So-Frê

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- So - frê... So - frê... Variavelmente a cada quinze segundos, vinte no máximo e mais uma vez a palavra maldita era entoada e naquele estado de insônia que me encontrava as duas sílabas pronunciadas traduzia de maneira cruel toda a agonizante situação que me encontrava. Três noites em claro trabalhando, e uma quarta agora se enfileirava como se fosse um gatilho sendo levado à retaguarda em câmara lenta que poderia, intencionalmente ou não, ser acionado. Meu estado nervoso era deplorável. Apenas farrapos velhos e sujos que se agitavam trêmulos no vento arredio. Cada sílaba que soava pausadamente me retalhava em mais dois cortes, e eu cada vez mais destruído, me virava de um lado para o outro da cama. - So - frê... so - frê... Minhas mãos estavam tremulas e meu corpo inteiro parecia dominado por um torpor que nenhuma posição me fazia relaxar. De lado, de costas, de bruços, com camisa ou sem, com lençol ou sem, com travesseiro ou sem, cobrindo o rosto ou não, braços por sobre a cabeça ou ao longo do corpo, pernas encolhidas ou estiradas. No fim me dei conta que era como uma coreografia ridícula e maldosa a que estava sendo submetido, tendo como música de acompanhamento apenas dois acordes que pareciam brotar das profundezas do abismo e que me arrastava. Eu tentava me agarrar ao que restava tentando manter minha sanidade, mas estava sendo arrastado à beira da loucura. - So - frê... so - frê... Existem dias que não são nossos dias. Existem momentos em que um azar se emenda a outro e mais outro e mais outro, e quando nos vemos, beira ao inacreditável a situação por qual nos deparamos, enfaixados como múmia em faixas deterioradas. Pra um cético descrente em espiritualidade, me pego pensando em orações, simpatias, ou algum tipo de descarrego como banhar-me em pipoca – a que tanto critico de banho de isopor em brincadeiras com meus amigos como solução quando algo ruim acontece – mas esses pensamentos que fragilizam o ser humanos fazendo-os curvar diante de seus medos, nunca fizeram parte de minha personalidade. A razão sobrepuja tudo, sejam fobias, seja depressão, seja azar. Se as circunstâncias me levaram à situação que me encontro, a lógica do raciocínio me fará solucionar a degradante hora em que peno. Não sei orar. Pedir um favor apenas por estar numa situação que foge momentaneamente do controle não é sinônimo de fé, e certamente o mundo está cheio dos que apenas pedem esmolas de ajuda nas horas de dificuldades. Eu aprendi a minha vida inteira a não ocupar Deus com problemas que eu posso resolver. Eu não sou Deus, mas se fosse, não atenderia aos ingratos. Justiça seja feita, não atenderia ao oportunismo da situação em que se encontra uma pessoa como eu. Mas a infelicidade da vez é que faltou energia e não há como passar o tempo na frente da TV para esperar o sono chegar, ou ouvir um cd new age e tentar relaxar. O celular que poderia tocar algum mp3 ou sintonizar alguma estação de rádio está descarregado, e o puto tremor das minhas mãos deixou as três últimas pílulas de calmante Tranzinal descer pelo ralo da pia. - So - frê... so - frê... Olho para o teto escuro tentando distinguir os traços do telhado.  Arranho meu couro cabeludo com minhas unhas e seguro firme meus cabelos e tento ter na dor um momento de vaga lucidez: - Poderia ser só a insônia. Poderia ser só a insônia e não seria tanto. Poderia ser só a insônia e eu estaria bem, se não fosse o piado dessa maldita ave agourenta. A infância me veio através das lembranças com seus mitos folclóricos e me surpreendo ao lembrar algumas ocasiões. Duas pra ser exato. Intrigantes e que neste momento o canto de apenas duas notas, agourento e incessante, torna-se familiar e me faz voltar no tempo. Duas noites em que o sono veio um pouco mais tarde, e algo peculiar as tornou diferente e um tanto incômodas, tanto que perguntei ao meu irmão quando tive oportunidade. “- Que bicho é esse que canta a noite toda?” “- Sofrê. Eu ouvi a vó falando que é alguém que vai morrer.” Coincidência triste, na manhã seguinte, minha mãe ter me mandado buscar um pouco de açúcar na casa da vizinha, e após muita insistência em chamar e ninguém atender, me aventurei em pular o muro e com algum esforço motivado pela curiosidade infantil, pular, segurar a grade e olhar pelo vidro da janela. Ela olhava pra mim. Sentada no chão, recostada na cama com a cabeça pendente para o lado, as duas mãos em garras segurando o vestido à altura do coração. Aquela expressão de dor em seus olhos arregalados me impeliu e cai de costas. Corri. O desespero me roubou a voz e não conseguia falar nada de forma compreensível. Só depois de algum tempo e muita insistência, pude dar a fatídica notícia. Por várias noites aquela face mortuária invadiu pesadelos e noites. - So - frê... so - frê... Depois de tantos anos ele está de volta. Uma coincidência desprezível e odiosa, ser atormentado de forma tão incomum, em um momento em que a fragilidade dos nervos está seriamente abalada. O lento estalar das folhas ao vento, o som gotejante e insistente de uma torneira, o tique-taque do relógio na parede; podem ser tão torturantes quanto os malévolos instrumentos de tortura da idade média. A consciência fragilizada torna tudo tão insuportável que facilmente nos leva a cometer qualquer ato que fosse tido por loucura. Enfiaria uma longa agulha em cada um dos meus ouvidos para ter silêncio nessa hora. A vítima sou eu. Minha prisão, minha cama e meu quarto. Meu inquisidor um pássaro qualquer lá fora. Cantando as mesmas notas repetitivas. - So - frê... so - frê... E o que mina nossa razão, com a razão deve ser combatido. Execrado. Extirpado. Pulei da cama ensandecido e corri buscando minha caixa de utensílios e nela uma lanterna, não tive paciência e virei a caixa espalhando no chão uma torrente barulhenta de ferramentas e peças velhas. Agarrei a lanterna e acionando-a continuou apagada. Espalhei o restante do monte de entulhos e encontrando as pilhas às inseri na lanterna, tentando em vão conter o tremor das mãos tremulas, a acendi e encontrei um rolo de fita adesiva usando a própria lanterna acesa para espalhar tudo no chão. Um feixe de luz cortou a escuridão do quarto e corri a procura da velha espingarda de caça sobre o guarda-roupa, enchi a mão com o que pude pegar de cartuchos e coloquei no bolso, municiei a arma e afixei a lanterna no cano usando a fita adesiva. Sorri abrindo a porta e sai porta afora. - So - frê... so - frê... - Pois vamos ver quem vai sofrer nesse instante, seu maldito. A noite fria caiu sobre mim e pra minha surpresa estava menos escura do que esperava. A adrenalina sobre meus nervos aflorados pela insônia parecia transformar cada sombra da vegetação, em monstros que me estendiam seus braços para me tocar, e várias vezes usei o cano da espingarda para me livrar deles. - So - frê... so - frê... O canto agourento continuava e por mais que o barulho da folhas que pisava fosse relevante, ele não se intimidava. Zombava da minha fúria. Fazia pouco do meu estado e quanto mais me aproximava, mais alto era seu piar. Um calafrio percorreu minha espinha ao vê-lo pousado no arame da cerca a uns três ou quatro metros a minha frente. A leve câimbra que sentia se transformou em formigamento que se estendeu por todo lado esquerdo do meu corpo e trêmulo ergui a espingarda apontando o feixe de luz em sua direção. Uma pequena mancha negra se destacava imóvel e nela dois pequeninos olhos brilhantes. A arma erguida tremia e o gatilho parecia emperrado. Forcei o máximo que pude tentando acioná-lo e o maldito pássaro apenas me olhava passivamente. - So - frê... E foi a última vez que ouvi seu canto. Com um esforço agônico acionei o gatilho e um estrondo ecoou pela noite afora. Um clarão se abriu e com ele, faíscas dos chumbos açoitando os arames da cerca ao redor de onde estaria a ave amaldiçoada. Eu estava caindo, trêmulo, numa convulsão paralisante sentindo todos meus músculos se enrijecerem e o pavor me invadiu tão rápido e nem mesmo sei se gritei. Pelo menos não pude me ouvir. O flash rápido do clarão revelou que alguma coisa, ou alguém, estava de pé ao lado da ave. O pânico me aprisionou e a noite tornou-se cada vez mais escura, mas pude notar algo se mover e pousar à minha frente para que o pudesse ser visto. Em meus últimos momentos de agonia e desespero não mais ouvia, mas sabia o que o amaldiçoado estava dizendo enquanto me olhava.

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