EM princípios de dezembro, minhas irmãs chegaram de Itapetininga. Fui à estação com Julinho e voltamos todos de bonde porque um carro ficava muito caro e precisávamos
fazer economia. Pusemos as duas malinhas na frente do bonde; logo me arrependi de haver levado Julinho porque minhas irmãs traziam muitos embrulhos de ovos e doces que
mamãe me mandará e Julinho só serviu para atrapalhar porque queria ajudar a levar os
embrulhos e deixava-os cair a todo instante.
Clotilde e Olga estavam ansiosas por conhecer nossa nova casa, pois no ano anterior,
quando elas vieram nas férias, ainda residíamos no Bom Retiro, numa casa muito pequena e apertada; elas tiveram que dormir no quartinho com os meninos mais velhos,
onde mal cabiam os quatro e assim mesmo Carlos e Alfredo dormiam num colchão, no
chão.
Quando escrevi contando que tínhamos mudado para a Avenida Angélica, numa boa casa
que estávamos pretendendo comprar, exultaram em ltapetininga. Responderam:
"Então agora é só no palacete, hein? Muito bem. Vocês estão progredindo; estamos ansiosas por conhecer a nova residência, ainda mais nesse bairro tão elegante".
Na viagem de bonde, perguntaram muitas vezes:
-Então, está contente na casa nova?
-Quantos quartos tem?
-Já é de vocês?
-Tem jardim na frente?
Eu respondia às perguntas, prestando mais atenção em Julinho que, disfarçadamente,
estava querendo abrir o pacote, onde ele sabia que havia um bolo. Pedi notícias de mamãe.
Disseram que mamãe ia bem, mas se queixando de reumatismo nas pernas, era de tanto trabalhar; tinha sempre muito serviço. De vez em quando ela se queixava também de uma dor forte na boca do estômago. Ficávamos uns momentos sem falar, pensando na dor de
mamãe, querendo adivinhar o que seria.
Quando chegamos em casa, Júlio e as crianças estavam no portão, esperando. Houve
muitas exclamações e abraços:
-Olhe como a Isabel está crescida!
- E Júlio cada vez mais gordo!
- Que casa bonita!
Entraram olhando todos os cantos da casa, enquanto Júlio levava as malas para o quarto delas e Durvalina levava as cestas e pacotes para a cozinha. Abraçaram Durvalina:
-Até a Durva está mais gorda. Olhe um pouco como o clima daqui é bom mesmo.
Visitaram a casa toda achando tudo uma beleza; no quarto delas que era meu quarto de costura, eu tinha coberto a máquina com uma toalhinha bordada e assim servia de mesa; havia duas camas, uma cadeira e um espelhinho na parede. Tiravam o chapéu, entravam no banheiro, voltavam, passavam o pente nos cabelos, sempre conversando:
-Que banheiro bom! Se tivéssemos um assim lá em casa!
Depois:
- Sabe quem casou? Você não é capaz de adivinhar! A Maria da Glória!
Abri os olhos, espantada:
-Não diga! A Maria da Glória? Mas com quem?
-Com um viajante de uma casa importante, dizem que ganha bem.
Eu me sentava na cama, admirada, olhando Clotilde que contara a novidade:
-Mas ela tem uns quarenta anos, Clotilde! Mais de quarenta até; eu me lembro que era criança de vestido curto e ela já ia a bailes! Tem mais de quarenta, uns quarenta e cinco!
Olga intervinha falando maliciosamente:
- Pois é. Pra você ver; feia e velha, arranjou marido. Eu já disse pra Clotilde que não devemos perder as esperanças.
Clotilde ficava amuada:
-Ah! Ah! Não diga bobagens!
Isabel apareceu na porta do quarto comendo um pedaço de doce; fiquei zangada:
- Meu Deus! Olhe esta menina comendo doce quase na hora do jantar. Quem deu para você?
Ela não respondia e antes que tomasse o pedaço que tinha na mão, enfiava-o inteirinho na boca e olhava para mim com os olhos úmidos pelo esforço da mastigação. As tias riam,
encantadas:
-A Isabel é um encanto; está parecida com Júlio.
-Mas os olhos são de Lola, veja um pouco.
-Os olhos e a boca; a boca é igualzinha à de Lola.
-Então é parecida com Lola.
-Não. A testa e o nariz são de Júlio. Repare bern.
-Isabel se impacientava e fugia; Júlio aparecia na porta do quarto, risonho:
-Não acabaram de contar as novidades? Falta muito ainda? E virava-se para mim:
- Como é o jantar, Lola? Não está pronto?
Saí correndo do quarto e mandei Durvalina pôr o jantar na mesa.
Depois do jantar, ficávamos conversando no canto da sala, falando sobre os conhecidos e parentes de Itapetininga. Eu perguntava:
-E tia Candoca como vai? Vocês me escreveram que ela tinha levado um tombo? Está melhor?
-A perna ficou inteirinha roxa, mas agora está quase boa. Você soube que o Juquinha caiu do cavalo?
-Não. Vocês não me escreveram nada. E machucou muito? Como é que vocês não mandaram contar?
-Não quebrou nenhum osso, mas esfolou muito a testa e o nariz; ficou inchado uns dias, depois sarou. Não mandamos contar porque estávamos para vir.
De repente Olga se lembrava de um caso e falava com entusiasmo:
-Sabe que a Doca fez as pazes com o Gumercindo? Vão se casar no mês que vem.
-Não diga! Pois quando brigaram, ela disse que preferia morrer a casar com ele!
-Pra ver. Fala sem pensar; estão agora muito entusiasmados com o casório.
- Quem havia de dizer! As crianças, sonolentos, ficavam à nossa volta ouvindo prosa, sem quererem ir dormir; levava-os depois apressadamente para o quarto e punha-os na cama. Voltava para a sala para ouvir mais novidades; Júlio com o cachimbo esquecido no canto da boca, o jornal no colo, trocava uma ou outra frase com minhas irmãs, perguntando pelo tio e pelos conhecidos. Eu guardava os doces que mamãe tinha mandado; seis latinhas pequenas de goiabada em calda, seis pacotinhos de figos cristalizados, seis quadrados de pessegada e um bolo mármore; calculava mentalmente quantos dias podia durar essa sobremesa.
Havia uma pausa na conversa, um descanso, Júlio reiniciava a prosa:
-E o Soares como vai? Sempre metido a conquistador?
Clotilde e Olga olhavam-se embaraçadas, como quem pergunta: contamos ou não? E Clotilde resolvia:
-Ele agora anda atrás da Maroquinhas.
Júlio tirava o cachimbo da boca, um ar admirado, os olhos muito absortos; eu ficava com a lata de doce na mão, parada, sem saber o que fazer com ela. Olga acrescentava:
- Pois é. Pra que deu agora o sem-vergonha. Não presta mesmo.
Júlio afinal conseguia falar:
- A Maroquinhas do Chico? Uma mulher casada! É o cúmulo!
-É isso mesmo. A Maroquinhas do Chico. Não é uma vergonha?
Ficamos todos parados, mudos, sentindo a tragédia que se espalhava no ar como fumaça; reatávamos outra vez a conversação, mas o caso principal da noite voltava ao assunto imperiosamente. Eu dizia em voz baixa, como se tivesse medo de falar alto:
-Este mundo está perdido. Nem acredito, parece incrível Maroquinhas?
-A Maroquinhas está correspondendo. Dizem.
Olga falava revoltada:
-Mulher é idiota mesmo, acredita em homem; sempre desconfiei da Maroquinhas, sempre foi assanhada com os homens.
Durante meia hora comentávamos o caso, com medo da reação do Chico.
Afinal Júlio se levantava e se espreguiçava levantando os braços para cima:
-Bom. Vamos dormir? Quase dez horas!
Dispersávamos todos e antes de dormir, eu ia perguntar confidencialmente a Olga:
-E o Zeca como vai?
Olga fazia uma careta e virando o rosto para um lado, respondia:
-Não sei. Brigamos.
-Brigaram? Mas por quê? Não acredito!
Clotilde entrava no assunto:
-Briguinha de namorado, Lola. Qualquer dia fazem as pazes.
-Mas qual o motivo da briga? Vocês estavam tão firmes!
Olga explicava com ar contrariado:
-Não queria que eu viesse para S. Paulo Queria que passasse as férias lá mesmo.
Imagine! Teimei em vir e ele ficou zangado. Passou dois dias sem aparecer e eu vim assim mesmo. Por que não pede? Se fôssemos noivos, eu não vinha.
Eu sorria:
-Essas briguinhas não são nada, qualquer dia estão noivos.
E dizendo boa noite, retirava-me para o quarto, onde Júlio já estava dormindo; eu me deitava e, no escuro, lembrava as novidades que tinha sabido e via passar na imaginação todos os amigos e conhecidos de Itapetininga. Via a Maroquinhas namorando o sem-vergonha do Soares; a Doca casando com o Gumercindo; mamãe mexendo o tacho de goiabada ou então espiando se os biscoitos de polvilho estavam assados, no grande forno de barro do quintal, afogueada, suando, um pano amarrado na cabeça, a tampa do forno na mão e com a pazinha de madeira na outra, virando os biscoitos um por um, franzindo a testa, os olhos meio fechados por causa do calor. Tia Candoca com a perna roxa espichada numa cadeira, dando um gemido de vez em quando: Ai, meu Deus! Todos passavam na minha imaginação e tornavam a passar teimosamente, até que o sono vinha chegando aos pouquinhos e fechava meus olhos pesadamente.
* * *
Na primeira semana depois da chegada das minhas irmãs, trabalhamos muito em chapéus
e vestidos para que elas pudessem sair. Os chapéus eram do ano anterior e estavam feios e desbotados; fizemos então umas armações de arame e talagarça e cobrimos com cetim como era moda naquele tempo. O de Clotilde com cetim cor de cinza e uma fita cereja; Q de Olga com cetim azul e umas florinhas azuis em toda aba. Depois que os vestidos também ficaram prontos, fomos visitar tia Emília, a "tia rica" como Júlio dizia. Era a irmã mais velha de papai e tinha se casado com um homem muito rico e importante; estava
viúva há alguns anos já. Morava na Rua Guaianases e uma das principais perguntas de nossa mãe quando escrevia era: "Já visitaram tia Emília?" de modo que era um dever
imprescindível visitar tia Emília porque mamãe lhe devia muitos favores. Um belo dia logo depois do almoço, fomos para a Rua Guaianases. No caminho, recomendei a Olga que não risse, nem olhasse para mim se aparecesse refresco de orchata ou se tia Emília falasse na origem das famílias paulistas. Era engraçada essa mania dela; sabia de cor a origem de todas as principais famílias e tinha uma memória prodigiosa para guardar nomes e datas. Tinha cadernos com as histórias dos fundadores de S. Paulo e quando via pessoas interessadas no assunto, não parava mais de falar. Olga prometeu.
O palácio da Rua Guaianases impunha respeito e medo; quando chegamos e tocamos a campainha, calculei mentalmente quantas vezes nossa casa cabia dentro daqueles jardins, a casa que ainda não era nossa e nem sabíamos quando terminaríamos de pagar os vinte
contos restantes. Tia Emília era riquíssima e para nós seu palácio era um sonho das mil e uma noites com uma legião de criados, governantes tesas e compenetradas, grossos
tapetes onde os pés se afundavam, cortinas pesadas como chumbo, mesas envernizadas com as pernas cheias de bolas e caras de gente. E os cavalos? Tinha uma carruagem
puxada por dois cavalos castanhos e um cocheiro empertigado com uma grande cartola reluzente inclinada para um lado da cabeça. Dizia que havia de ter carruagem enquanto
pudesse, detestava automóvel. E quando ela me visitava uma vez por ano e o carro parava em frente à nossa casa, as janelas das casas vizinhas enchiam-se de cabeças curiosas que ficavam olhando os majestosos cavalos baterem com força as patas do chão. O espetáculo
era soberbo!
As crianças ficavam excitadas e começavam a entrar e sair a todo o momento, o que me deixava nervosa; Carlos e Alfredo ficavam com as mãos nos bolsos das calças, um ar imponente, andando de um lado para outro perto da carruagem, desafiando todos que passavam com olhares orgulhosos como se dissessem: "Não somos qualquer um, vejam as visitas que nossa mãe recebe". E olhavam com admiração o cocheiro que parecia um rei sentado no trono. Felizmente as visitas eram curtas e eu ficava envergonhada de só oferecer café, que nem sempre ela aceitava.
No palacete, um criado de libré nos levou à sala particular, onde tia Emília recebia os íntimos e as pessoas da família. Sentamos com muita cerimônia na ponta das cadeiras de
veludo e quando nossa tia entrou com ar majestoso, levantamos para cumprimentá-la respeitosamente. Ela já estava com uns setenta anos; era alta e tinha um ar imponente que
colocava todos à distancia, parecia estar sempre recomendando: "Não precisa aproximar-se, fale daí mesmo". Perguntou pela nossa mãe, pelo meu marido e pelas crianças com certa polidez; depois perguntamos também pelos filhos dela. Contou histórias sobre os filhos mais velhos e os netos e disse que os dois filhos solteiros estavam viajando, na
Argentina; se não fosse a guerra, estariam na Europa. Em seguida, tocou a campainha e quando o criado apareceu, mandou chamar as meninas; logo depois vieram as duas filhas que moravam com ela. "As meninas" tinham mais de cinquenta anos, uma era viúva e outra solteirona, muito quietas e concentradas. Tia Emília mandou depois uma das meninas tocar a campainha e virando-se para nós, perguntou suavemente:
-Gostam de orchata? Vou mandar vir.
Olhei as figuras do tapete e com os lábios cerrados, fiz um esforço tremendo para não rir;
de repente percebi a cadeira de Olga estremecer e Olga começou a tossir; tossiu tanto que todas recomendaram xaropes; uma dizia que o de eucaliptos era melhor, outra ensinava outra coisa e finalmente a tosse cessou. Tomamos o refresco de orchata e tia Emília quis me pagar o dinheiro dos sapatinhos. Protestei:
-Não vim aqui para isso, tia Emília. Não tenho pressa de receber.
Mas ela pagou e fez outra encomenda para novos netos que estavam para chegar. Depois nos avisou que o casamento da última neta seria no fim do mês, na casa dela, onde
dariam uma recepção. Houve uma pausa e de súbito ela começou:
-Eu sei a história da família Lemos desde 1724; são de S. João de Atibaia e tiveram fazenda em Parnaíba. Houve um dom Francisco de Lemos nascido em Castela e casou-se com Isabel no ano de 1640. Isabel morreu e dom Francisco casou-se com Catarina de
Mendonça e tiveram dois filhos, Baltasar e Jeronimo...
Uma das meninas interrompeu:
-Não foi um desses que casou com uma filha de Bartolomeu Bueno de Camargo?
-Pois é esse mesmo, o Baltasar. Tiveram sete filhos...
Olga me olhou com olhar suplicante como quem pergunta: "Será que vai nomear os sete?" Fiz que sim com a cabeça e Olga deu um suspiro fundo.
Tia Emília continuou: