A eternamente mutável paisagem da janela

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                Pergunte a qualquer aluno médio do sistema público de ensino brasileiro e ele saberá lhe dizer o nome da maioria (se não de todas) as grandes capitais da Europa. Os que costumam assistir a filmes e séries saberão lhe dizer uma porção de nomes de cidades dos Estados Unidos. Mas poucos deles seriam capazes de dizer qual é a capital de Rondônia – um lugar que também existe, e, vejam só, fica no Brasil. Para referências futuras, é Porto Velho, e não, não é grande coisa.

Mas para lá nos dirigíamos todos os anos, desde nossa mudança para o outro extremo do Brasil. Éramos três, no princípio: papai, mamãe e eu, vindos do calor de Rondônia para encarar as baixas temperaturas da serra gaúcha. Saímo-nos bastante bem, considerando que nenhum de nós nunca tinha visto a geada matinal cobrindo os jardins antes.

Dentro de alguns anos, tornamo-nos quatro: uma irmã pequena veio para se somar a nós, para encher a casa de alegria e nos deixar a todos um pouco mais cansados.

Desde o começo dessa nova vida em outro estado, fizemos todos os anos a onerosa travessia do país inteiro para voltar aos campos de Rondônia, ao coração da Amazônia. Voltávamos por um tempo a um lugar mais quente, mais úmido, mais reconhecível – em uma porção de aspectos, mais acolhedor. Nosso lar.

Naquela época, uma passagem de avião provavelmente custaria um par de nossos órgãos; era um luxo para poucos – luxo que até hoje uma parcela da elite se recusa a dividir conosco, os pobres. Assim, enfrentávamos estoicamente os três dias inteiros necessários para a viagem de ônibus. Papai e mamãe ajeitavam-se como podiam, grandes e cansados demais para que aquelas poltronas fossem minimamente confortáveis. Minha irmã e eu, por outro lado, transformávamos nossa viagem em uma festa e a vida dos vizinhos de poltrona em um inferno por três longos dias.

E por que não haveríamos de comemorar? Havia um pequeno estoque de doces para nos distrair, todas as revistas em quadrinhos que conseguíamos contrabandear sem que mamãe visse, e mais importante: tínhamos uma a outra e éramos alegremente idiotas. Os sete anos de diferença que nos separavam desapareciam por amarmos as mesmas coisas. Ali ninguém nos mandaria fazer o dever de casa, parar a brincadeira para tomar banho ou arrumar nossos quartos. Ali, durante aqueles três dias, éramos livres para exercer as pequenas doses de terrorismo que viviam dentro de nós.

Sendo o espaço limitado como era, minha irmã e eu tínhamos que nos virar e ser criativas. Assim, criamos as brincadeiras que eram repetidas todos os anos – mesmo quando já éramos maiores e não tínhamos tanta permissão para sermos idiotas. Eu, que já sabia ler, sacava os gibis contrabandeados da biblioteca de nossa casa e lia para ela (talvez pela milésima vez) todas as histórias. Depois, consumida pelo tédio, tornava a ler – ora interpretando o timbre de voz de cada personagem, ora lendo as palavras de trás para frente. Ríamos dessa brincadeira como se fosse a primeira vez.

Quando o açúcar se acumulava em nosso sangue, gastávamos energia com brincadeiras mais inoportunas; gostávamos especialmente daquela em que ela tinha de tentar me morder, e eu, por minha vez, precisava evitar. Essas ocasiões, inevitavelmente, acabavam em brigas, pontuadas pelas advertências de nossos pais.

Na ocasião em que ganhei um relógio digital – pois ainda não sabia ler os ponteiros analógicos – passamos o primeiro dia de viagem dizendo as horas em voz alta a cada cinco minutos. Não importava que estivesse escuro, pois os numerozinhos brilhavam. Papai não tardou a me tomar o relógio, só devolvendo quando descemos em Rondônia. Aprendi a guardar as horas só para mim.

Às vezes, minha irmã e eu fazíamos amizade com vizinhos de poltrona. Falantes como éramos, pouco nos importava a idade ou aparência: queríamos apenas ter com quem conversar. E como, em geral, viajar pode ser muito solitário, as pessoas recebiam bem nossas intromissões, e, pacientes, nos ouviam tagarelar horas a fio. Aprendemos uma porção de musiquinhas novas, das mais repetitivas e chatas, nessa época, e não nos cansávamos de repeti-las.

Preferíamos fazer amigos nas poltronas atrás da nossa, porque isso nos permitia sentar ao contrário para podermos conversar, e esse era o jeito mais interessante de viajar, embora desse um pouco de náuseas.

Mas mesmo com toda a agitação que um corpo de criança pode conter, também nos cansávamos. Há algo de estranhamente confortável em passar a noite num ônibus em movimento. Tudo está escuro, e a respiração dos demais passageiros parece uma cantilena repetitiva e calmante. Às vezes, alguém ronca. Às vezes se passa por um poste aceso, e a luz incide diretamente sobre nossos olhos. Ainda assim, tudo isso é um complemento ao prazer aconchegante de se estar em movimento, de se estar indo a outro lugar.

Apesar disso, eu costumava ser a última a dormir. Gostava de estar à janela, vendo coisas que os outros não viam. Quando havia lua para ver, era um deleite. Eu costumava conversar com ela, e imaginar que a lua respondia. Perguntava-lhe como era vigiar o mundo todo, e ela me contava; "de vez em quando é cansativo", dizia ela, "ter de estar sempre de olho em vocês." Em minha inocência de criança, tentava consolá-la. "Todos amam você", eu costumava responder. "As pessoas escrevem músicas, poemas." "Ah, os poemas...", ela replicava, não sem alguma amargura. Ela não aguentava mais os poemas.

Quando minhas divagações tomavam esses rumos, e eu me encontrava perigosamente à beira das lágrimas, costumava ir dormir.

Se a lua estava mais tímida, eu me ocupava em olhar a estrada. Sendo sincera, eu sabia que não havia muito que ver. Mas as margens das rodovias, eternamente mutáveis, acendiam minha imaginação, e eu criava uma centena de aventuras – mais do que isso: vivia-as. Certa vez, em meio a uma luta mortal por minha honra que travava em minha cabeça, julguei ver um vulto curvado correndo entre as árvores que margeavam o asfalto, maior e mais rápido que qualquer coisa que eu conhecesse sobre a terra. Fiquei mortalmente assustada. Ainda hoje, não sei se foi um sonho vívido, se minha imaginação me levou a ver o que não estava lá ou se tive um vislumbre do mistério que habita a terra.

Hoje, as passagens aéreas se tornaram mais acessíveis e as viagens, mais rápidas e insípidas. Meus pais estão velhos, envelhecidos, e minha irmã e eu nos ocupamos dos cotidianos afazeres de reprodução de nossa existência. Mas não desperdiçamos tempo enaltecendo o passado e lamentando o presente. Juntos, ainda lutamos pela chance de exercer a imaginação, o belo, o lúdico, a aventura.


Crédito da imagem: Jornal Extra - refugiados sírios na Turquia

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