olhando para ele no outro prédio. Uma luz minúscula vinda do aparelho de som conseguia iluminar todo o seu quarto. Sua camisa branca refletia fluorescente. Saiu da janela. "Esses bisbilhoteiros...". "Por que não cuidam da própria vida?".
Voltou a sentar na frente do computador. O som agora estava muito distante, fora há séculos atrás. Em outra janela Lígia acabava de acender outra luz. Acordara com o barulho. Banheiro. Pia. Água. Cozinha. Luz. Copo. Geladeira, copo, geladeira. Luz. Quarto. Mais uma vida indo dormir. Apenas Miguel observava o barulho. Os sons da noite passavam pelos seus olhos enquanto ele olhava para o corpo do vizinho. A tv lançando flashes doentios. Miguel volta sua atenção para o quarto. Coloca um disco no rádio e a luz verde volta a ter sentido. Deita-se no sofá e volta a sonhar. Seus sonhos de Super-Homem.
Oito minutos. Oito minutos é o tempo que leva para a luz do Sol chegar até a Terra. Em oito minutos é possível se fumar um cigarro inteiro. Em oito minutos se toma um copo de cerveja. Em oito minutos se conta uma piada ou inventa-se uma história. Oito minutos na escuridão, tendo ainda o Sol acima de nossas cabeças. Em oito minutos Miguel acorda e sai de casa. Daniel desencosta a cabeça do monitor. O vizinho de baixo é levado para o necrotério municipal. Em outro prédio, Lígia levanta e liga a tv. George desliga o videogame e vai dormir.
Ouve sua mãe gritando da cozinha. Onze horas da manhã. George está dormindo. Romero é velado no cemitério. Miguel pluga seu contrabaixo. Daniel toma um café na gráfica. Lígia observa a coleção de carrinhos do seu patrão. O sol se esconde em uma nuvem densa. A tempestade chega e é forte.
São seis horas da tarde. Nos carros, os faróis estão acesos e as gotículas embaçam os pára brisas. Os relâmpagos iluminam a rua úmida. Um poste cai na esquina. Uma árvore se curva ao abraçá-lo. Lígia pega o ônibus para voltar para casa. Na sua bolsa dois carrinhos de brinquedo chocam-se como num acidente estrondoso. Daniel volta do trabalho e no caminho pára ao ver o acidente. Pessoas se amontoando na rua. Latarias amassadas e muito sangue. Daniel dá a volta e segue para o computador. Miguel está num bar, bebe com seus amigos. Uma cerveja, um cigarro e uma piada. Dá tempo de fazer os três juntos. Apenas oito minutos. E a colt .22 escondida no bolso. A tempestade fica mais forte. Daniel está na frente do monitor. Suas mãos tremem. No bar, Miguel também treme. "Qual é mesmo o seu sobrenome?", alguém pergunta. "Por que as pessoas nunca dizem seus sobrenomes?" "Se eu não disser meu sobrenome posso ser qualquer um. Você é qualquer um!".
Miguel treme ao ver seus rostos. Estão descoloridos. Não têm cor. George acorda e vê que horas são. Dez horas. Hora de voltar ao jogo. A corrida está quase ganha. Lígia esconde os carrinhos em uma gaveta. Romero continua dormindo sob a terra. Meia-noite e a tempestade dá seu último acorde. Miguel dispara. "São sonhos meus. São criações minhas. Eu os observo. Eu os criei. Eles não têm cor..." Daniel entra. Está dentro do computador. Dentro da máquina. Foi devorado. Faz parte dela agora. Uma fagulha elétrica desliza pela rede. O monitor se desmancha e suga sua face para dentro. George termina a corrida em primeiro. Pela janela ele percebe o clarão. "São fogos... fogos para mim, o campeão...". Daniel está dentro da máquina. Miguel fora de controle. Lígia está rezando. "Ó Deus, Bom e Misericordioso. Perdoe esta tua serva, pois ela é fraca e pecadora. Não sabe controlar a tentação. Dai-me forças, ó Pai, para manter longe de mim o pecado". Romero descansa.
Uma hora da manhã. Não há mais tempestade. Miguel volta para casa. Ele olha para cima e vê as janelas. Cada uma com seu brilho. Em um apartamento, Daniel desfigurado devorado desmantelado. Em outro, George. Cochilando, seu carro derrapado. Mais um e Lígia, vomitando no lixo da cozinha. "Perdão, Senhor. Perdão". Os outros, apenas escuridão. Apenas mais obscuros. Miguel continua andando pela rua, com uma leve chuva batendo em seu rosto. "Se eu estivesse lá em cima poderia voar sobre as nuvens". A pequena colt o acompanha, muda, envergonhada pelos gritos. Miguel vai para casa. Mais uma noite de sonhos em preto-e-branco e Super-Homem; e sua luz verde que ilumina todo o quarto. Enquanto isso, as janelas continuam observando...
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Sobre Tempestades e Paraísos
Mystery / Thriller"Eu miserável! Para que lado devo voar Infinito ódio e infinito desespero Para qualquer lado que voe é o Inferno; eu sou o Inferno; E, nas mais baixas profundezas, profundezas ainda mais baixas Também ameaçam me devorar, abrindo-se largas, Para quem...