Capítulo 8

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   Foi quando eu estava derramado a areia usando de Mouche num saco de lixo que vi.
Tarefas. Elas eram importantíssimas no lar do Gardiner. Não porque houvesse tantas. Era porque havia tão poucas. Graças a Petra, a au pair, Marta, a empregada, e Jorge, o jardineiro, não restava muita coisa para a gente fazer na casa.
   Mas a tia Evelyn e o tio Ted acreditavam, tanto quanto meus pais, que os filhos precisavam aprender a ter responsabilidades, de modo que alguns dias depois da minha chegada - assim que o hematoma teve chance de sumir - houve alguma discussão sobre qual seria a minha "tarefa".
   - Ela não pode ficar com o meu trabalho - havia declarado Teddy. Estávamos comendo o filé-mignon que Petra havia prometido fazer na noite da minha chegada... só que com algumas noites de atraso. - Sou encarregado do esvaziar a lavadora de pratos quando Maria não está aqui e de alimentar os Koi. E gosto dos meus trabalhos.
   - Ela pode ficar com os meus trabalhos - murmurou Tory. Justo naquela manhã ela havia decidido que era vegetariana e tinha obrigado Petra a lhe preparar tofu em vez do filé-mignon. E me pareceu que estava se arrependendo da decisão, se o modo como olhava para o meu bife indicava alguma coisa. - Encher a lavadora de pratos e limpar a caixa da gata. Não sei por que eu tenho de limpar a caixa da gata todo dia.
Tia Evelyn olhou sombria para Tory.
   - Porque foi você que quis a gata.   Você disse que assumiria toda a responsabilidade por ela.
Tory revirou os olhos.
   - Aquela gata é o animal mais ingrato que eu já vi. Ela dorme com Alice toda noite, mesmo que seja eu quem lhe dê comida e limpe a caixa.
Alice, que estava comendo seu filé-mignon estilo hambúrguer, entre duas fatias de pão branco e encharcado de ketchup, rebateu indignada:
   - Talvez se você não gritasse com Mouche o tempo todo porque solta pêlos em suas roupas pretas ela quisesse dormir mais com você.
Tory revirou os olhos de novo:
   - Só dêem a Jinx a tarefa da caixa da gata.
Tia Evelyn não aprovou o novo arranjo - eu ficar com o serviço de Tory, de monitorar a caixa de areia de Mouche -, mas foi o que aconteceu. Também me ofereci para ficar com Teddy e Alice na tarde em que o horário de aulas de Petra não lhe permita voltar à cidade a tempo, uma tarefa formalmente realizada por Marta... Acho que porque ninguém tinha conseguido obrigar Tory a fazer isso. Nem mesmo seus pais.
   Mas, afinal, não me incomodei, exatamente. Gostava mesmo doa meus primos mais novos, porque me lembravam dos meus irmãos menores, de quem eu sentia muito mais falta do que havia imaginado - a aspirante a modelo Courteney, de 13 anos; o fanático por beisebol Jeremy, de 10; Sarabeth, de 7, obcecada pelas Bratz; e especialmente Henry, de 4 anos, o bebê da família.
Ter tarefas a realizar, como as que eu havia deixado para trás, fez com que eu me sentisse menos solitária e mais fazendo parte da família Gardiner, o que, por sua vez, fazia com que eu sentisse menos falta da minha.
   Mesmo assim, quando o dia da semanada chegou e tia Evelyn me deu uma nota de cinquenta dólares nova em folha, eu soube que não estava mais em Iowa.
Olhando para o dinheiro, perguntei:
   - Para quê é isso? - pensando que ela devia querer o troco.
   - Sua semanada. - Tia Evelyn entregou uma nota idêntica a Tory. Teddy e Alice, cujas necessidades financeiras aparentemente eram menos dramáticas, receberam uma nota de vinte e uma de dez, respectivamente.
   - Mas... - Olhei para a nota. Cinquenta dólares? Em troca de limpar caixa de areia de Mouche e pegar as crianças na escola uma vez por semana? - Não posso aceitar isso. A senhora já paga a escola, deixa eu ficar aqui e tudo o mais...
   Eu suspeitava de que os Gardiner tinham feito mais do que isso, até. Não podia ter certeza, mas achava, pelas coisas que ouvi na escola, que não era qualquer um que era aceito na Chapman. Havia uma lista de espera, e pelo jeito eu havia pulado à frente, devido a uma "doação" que os Gardiner haviam feito em meu nome. Não sei se meus pais sabiam disso, mas certamente eu sabia, o que me deixou mais consciente do que nunca do quanto devia aos Gardiner. Em especial porque eu havia trazido junto o motivo para minha necessidade da transferência para a Chapman.
Eu não merecia nem mais um centavo do dinheiro deles.
   Mas parecia que eles achavam o contrário.
   - Honestamente, Jean - disse tia Evelyn -, eu lhe devo pelo menos isso só por cuidar de Teddy e da Alice toda quarta-feira. Qualquer babá em Manhattan cobraria muito mais.
   - É, mas... - tipo, eu vinha cuidando dos meus irmãos, dr graça, durante a vida inteira. - Verdade, acho que não...
   - Meu Deus, Jinx. - Tory balançou   a cabeça, incrédula. - Você pirou? Pega logo o dinheiro.
   - Concordo - disse tia Evelyn. - Pegue o dinheiro, Jean. Tenho certeza de que neste fim de semana você vai querer ir ao cinema ou alguma coisa com seus novos amigos da escola. Aproveite. Você merece.
   Não observei exatamente que não tinha novos amigos da escola. Ah, havia o pessoal da orquestra, que gostava de mim, depois que eles superaram o fato de uma estranha ganhar o posto de segundo violino logo no primeiro dia. Se você consegue tocar um instrumento, sempre vai se dar bem com o pessoal da orquestra.
   E havia Chanelle, com quem eu eu me sentava na hora do almoço. Mas na verdade, ela era amiga de Tory - ainda que não participasse do lance conven de Tory, Gretchen e Lindsey, e só parecia estar ali, na verdade, porque era onde seu namorado Robert, se sentava com Shawn. Tory também me deixava sentar junto, mas nunca sem dar a impressão de que, ao permitir isso, estava me concedendo um favor gigantesco. Eu sabia que ela preferiria que eu não me sentasse com o pessoal da orquestra. Eu também preferiria me sentar com eles.
   Mas não conseguia pensar num modo de fazer isso sem provocar um comentário sarcástico de Tory. Porque, mesmo sabendo que ela não me queria ali, tinha certeza de que ela gostaria ainda menos se eu a abandonasse. Ela não havia sido exatamente a Sra. Amigável desde a conversa sobre Branwen.
   Mesmo assim, mesmo sentindo que não era justo, arranjei um uso para meu súbito ganho financeiro no primeiro dia em que troquei a areia da caixa de Mouche.
   Os Gardiner gostavam daquele tipo de areia que formava bolos, que é fácil de limpar, já que só é preciso raspar com uma pazinha com ranhuras.
   Mas ou a areia era de qualidade inferior ou Tory não a trocava há muito tempo, porque, não importando o quanto eu raspasse, ainda fedia... muito. O odor de amônia da urina de gato literalmente enchia a lavanderia onde ficava a caixa de areia.     Sentia pena de Marta, que tinha de lavar roupa ali.
   Assim, achei um saco de areia de gato fechado e decidi dar a Mouche um suprimento novo, depois de jogar fora o velho.
A princípio não entendi o que via. Achei que tinha de ser um acidente. Depois vi a fita adesiva e percebi que não havia sido acidental. Larguei a caixa vazia como se ela tivesse pegando fogo.
Porque, mesmo eu tendo jogado fora toda a areia velha, a caixa não estava vazia. Não completamente. Presa com fita adesiva no fundo, previamente escondida sob vários centímetros de areia de gato velha e fedorenta, havia uma foto. Uma foto que, apesar de arranhada e consideravelmente desbotada, eu podia ver que era de Petra.
   Não pude acreditar. Realmente não pude acreditar. Porque eu sabia quem tinha posto a foto ali.
Também sabia por quê.
   Só não podia acreditar que alguém - qualquer pessoa - seria tão má.
   Talvez, pensei, enquanto deslocava cuidadosamente a foto do fundo da caixa, Tory não soubesse o que estava fazendo.    Ela não podia saber. Ninguém que soubesse o que algo assim poderia fazer a alguém iria ao menos tentar...
   Ah, certo. Quem eu estava tentando enganar? Tory sabia exatamente o que estava fazendo.
Motivo pelo qual eu sabia que não tinha opção além de tentar impedi-la... fosse como fosse.
Mesmo que isso significasse quebrar minha promessa.
   E, tudo bem, tinha sido só uma promessa a mim mesma.
Mas algumas vezes essas são as mais difíceis de quebrar.
   Descobri na Internet o que eu precisava... uma loja - uma loja de verdade - que vendia o que eu estava procurando. Em Hancock, uma loja assim certamente seria fechada por cidadãos ultrajados.
   Mas em Nova York aparentemente isso não era motivo de preocupação.
   A loja, que ficava no East Village, fechada às sete. Eu tinha duas horas para pensar em como chegaria lá.
   O metrô era a escolha as lógica, mas como eu nunca havia andado de metrô em Nova York, a idéia de fazer isso me encheu de terror.
   O problema era: o que poderia acontecer se eu não fizesse a viagem me enchia mais ainda de terror... só que por motivos diferentes.
   Assim pesquei um mapa do metrô numa gaveta da cozinha, onde eu sabia que tia Evelyn guardava esse tipo de coisa, e saí de casa, estudando o mapa cuidadosamente enquanto andava.
   Tinha dado aproximadamente três passos quando alguém estendeu a mão e amassou o mapa na minha frente. Com o coração martelando, levantei os olhos...
   ... e quase tropecei quando vi que era Zach Rosen.
   - Não ande pelas ruas de Nova com a cabeça enfiada num mapa do metrô. As pessoas vão saber que você é de fora da cidade, e vão tentar se aproveitar.
   Depois de ter passado todas as aulas se educação física daquela semana matando o Desafio Presidencial com ele, explorando as iguarias do que Zach chama de Cafés Guarda-sol do Central Park, inclusive o delicioso - e misterioso - souvlaki, senti-me confortável o bastante para perguntar:
   - Preciso ir ao East Village. Sabe que metrô devo pegar?
   Zach, que havia tirado a mochila do ombro e obviamente estava acabando de chegar de algum lugar, mesmo assim pendurou-a de novo.
   - Vamos.
   Certo, ESSA não era uma resposta que eu tivesse previsto.
   - Não - quase gritei, desnorteada. Porque ele era a última pessoa que eu queria que soubesse onde eu estava indo.  Não porque ainda estivesse caída por ele... o que eu estava, claro, mesmo sabendo que isso era completamente inútil. Na verdade, no dia anterior eu tinha conseguido que Zach admitisse que estava apaixonado por Petra.  A conversa - que havia acontecido na cozinha dos Gardiner depois das aulas, onde eu o encontrei se recuperando de um jogo de bola com Teddy na frente da casa - tinha sido assim:

Sorte ou azar? (Livro)Onde histórias criam vida. Descubra agora