Capítulo I

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Ainda ontem passei por lá; a manhã estava muito clara, radiosa, dessas alegres manhãs
de verão, quentes de sol e de vida.
Havia no ar uma luminosidade surpreendente e o zumbido dos insetos, o canto dos
pássaros e o riso das crianças enchiam o espaço; por toda a parte reinava a luz, a alegria,
o desejo de viver, de ser feliz, de ser bom. As árvores pareciam paradas, quase imóveis;
mas observando bem, podia-se perceber um sussurro de brisa entre as folhas como a
contarem segredinhos umas às outras, na transparência luminosa da manhã.
Passando pela Praça Buenos Aires, vi um grupo de crianças brincando e correndo; seus
gritos repercutiam em meus ouvidos como ecos de coisas mortas, remanescentes de um
passado há muito tempo desaparecido. Lembrei-me então do meu sonho; durante a noite
inteira eu havia sonhado que ainda morávamos lá e meus filhos eram pequenos; no sonho
ouvi chamarem várias vezes: Mamãe! Mamãe!
Mal a claridade do dia passou através das tabuinhas das venezianas, eu me vesti e saí;
tomei o bonde para passar na "nossa casa"; digo "nossa" por hábito porque há muitos
anos já que a deixamos e nem sei quem mora lá. Desci do bonde umas quadras antes para
passar a pé diante dela e vagarosamente fui subindo a Avenida Angélica, tão familiar e
amiga, onde residimos durante tantos anos!
Esse quarteirão não mudou muito; um ou outro prédio novo e por toda a parte as mesmas
árvores e até, pode-se dizer, os mesmos pássaros cantando em seus galhos. Vi uma das
árvores com um galho retorcido, tal e qual a vi sempre. Diante da casa, parei um pouco
para ver melhor; lá estava ela com as duas janelas de frente e o portãozinho de ferro, o
jardim de quatro metros, como chamávamos, e a trepadeira roxa plantada por Júlio há
tanto, tanto tempo.
O jardim era insignificante e pequeno, mas para nós era encantador com algumas roseiras
e um canteiro de cravos; havia cravos brancos, vermelhos e outros quase roxos. Quando
um cravo começava a se abrir, as crianças iam espiar a todo o momento para adivinhar de
que cor seria; e vinham me contar:
-Mamãe, é branco!
-Não é, mamãe. É vermelho!
E às vezes discutiam por causa dos cravos.
Olhei as janelas e meu olhar passou através delas e se alongou pelo interior; revi então
nossa vida, todos os longos anos da nossa mocidade. Sorri ao ver os degraus da entrada;
eram de cimento, estavam gastos e escuros, mas me lembro tão bem do tombo que Carlos levou uma vez que entrou correndo, caiu e fez um "galo" na testa. Durante muitos dias Carlos chorou e brigou com os irmãos porque olhavam para ele e gritavam: co co ró có, por causa do "galo".
As duas janelas da frente eram do escritório e vi dentro dele a escrivaninha grande onde
eles estudavam; sobre a escrivaninha, eu colocava sempre um mata-borrão verde preso com quatro tachinhas. Não durava muito tempo porque as crianças iam tirando os
pedacinhos do mata-borrão conforme precisavam e logo eu tinha que atirar fora o velho,
todo rasgado e sujo de tinta e colocar outro novo. Ao lado, numa parede, havia uma estante com livros; havia também duas cadeiras, e um tapetinho feito de meias velhas por minha irmã Clotilde.
Passei pelo pequeno vestíbulo, onde havia uma chapeleiro e entrei na sala de jantar. Era uma sala grande e de um lado havia um recanto com um sofá, duas poltronas e uma
cadeira de balanço, tudo coberto com brim pardo, por causa das crianças; nesse lugar eu passava o dia, recebia minhas visitas e fazia tricô para ganhar algum dinheiro. Havia um
espelho num dos móveis da sala de jantar e todas as vezes que minha filha Isabel passava diante dele, ela se inclinava um pouco e dava um jeito para se olhar e arranjar os cabelos.
Eu achava-a vaidosa, mas também era tão bonita quando era mocinha!
Passei pelo corredor, para onde davam nossos quartos e entrei na copa; vi então Isabel com três anos, os cabelos castanhos presos por uma fita vermelha, sentada à volta da mesa pequena, batendo a colher no prato, sem vontade de comer. Eu dizia: Coma, filhinha, olhe como está gostoso. Eu fingia que comia um pouquinho, mastigando ruidosamente. Ela ria mostrando a fileira de dentes iguais e batia a colher no prato com toda a força, gritando: Num quelo come! Num quelo!
Julinho que já tinha cinco anos, comia tudo o que estava no prato e às vezes ainda pedia mais.
Eu os levava depois para o quarto e vestia-lhes as camisolas brancas; Isabel só queria camisola com rendas na gola e começava a choramingar quando não havia renda e tinha
que vestir outra com ponto russo vermelho na frente e nos punhos. Eu ficava admirada porque ela era muito criança e sabia escolher o que era bonito. Eu dizia: Agora vamos rezar. Eles se ajoelhavam então aos pés da minha cama e pondo as mãos,
diziam juntos, olhando para o teto:
-Coração de Jesus, tesouro de bondade, de nós, pecadores, tende piedade. Protegei papai, mamãe, meus irmãos, eu e toda a nossa família.
Nunca me esquecerei de Julinho que disse um dia: "Coração de Jesus, tesouro de bondade. Mamãe, tem teia de aranha naquele canto da janela. Veja. De nós, pecadores, tende piedade".
Vendo-os assim piedosos, de camisolas brancas, os cabelos soltos de Isabel em ondas brilhantes pelos ombros, Julinho com os olhos pretos muito grandes, comparava-os a anjos. Depois cada um ia para sua caminha; Julinho dormia sempre com o cavalo de borracha que o padrinho tinha dado. Às vezes, já estava na cama quando lembrava e gritava: Meu cavalinho! E saía correndo à procura do brinquedo, a camisola branca
entufada pelo vento. Uma noite procuramos pela casa toda e ele já estava desesperado quando Durvalina, a criada, encontrou o cavalo sob o sofá da sala de jantar; então ele correu para a cama e abraçando o cavalinho, dormiu imediatamente. Era o único
brinquedo de Julinho.
Antes de deixar o quarto, eu me debruçava para cobri-los e beijá-los e eles passavam os braços à volta do meu pescoço e me beijavam, às vê\es com os olhinhos amortecidos pelo
sono; e eu me enternecia tanto quando diziam: Boa noite, mamãezinha.
Mas eram meus, verdadeiramente meus naquele tempo e, apesar de darem trabalho, pois
quatro filhos dão muito que pensar para quem tem pouco dinheiro, eu me sentia feliz, muito feliz. E nunca me esqueço do que me disse uma senhora que tinha três filhos
moços: "que saudades eu tenho do tempo em que eles eram pequenos, eram tão meus".
Tudo isso me passou pela imaginação num relance enquanto olhava nossa casa batida de sol; um cheiro de flores chegou ao meu nariz; aspirei com satisfação porque devia ser das
nossas flores; era um cheiro de orvalho também, orvalho das manhãs de verão. Fui tomar o bonde para voltar, não podia ficar ali olhando o dia inteiro. Enquanto ia andando,
descendo a Avenida Angélica, comecei a lembrar que os meus também foram embora, a vida levou-os e se espalharam pelo mundo, menos Carlos que já não existe.
Esse eu visito sempre; está deitado no cemitério S. Paulo, dormindo sossegado entre quatro roseiras que florescem todos os anos, em Setembro. São rosas brancas, bem
grandes, das que ele mais gostava. Carlos eu sei que está bem, os outros não sei onde andam.
Estão aí, pelo mundo.
* * *
Quanta saudade eu tenho desse tempo da Avenida Angélica, quando meus filhos eram
crianças e vivíamos todos juntinhos com Júlio, meu marido, como passarinhos em gaiola.
Os dois mais velhos tinham sete e nove anos quando nos mudamos para lá e não me
davam muito trabalho. Eram fortes e sadios. Alfredo e Carlos já se vestiam sozinhos e estavam estudando na escola particular de D. Benedita, próxima à nossa casa. Carlos era
o mais velho e estava no terceiro ano da escola; Alfredo no segundo.
Depois que punha na cama os dois menores, eu ficava sentada na poltrona da sala de
jantar esperando Júlio; ele vinha jantar sempre entre seis e meia e sete horas mas quando passava das sete e ele não aparecia, eu ficava aflita porque o imaginava numa confeitaria, bebendo com os amigos. Com certeza voltaria embriagado para casa. Nunca me enganei,
infelizmente.
Quando na porta, ele dizia: Boa noite! e punha o chapéu na chapeleira, eu já sabia se ele estava bom ou não. Era horrível quando vinha um pouco "tocado", passava pisando duro
pela sala e ia para o quarto tirar o paletó e pôr um de pijama. Depois lavava as mãos e sentava na mesa para jantar; os dois meninos mais velhos comiam na mesa conosco e
tinham medo do pai nesses dias. Começávamos a tomar a sopa em silêncio; de repente o pai olhava para Carlos, sentado na frente dele e falava:
-Onde se viu tomar sopa desse jeito? Não aprende? Parece cachorrinho.
"Pronto, começou". Eu pensava. O menino baixava a cabeça sobre o prato, evitando olhar
o pai. Ninguém falava e eu ficava um pouco assustada com o silêncio. Durvalina começava a tirar os pratos de sopa e para disfarçar, eu perguntava:
-Teve um dia muito atribulado, Júlio?
Ah! Meu Deus! Por que eu falava?
Júlio ficava vermelho e respondia:
-Naturalmente. Tenho algum dia que não seja atribulado? Eu? Diga!
Batia a mão no peito, olhando para mim e repetindo:
-Eu? Eu sou um burro de carga para trabalhar. Burro de carga! Trabalho doze horas por dia e depois me perguntam se tive um dia muito atribulado. Essa é boa!
Ria alto, sem vontade. Sem querer, eu olhava para ele; estava com os olhos
avermelhados, pareciam injetados e a fisionomia carregada.
Eu fazia os pratos dos meninos que comiam em silêncio, as cabeças baixas sobre a mesa.
Júlio punha pimenta todos os dias na comida; um dia eu disse:
- Não coma pimenta hoje, Júlio. Pode fazer mal.
Imediatamente me arrependi de ter falado; a fisionomia dele ficou mais carregada e gritou, impaciente:
-Não posso comer o que eu quero? Será que na minha casa, não tenho liberdade? Na minha casa? Por que não hei de comer? Pensa que estou bêbedo? Hein?
Não respondi e continuei a servir as crianças; irritado talvez com minha atitude, continuou furioso:
-Diga uma coisa, quem é que manda aqui? Serei eu ou você? Vamos, diga.
Continuei calada; ele gritou mais:
-Diga quem manda nesta casa? Quem é que paga tudo? Hein? Por que não fala? Chego exausto do serviço, sento na mesa para jantar e ela vem me dizer que não devo comer isto
ou aquilo. Fique sabendo que como o que quero e ninguém tem nada com isso. Ouviu? Ninguém!
E pondo bastante molho de pimenta no feijão, comeu furiosamente. As crianças olhavam para mim e baixavam a cabeça outra vez, timidamente, com medo do pai. De
súbito, ele tornou a olhar o filho na frente dele e perguntou:
-Que nota tirou hoje?
Percebi a palidez do menino; encorajei-o com o olhar corno sei dissesse: "Fale, meu
filho. Estou aqui".
O menino olhou para o pai, um olhar medroso:
-Hoje tirei cinco.
-E por quê? Isso é nota? Por que não tirou dez? ao menos nove?
Carlos procurava sorrir, contrafeito:
-Errei um problema, papai, e na História do Brasil...
O pai interrompeu, indignado, imitando a voz de Carlos:
- "Errei um problema, papai". Ele fala como se isso fosse muito natural. E ainda ri com esses dentes de cavalo. Eu se fosse você não ria, ouviu? Não sei quem você puxou, tem
dentes de cavalo. E repito que quero nota dez todos os dias. Entendeu? Ouviu?
Carlos continuava a mastigar de cabeça baixa, humilhado, sem dizer nada. Vendo que
ninguém falava, Júlio serviu-se de carne assada com a salada e despejou mais molho de pimenta no prato. De repente olhou Alfredo que tinha acabado de comer e fazia balinhas
com miolo de pão. Perguntou:
- Já comeu carne com salada?
Alfredo levantou os olhos medrosos para o pai e hesitou, respondendo:
-Não gosto de salada de alface.
Júlio sorriu triunfante como se tivesse encontrado uma boa razão para impor sua tirania.
Olhava à volta da mesa e falava pausadamente fixando os filhos:
-Aqui não tem gosta ou não gosta. Coma salada de alface.
Alfredo olhou rapidamente para mim como a pedir auxílio. Procurei intervir, suavemente:
-Por que forçar a criança a comer o que não gosta, Júlio? Pode até fazer mal.
- Fazer mal? Mal o quê! Quando eu era criança, comia tudo o que vinha à mesa, nunca tive esse luxo de escolher comida; agora esses meninos são uns "não-me-toques", gosto
disso, não gosto daquilo. Não senhor. Na minha casa não tem nada disso. (Olhava furioso para mim):
-E você é culpada, dá muitos mimos, muitos carinhos. O que vão ser depois de grandes?
Uns inúteis! Uns vagabundos!
E como via que eu não fazia um gesto para pôr alface no prato do menino, gritou,
colérico, para Durvalina:
-Ponha alface no prato de Alfredo, Durvalina.
Olhei Alfredo; seus olhos lançavam chispas para o pai quando este não estava
observando-o; pareciam chispas de ódio. Com os lábios trêmulos começou a mastigar as
folhas de alface, sem dizer nada.
Durvalina levou os pratos para a cozinha e trouxe goiabada; continuamos a comer sem falar. De repente, Carlos bebeu uns goles de água. O pai falou, irritado:
-Não quero que beba muita água na comida; quantas vezes já disse a mesma coisa?
O menino procurou uma desculpa:
-É o primeiro copo que estou bebendo, papai.
-Mas não quero que beba, acabou-se.

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